Como nas peças de teatro que nunca vi, há personagens principais e personagens secundárias. Aquela mulher era nitidamente uma personagem secundária.
Ana Teresa Pereira, A Outra
Postais da Europa
Vinte anos após ter abandonado a Alemanha, Douglas Sirk regressa ao seu país para filmar Interlude (Os Amantes de Salzburgo, 1957), realizando a mesma viagem intercontinental que a narrativa do filme proporciona à sua protagonista, e tornando-se assim significativo que o nome de Sirk surja, no fim dos créditos iniciais, sobre o comboio que transporta a personagem, Helen Banning, para Munique. Até então, os créditos tinham aparecido sobre uma série de planos fixos que mostravam vistas da cidade, como se se tratassem de postais turísticos. Depois de sair do comboio, Banning entra num carro e regressamos ao regime do bilhete-postal, desta vez em travelling, simulando o ponto de vista da recém-chegada sobre a cidade.
Esta cidade, disse-nos Fassbinder nos célebres textos que escreveu sobre cinco filmes de Sirk em 1971, não é a Munique que os alemães reconhecem como sua, mas uma outra Munique, monumental, feita exclusivamente das superfícies das grandes vistas (Fassbinder escreveu que, neste filme, “tudo parece falso” [123]), em suma, uma cidade europeia vista pelos olhos de uma turista americana.
Interlude inscreve-se assim, desde o seu início, numa certa tradição do cinema clássico de Hollywood dos anos 50 que oferece o protagonismo a personagens (normalmente, mulheres) norte-americanas em viagem pela Europa. Três anos antes, outro cineasta europeu, Jean Negulesco, realizara aquele que se tornaria, porventura, o caso paradigmático deste género, Three Coins in the Fountain (A Fonte dos Amores, 1954), que também inicia com uma série de planos sobre a cidade de Roma, apropriadamente construídos segundo a mesma estética do bilhete-postal. Entre diversos exemplos possíveis, refiram-se Summertime (Loucura em Veneza, 1955), de David Lean, ou Rome Adventure (Viver é o que Importa, 1962), de Delmer Daves, dois filmes que, aliás, mencionei noutra ocasião, a propósito de The Talented Mr. Ripley (O Talentoso Mr. Ripley, 1999), de Anthony Minghella, um filme que, não obstante muito posterior, recupera, de alguma forma, esta tradição característica do cinema da década de 1950.
Se da obra de Minghella se espera um natural distanciamento crítico em relação a este género cinematográfico, proporcionado pela décalage de várias décadas, o mesmo não poderia esperar-se de Interlude, realizado em plena década de 1950. E, no entanto, a afamada ironia sirkiana dominará este filme, e manifestar-se-á em particular no jogo que nele se estabelece com esta tradição. Minghella opera no domínio da hommage ou do pastiche, e Sirk, com efeito, no da paródia.
Na verdade, o facto de o nome do cineasta surgir sobre o comboio que leva a protagonista à cidade europeia já aponta para um nível de reflexividade que está ausente, por exemplo, do filme de Negulesco. O comboio traz Helen Banning, interpretada por June Allyson, e traz também Douglas Sirk, reconfiguração de Detlef Sierck, o nome de nascimento do realizador e a ligação, oculta sob o nome anglicizado, à sua origem alemã; ou seja, também Sirk regressa à sua terra natal numa versão americanizada de si mesmo, para, pela primeira vez, ver e dar a ver o país de Sierck, o alemão, sob o olhar de Sirk, o americano. Num entendimento mais literal deste jogo, a personagem Banning verá a Europa pela primeira vez – é virgem (veremos que não uso o termo casualmente) de Europa –, enquanto Sirk a verá de novo – isto é, outra vez, mas também sob uma perspectiva inteiramente diferente – após duas décadas de exílio motivadas pela ascensão do regime nazi e após o tumulto da Segunda Guerra.
Em suma, se por um lado o filme faz coincidir as figuras da protagonista e do realizador através do movimento do comboio, estamos na verdade perante duas chegadas a Munique muito distintas entre si, porque uma delas consiste num regresso, e um regresso que não pode existir senão com uma parcela significativa de trauma: é um facto conhecido que o filho de Sirk morreu na Segunda Guerra, e que no ano seguinte ao de Interlude, em 1958, o cineasta realizaria uma adaptação de Erich Maria Remarque, A Time to Love and a Time to Die (Tempo para Amar, Tempo para Morrer, 1958), na qual analisaria os efeitos desta guerra na vida de uma rapariga e de um soldado alemão que não pode ser compreendido sem se tomar em consideração a imagem do filho ausente.
Esta estrutura dupla que o nome de Douglas Sirk sobre o comboio inscreve em Interlude manter-se-á durante toda a sua duração. O filme construir-se-á na confluência de dois universos, ou de duas mundividências: a das personagens americanas e a das personagens europeias (a cuja perspectiva Sirk claramente se associa). Este aspecto torna-se particularmente significativo se atentarmos no modo como Interlude se alia, nos planos iniciais construídos segundo a referida estética do bilhete-postal, ao género cinematográfico encabeçado por Three Coins in the Fountain. Trata-se de um cinema financiado por estúdios americanos, que visa servir como escape para um público largamente americano (curiosamente, muitas vezes realizado por cineastas europeus: Negulesco é romeno, Lean é inglês, Sirk é alemão, etc.), que vê na Europa do pós-guerra um novo idílio alcançado sob intervenção americana, um destino exótico e tipificado: o lugar da história, da cultura e do amor (vinculado, claro está, a uma certa libertinagem que se distingue, tentadoramente, do puritanismo americano).
No entanto, se o desenvolvimento de Three Coins in the Fountain corresponde efectivamente às coordenadas distintivas do filme escapista, fazendo com que as suas três personagens femininas, americanas, terminem o filme com os respectivos interesses amorosos (dois deles europeus, interpretados pelos bem-apessoados Rossano Brazzi e Louis Jourdan), no final de Interlude o esquema narrativo foi complexificado de tal forma, que já não estamos inteiramente no modelo leve, escapista, aliado à comédia romântica, que o filme aparentava ser no início, ao mostrar aquelas vistas descomplicadas de Munique. Interlude divide-se em duas partes distintas, correspondendo a primeira à comédia romântica, e a segunda a outra coisa que discutirei adiante.
Como num sonho
Chegada à Amerika Haus, um organismo cultural americano sediado em Munique, para o qual vai trabalhar, Helen Banning trava conhecimento com Prue Stubbins, a responsável pelo seu departamento, que lhe diz imediatamente, em suposto tom de brincadeira: “Now don’t tell me why you’ve come. You were unhappy in Washington. You wanted to get away, start a whole new, fresh romantic existence.” Neste momento, toca o telefone, que é atendido por Stubbins, ouvindo-se do outro lado da linha Dr. Dwyer, que deseja falar com a recém-chegada Miss Banning. A chefe não o permite, argumentando que durante o horário de expediente as suas funcionárias não podem conversar com homens.
O filme anuncia assim uma certa promiscuidade entre trabalho e amor. Ao telefone, Stubbins afirma não permitir que as suas funcionárias cruzem o horário de trabalho com o horário do amor. Contudo, antes disso, ao mesmo tempo que o espectador ficara a saber que a razão pela qual Banning se instala na Europa é laboral – contrariamente à personagem de Katharine Hepburn em Summertime, por exemplo, que viaja para Veneza enquanto turista –, Prue Stubbins minara imediatamente essa noção ao sugerir que Banning pode ter viajado para a Europa maioritariamente porque estava aborrecida nos Estados Unidos, e com o objectivo de iniciar uma existência nova, romântica, que não poderia levar a cabo na sua terra natal, uma Washington demasiado familiar.
A dicotomia trabalho/amor continua a ser desenvolvida. Ainda durante a conversa telefónica, Dr. Dwyer informa a chefe de que está a ligar na condição de médico de Banning, e não como um eventual interesse amoroso. Isto, porém, não corresponde inteiramente à verdade, uma vez que – saberemos logo depois – Banning e Dr. Morley Dwyer não se conhecem bem (nem ele é médico dela, sequer), e que na verdade se encontram em Munique porque as respectivas famílias, que mantêm relações em Washington, combinam esta união. Na verdade, ao mesmo tempo que diz estar a ligar apenas na condição de médico, Dr. Dwyer enceta uma espécie de flirt através do telefone, por interposta pessoa (Prue Stubbins, que nunca chega a passar o telefone), tornando claro que o seu interesse por Banning é mais pessoal do que profissional. E, no entanto, ele faz confluir repetidamente, no plano do discurso, esses dois domínios, por exemplo, quando afirma que a melhor forma de prevenção de doenças é a companhia do sexo oposto (“the best preventative therapy? As a medical man, I would say the company of the opposite sex”) – ou seja, a sua companhia –, antes de pedir a Stubbins que comunique a Banning que ele lhe telefonará nessa noite para poderem finalmente combinar um encontro.
Na sequência seguinte, ambos passeiam numa grande praça, como bons turistas. Ele diz-lhe, a propósito da sua especialidade profissional: “I’m a heart man”, como quem diz em simultâneo, no prolongamento da promiscuidade semântica que venho analisando, que é um cardiologista e também um romântico.
Dr. Dwyer é, assim, caracterizado como uma personagem alegre, sedutora e com um certo grau de inteligência. Ele é também introduzido, inequivocamente, como o primeiro interesse romântico de Helen Banning, sendo que é significativo que o encontro entre eles seja motivado pelas famílias de ambos, como se este fosse um “casamento arranjado”, à americana. Deste modo, de alguma forma, a personagem do médico embate no diagnóstico proferido por Prue Stubbins: se Banning se dirige à Europa para encontrar uma nova existência, um sonho romântico que seria impossível viver em Washington, não é Dr. Dwyer que lhe poderá oferecer essa experiência, uma vez que ele está definitivamente vinculado à sua terra natal, tendo-lhe inclusivamente sido recomendado pela família. Banning não vai à Europa procurar o que poderia encontrar na América, mas sim o exótico, o europeu.
Disto mesmo parece dar-se conta o médico na conversa que mantêm na praça, quando este afirma sentir que Banning se aborrece com as suas conversas, encontrando-se com ele apenas por se sentir na obrigação de corresponder ao arranjo de ambas as famílias. Ela nega, mas o espectador percebe que ele tem razão. Trata-se do segundo passo em que uma personagem secundária adquire a posição de intérprete no interior da ficção: antes, Stubbins dissera a Banning que esta não veio para a Europa trabalhar, mas sim viver uma aventura romântica; agora, Dr. Dwyer diz a Banning que, em suma, o interesse que esta sente por ele não é verdadeiro, mas sim fruto de um convencionalismo (que é, aliás, uma característica de todas as personagens americanas deste filme).
Estes dois diálogos alertam, desde o início, para a dimensão auto-reflexiva do filme, porque permitem ao espectador perceber que a realidade subterrânea do filme é discordante do cenário aparente que está a ser construído. A acrescer a isto, eles são também importantes enquanto elementos de caracterização da personagem de Banning, no contraponto com os seus interlocutores: tal como o espectador, também Prue Stubbins e Dr. Dwyer parecem compreender quem é verdadeiramente Helen Banning e quais as suas motivações. Ela é a única pessoa que não se percebe realmente, aquela que acredita que veio para Munique para obter um acréscimo de conhecimento (“to see [Europe], to find out more about the world”, nas suas palavras) e não para encontrar o romance, e que acredita apreciar genuinamente a companhia do médico, a qual, na verdade, a aborrece. O remanescente do filme voltará a sublinhar a inconsciência de Banning a partir da consciência das personagens secundárias.
O verdadeiro interesse romântico da protagonista aparece pouco depois. Trata-se de Tonio Fisher, interpretado por Brazzi (amante europeu de todos os filmes acima referidos, e ainda de The Barefoot Contessa [A Condessa Descalça, 1954, de Joseph L. Mankiewicz]), um maestro célebre, temperamental e intempestivo. Depois de se desentenderem nos primeiros encontros, Fischer interessa-se finalmente por Banning e convida-a para ir com ele a Salzburgo, num momento em que Munique é já apresentado como um lugar porventura demasiado pequeno para poder ocorrer nele a novidade e o entusiasmo, uma vez que começamos a ver Banning frequentar os mesmos lugares e a encontrar sempre as mesmas pessoas.
A viagem a Salzburgo retoma a estética bilhete-postal com a qual o filme iniciara. É interessante notar que, em toda a primeira parte do filme, o norte europeu é apresentado sob um céu limpo, com o sol a iluminar a paisagem, cujas cores garridas são sublinhadas pelo Technicolor. Em suma, dir-se-ia que Sirk está a figurar o norte à semelhança do modo como o sul da Europa é figurado na tradição de filmes à qual Interlude se filia inicialmente, bem como noutros filmes da mesma época que, não obstante não pertencendo estritamente ao mesmo género, mostram uma Europa idealizada e marcadamente veranil: Itália em Summertime e Three Coins in the Fountain, Espanha em The Barefoot Contessa e Pandora and the Flying Dutchman (Pandora, 1951, de Albert Lewin), a riviera francesa em To Catch a Thief (Ladrão de Casaca, 1955, de Alfred Hitchcock) e An Affair to Remember (O Grande Amor da Minha Vida, 1957, de Leo McCarey), etc. A apresentação de Munique e Salzburgo quase como se fossem cidades mediterrânicas agudiza a dimensão paródica do filme: Sirk, que conhece bem o norte europeu, está a vender estas cidades aos espectadores americanos, não como elas são percepcionadas pelos europeus (para os quais a distinção entre norte invernoso e sul estival é efectiva), mas como os americanos – que pouco sabem sobre o velho continente (lembremo-nos de que os filmes desta linhagem não são dirigidos a um público culto) – as imaginam, de acordo com os filmes que viram.
Numa típica dobra auto-reflexiva deste problema, no preciso momento em que Brazzi convida Banning para o acompanhar numa visita a Salzburgo, esta diz-lhe que leu muito sobre essa cidade, a cidade de Mozart e dos festivais. Se não era já evidente, torna-se então claro que Banning é uma sonhadora, uma mulher que – tal como os espectadores-alvo deste filme – aprendeu o continente europeu nos livros, nos filmes e nos postais. Como consequência disto, a sua experiência do mesmo não pode senão estar contaminada, desde logo, por um imaginário que lhe foi soprado por todos esses objectos representativos. Em suma, a sua experiência efectiva – real – da Europa não é indestrinçável da leitura de livros, do visionamento de filmes e da contemplação de postais. É por isso que, nesta primeira parte do filme, Sirk nos apresenta a Europa dos livros, dos filmes e dos postais: a única que Banning consegue ver no início da sua estadia. E, contudo, Banning já não está a ler um livro, ou a ver um filme, ou a contemplar postais. Ela está efectivamente na Europa, a qual não se revelará inteiramente semelhante a essas outras Europas sonhadas.
Que Banning vive dentro de um sonho começa a sugerir-se justamente na sequência de Salzburgo. Durante a viagem de carro, ela descreve-se como “a nice, quiet, uncomplicated optimist”. Chegada a Salzburgo, diz que desde criança lera sobre aquele lugar: “the old castles, the famous rivers, Mozart’s music…”, e prossegue, dando conta da transição do mundo dos livros para o plano da experiência: “And now, here I am”. No entanto, esta transição não implica necessariamente uma cisão entre os dois planos. Pelo contrário, Banning rapidamente exclama: “The mountains, the castles… You know, it’s just like a fairy tale!” O espectador é assim lembrado de que está a assistir ao conto de fadas de Helen Banning.
Na segunda sequência em que o casal se reúne, novamente fora de Munique, no campo, para um piquenique, Banning volta a mencionar a sua infância. Na verdade, em diversos momentos se sublinha o carácter de certo modo infantil desta personagem, quer seja através das suas constantes alusões à infância, quer seja através da marcação do seu temperamento simples e “uncomplicated”. Mas esta caracterização acontece também a outros níveis: durante todo o filme, Helen Banning está vestida de branco, numa forma de reiterar simbolicamente a sua inocência (também pureza e virgindade, evidentemente), sendo que os seus vestidos têm por vezes algo de infantil, em particular na cena do piquenique; num passo posterior, Tonio servir-lhe-á café ao pequeno-almoço, perguntando-lhe se deseja um ou dois cubos de açúcar, ao que ela responde querer quatro cubos, no que é simultaneamente uma afirmação da dimensão açucarada da personagem e da sua infantilidade.
No decorrer do piquenique, Helen diz a Tonio: “all of my life I wanted to come to Europe. And I always dreamed it would be just exactly like this”. Nesse preciso momento, ouve-se o som de um trovão. “A storm is coming”, diz ele, e com a tempestade vem o anúncio de que o sonho de Helen Banning se transformará num pesadelo.
Os sonhos dos outros
Que a mudança de registo que mencionei atrás – do sonho para o pesadelo, da comédia romântica para o melodrama – seja marcada através do recurso a uma tempestade tem diversas implicações. Num primeiro nível, é evidente que a carga simbólica da tempestade se prende, na tradição romanesca, com o perigo, com um prenúncio de tragédia. Há, no entanto, outra dimensão que deve ser tomada em linha de conta na análise de Interlude, e que se relaciona com o que escrevi a propósito do modo como as cidades de Munique e Salzburgo são figuradas ao longo do filme. Durante toda a primeira parte, a Europa é apresentada sob um sol exuberante que, iluminando o mundo a pique, impossibilita a existência de sombras. Em termos visuais (geométricos, mesmo), o mundo apresentado na primeira parte do filme de Sirk é um mundo sem sombras, em que tudo o que pertence ao domínio do visível está iluminado. É um mundo positivo, “optimista” como Banning, achatado e sem densidade. É, em suma, um mundo feito de superfícies resplandecentes, como o dos postais turísticos. A apresentação deste mundo depende, assim, da existência do sol (cuja presença Tonio adequadamente faz notar quando chega a Salzburgo: “Salzburg in sunshine!”), e a tempestade que se faz anunciar através do ruído do trovão constitui-se como uma ameaça à presença do sol e, consequentemente, no esquema simbólico que o filme está a trabalhar, ao mundo diurno que tem vindo a ser apresentado.
Em suma, a tempestade fará surgir uma nova ordem das coisas na qual nem tudo está iluminado, em que há zonas de luz mas também de sombra. Se o filme até então trabalhara a ideia de um mundo da superfície epidérmica, operará a partir deste momento no sentido de revelar aquilo que se esconde debaixo dessa superfície. Trata-se, afinal, daquilo que Sirk explorou em vários dos seus melodramas mais célebres, particularmente em All that Heaven Allows (Tudo o que o Céu Permite, 1955) e Written on the Wind (Escrito no Vento, 1956), nos quais é muito evidente a tensão entre uma ordem social aparentemente não problemática, e uma matéria apodrecida que, afinal, lhe subjaz. Contudo, devido ao próprio trabalho sobre a imagem, Interlude trabalha iconicamente esta carga simbólica que os outros filmes desenvolvem essencialmente ao nível da narrativa (porém, não só; basta pensar na importância das superfícies reflectoras em ambos os filmes, que aponta justamente para a dimensão deceptiva dos “mundos de aparências” que constituem a realidade social em que ambos os filmes se ambientam).
Ingressamos, então, com Helen, no mundo das sombras. O casal refugia-se da tempestade na casa de campo dele, e logo ao chegarem vemo-los, alternadamente, reflectidos no espelho. Tonio diz-lhe que ela cozinhará para ambos, e que ele tratará de acender a lareira, numa distribuição de tarefas que sinaliza a entrada, enfatizada pela presença do espelho em campo, num mundo de faz-de-conta em que Tonio Fischer e Helen Banning mantêm uma relação conjugal – apontando-se assim para o desejado happy ending, com o casamento entre eles, e o happily ever after.
Depois do jantar, vemos Tonio a tocar piano para Helen Banning, sentada ao fundo da sala. Este plano recupera um outro, anterior, em que ele tocara piano para uma outra mulher.
Algo que neste momento o espectador já sabe, mas Helen ainda não, é que Tonio Fischer é casado com uma mulher enlouquecida. Deste modo, o espectador atento perceberá que a sequência na casa de campo serve, na verdade, na economia narrativa e visual do filme, para colocar Helen Banning no lugar da outra: primeiro, quando o homem encena uma relação conjugal com a divisão das tarefas domésticas, e depois, quando vemos Helen Banning inserida numa mise en scène muito próxima daquela a que se assistira na primeira aparição da esposa de Tonio.
No entanto, este movimento de repetição instaura algumas variações importantes. Em primeiro lugar, e de forma evidente, na segunda instância a mulher é outra. Em segundo lugar, o primeiro plano dá a ver a esposa reflectida no espelho do piano, ao invés de permitir o acesso directo ao seu corpo, no que é uma forma inteligente de tornar manifesto, por meios inteiramente visuais, a loucura desta mulher, isto é, a sua condição especular, “presa” na moldura do espelho (e também na tapeçaria, à qual, num primeiro olhar, parece pertencer), que, por sua vez, é um espelho situado no piano do marido por amor ao qual, saberemos mais tarde, ela enlouqueceu; Banning, por seu turno, é apresentada sem um espelho que a deforme, afirmando-se através de um efeito de presença que é terminantemente negado à outra. Em terceiro e último lugar, ao passo que Tonio Fischer toca a consolação n.º 3, de Liszt, para a sua esposa, para Banning ele toca o tema-título do filme, elaborado pelo compositor da banda sonora, Frank Skinner. Esta espécie de metalepse, que consiste em trazer para o interior do filme a música que à partida lhe é exterior, é particularmente significativa porque, através de um efeito de auto-referencialidade (estranha, quando, de resto, Tonio toca apenas composições históricas, de Wagner, Liszt ou Beethoven), reitera a ideia de que o filme, Interlude, é aquilo que une artificialmente (e precariamente, porque Skinner não é Wagner, Liszt, ou Beethoven) estas duas personagens.
No dia seguinte à noite passada na casa de campo, na qual se dá um encontro amoroso (que representará, provavelmente, a perda da virgindade de Banning), o casal planeia viajar para Estocolmo, onde Tonio tem agendado um concerto. Antes, porém, é necessário passar pela casa dele, onde ele lhe pede que aguarde num pavilhão anexo à casa principal. Helen e Reni encontram-se e iniciam um diálogo (ou, mais especificamente, tem início um monólogo alucinado de Reni), durante o qual a primeira descobre que a segunda é esposa de Tonio, que chega entretanto ao pavilhão, deparando com as duas.
Em campo, vêem-se então as duas mulheres, o homem e um retrato de Reni. A esposa faz notar que Helen Banning usa o cabelo como ela (“we wear our hair alike”), apenas para levar a mão ao cabelo e aperceber-se de que, afinal, ela usa o cabelo apanhado, e não como o de Banning: “that’s how I used to wear my hair”, e nesse momento o espectador é convidado a olhar com atenção para o retrato, onde Reni é pintada com um penteado igual ao de Helen Banning. Nesse retrato, Reni é apresentada com o mesmo penteado de Banning, sorrindo como Banning sorri durante todo o filme (ao contrário de Reni, cujo semblante se encontra sempre opaco) e vestida de branco, a cor que Banning veste até ao final (“I love your dress. It’s white, isn’t it?”).
Percebe-se então, em suma, que Helen Banning é semelhante à Reni Fischer do passado, de quando esta era uma mulher mentalmente sã, feliz, que, segundo conta ela, dançava com o marido em bailes durante noites inteiras, como se juntos constituíssem um dos casais de Max Ophüls. Deve então desconfiar-se de que Tonio escolheu Helen, de entre todas as mulheres do mundo, porque esta se assemelha à mulher que ele amou no passado e perdeu para uma doença mental, o que o aproxima dos protagonistas de, entre outros, Daydreams (Yevgeni Bauer, 1915), Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958, de Alfred Hitchcock) ou Les parapluies de Cherbourg (Os Chapéus-de-chuva de Cherburgo, 1963, de Jacques Demy).
O filme de Sirk ensaia um jogo muito próximo daquele proposto por Charlotte Brontë em Jane Eyre. Quando Jane Eyre se encontra com Mr. Rochester na capela, a fim de contrair matrimónio, a cerimónia é interrompida por um homem que anuncia que a união não pode efectivar-se porque Mr. Rochester está, na verdade, casado com Bertha Mason. Esta mulher está viva, porém enlouquecida, e mantida isolada no sótão de Thornfield Hall. Esta situação narrativa é particularmente surpreendente e marcante na economia narrativa do romance de Brontë porque o leitor está a ler um livro intitulado Jane Eyre, que é sobre a vida dessa mesma personagem, sendo inclusivamente escrito na primeira pessoa. Isto é, o protagonismo de Jane Eyre neste livro homónimo é indiscutível, e, contudo, o que esta sequência narrativa põe em evidência (para o leitor e para ela) é que a narrativa pessoal desta mulher se cruza com uma outra narrativa pessoal, a de Bertha Mason, na qual Jane assume inevitavelmente um papel secundário, o papel da outra (Jean Rhys aproveitaria esta mesma relação quiasmática para escrever Wide Sargasso Sea, que toma Bertha como protagonista).
Algo da mesma ordem acontece em Interlude. Se todo o filme fora centrado em Helen Banning, e em particular na possibilidade do seu romance com Tonio Fischer, o espectador é agora levado a questionar esse protagonismo, não só porque, como em Jane Eyre, a protagonista é aqui revelada como a outra, ou a segunda mulher, mas particularmente porque o filme nos diz, através do retrato, que Helen Banning é uma espécie de duplo de Reni, um substituto de um original perdido, e que esta é a única razão pela qual Tonio Fischer se apaixonou por ela. Ou seja, ele apaixonou-se por ela devido àquilo que ela não é. De alguma forma, se a mulher no retrato é aquela que Tonio amou no passado (o filme deixa isso claro), das duas mulheres que ele tem agora disponíveis, Helen Banning é aquela que se parece mais com o retrato, uma vez que Reni já nada tem que ver com a mulher que fora outrora, estando agora condenada à condição arquetípica, como Bertha Mason, de madwoman in the attic. Assim, é a própria americana que corresponde agora a um postal fantasioso.
Desiludida, Helen Banning afasta-se de Tonio. Estamos então no momento protocolar da comédia romântica em que o par se separa, a cerca de 2/3 do fim do filme, para se poder reencontrar no final e cumprir assim o happy ending. É justamente esta abertura, a um happy ou a um unhappy ending, que o filme trabalha a partir de então. Há dois cenários alternativos: de acordo com a comédia romântica protagonizada por Banning e Fischer, um happy ending corresponderia à união final do par. Mas há Reni, que, ao contrário de Bertha Mason (que, no romance de Brontë, nunca deixa de ser uma personagem indubitavelmente secundária), adquire aqui uma relevância que impede que ela seja desconsiderada.
Algum tempo depois da separação, Helen Banning volta a unir-se a Tonio, encaminhando assim o filme para o happy ending. Perto do final, ela está a assistir a um concerto dele, quando Reni a interpela. Helen está vestida de branco, e Reni de preto. Helen é a noiva (porque neste momento o filme está aparentemente encaminhado para o final feliz), o bem, a heroína; Reni é a viúva (porque o seu marido vai abandoná-la), o mal, a vilã. E, contudo, todo este esquema deve ser adornado por um “e vice-versa”, uma vez que sejamos sensíveis à narrativa pessoal de Reni, que nos é apresentada como uma mulher normal – e não viciosa, como Bertha – cujo único erro foi amar demasiado [um título adequado para o filme de Reni seria a versão portuguesa de Leave Her to Heaven (1945, de John M. Stahl): Amar foi a minha perdição].
À semelhança de Prue Stubbins e de Dr. Dwyer no início, Reni começa por diagnosticar Helen Banning como uma sonhadora: “You wretched office girl with your penny book dreams. You think you’ll have it? A grand love, a big romance!” E acaba por suplicar à americana que não lhe roube o marido, porque ela não poderia viver sem ele. Piedosa, Helen conduz a louca para a mansão dos Fischer, deixando-a a repousar na cama antes de ir fazer um telefonema. Ao regressar ao quarto, Reni já não se encontra lá, pois fugiu com o intuito de se suicidar no lago, tal como Luís II, o rei louco de que se falara anteriormente no filme. Helen persegue Reni e salva-a do afogamento.
Reni é posta ao cuidado de médicos, e Tonio chega. Pela primeira vez no decurso de Interlude, Helen não é vista vestida de branco (com a ocasional cor muito clara), pois em cima do vestido tem um sobretudo azul escuro, numa sinalização clara de perda da inocência. Se durante todo o filme Helen Banning fora apresentada como uma personagem descomplicada, incapaz de raciocinar e perceber os fenómenos à sua volta (antes, ela dissera: “I don’t know if it’s intelligent or not intelligent, I can’t reason things out the way you do”), nesta sequência o seu discurso revelar-se-á clarividente. Ela conta a Tonio o sucedido, e anuncia-lhe que regressará para os Estados Unidos no dia seguinte, com Morley, o Dr. Dwyer. Revela ainda ter percebido ser uma sonhadora ingénua que procurava na Europa a materialização da imagem romântica que os livros lhe impingiram (“I came to Europe… I guess I was looking for the impossible… The notions you pick up as you go along, romantic book notions”). Diz ainda que, quando viu Reni a atirar-se ao lago, desejou, por um instante, fingir que não estava a ver. Isto é, deixá-la morrer, o que possibilitaria o seu happy ending com Tonio. E, contudo, escolheu salvá-la, sacrificando o seu happily ever after.
Torna-se aqui muito claro algo que já se anunciava nas sequências anteriores, que a americana sente uma forte empatia pela alemã. Afinal, Banning é uma sonhadora, uma leitora de romances infectada por “romantic notions”, e não há maneira de uma mulher romântica não ser sensível a uma personalidade como a de Reni, que literalmente enlouqueceu de amor. Banning, por seu turno, não enlouqueceu de amor: “Tony, I thought I loved you more than anything else in the whole world. But I don’t love you enough for that [para ser responsável pela morte de Reni]”. E continua: “She can’t live without you”. Como se pudesse acrescentar depois: “and I can”. O que ela está a dizer é que nunca amou Tonio tanto como Reni. Em suma, Helen Banning percebe por fim que viajou para a Europa para viver um grande romance na primeira pessoa, mas acabou por não ser muito mais do que a personagem secundária – porém, não desprovida de importância – num romance desmesurado, maior do que alguma vez ela (mulher simples e descomplicada) poderia ter vivido: o de Reni Fischer. Em certa medida, enquanto Doppelgänger de Reni (algo que ela mesma percebe no final, exclamando: “Oh, Toni, don’t you see? Everything you looked for in me, everything you loved in me, it was only what you’d lost in Reni”), Helen acaba também por viver, vicariamente, essa história de amor. Enquanto leitora profissional, isto é o máximo a que ela poderia aspirar.
É assim que, de comédia escapista, Interlude se materializa num melodrama denso, um Bildungsroman sobre uma criança que se torna numa mulher. A meio do filme, na cena do piquenique, Helen contara a Tonio uma história de infância sobre como sofreu silenciosamente por ser a única criança da sua rua sem uma capa, numa altura em que as capas se tornaram numa moda, apenas para vir a ser presenteada pelo pai, no final, com a mais bela capa da rua: “and that day I knew that if you wait, if you only hope, you always get what you want”. Ludibriada pela lição de vida que precipitadamente extraiu deste episódio de infância, Banning viajou para a Europa crendo que viveria aí a grande aventura romântica que os livros a levaram a desejar. Mas Sirk ensinou-lhe, com Interlude, a lição de que os sonhos devem existir à medida de cada um, e que, nesta Europa, que não é a Europa da classe média americana, Helen não poderia senão ocupar o papel secundário num outro melodrama, com uma complexidade emocional à qual ela não poderia nunca almejar. No fim, ela regressa a Washington, casa com o boçal Dr. Dwyer e torna-se espectadora dos glossy melodramas de Douglas Sirk.
Referências bibliográficas
Fassbinder, Rainer Werner (2002), “Imitação da vida – sobre os filmes de Douglas Sirk”, in Antonio Rodrigues (org.), Douglas Sirk. Lisboa: Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, 114-131.