Bogdanovich: The end of Fort Apache anticipates the newspaper editor’s line in Liberty Valance, ‘When the legend becomes fact, print the legend.’ Do you agree with that?
Ford: Yes—because I think it’s good for the country. We’ve had a lot of people who were supposed to be great heroes, and you know damn well they weren’t. But it’s good for the country to have heroes to look up to.
Peter Bogdanovich, John Ford
“Quando a lenda se torna facto, imprime a lenda.” Este aforismo dito perto do final de The Man Who Shot Liberty Valance (O Homem Que Matou Liberty Valance, 1962) foi, de alguma forma, transformado numa justificação para as intenções artísticas da obra do seu cineasta, John Ford. Mas esta “ultra-citada epígrafe à obra de Ford” (como o coloca Bénard da Costa na sua crítica, a mais bela que conheço dedicada a este filme) tem mais de facilitismo redutor do que de honestidade analítica, uma vez que, como Peter Bogdanovich aponta na monografia que dedicou ao realizador americano, ironicamente, Ford dá ao espectador o facto. Certamente que houve casos em que o seu olhar romantizado prevaleceu, mas Ford foi uma personalidade complexíssima, quase paradoxal, que ora engrandecia o mito [My Darling Clementine (A Paixão dos Fortes, 1946)], ora o desconstruía [Fort Apache (Forte Apache, 1948)]. E é com The Man Who Shot Liberty Valance que mais eloquentemente avaliou o papel que a História, vítima tantas vezes de obscurantismo, tem na estruturação da consciência social e identitária dos Estados Unidos, através de um olhar cínico que não deixa de se mostrar complacente.
É inevitável não salientar toda a atmosfera fúnebre em que esta obra se encontra construída desde o começo. Ford, que havia já demonstrado domar magistralmente a cor através de um Technicolor de tonalidades quentes à beira da sobressaturação [She Wore a Yellow Ribbon (Os Dominadores, 1949), The Quiet Man (O Homem Tranquilo, 1952), The Searchers (A Desaparecida, 1956) ou 3 Godfathers (Os 3 Padrinhos, 1948), para citar apenas alguns casos], optou aqui por recorrer, de forma emotiva e auto-consciente, a um preto-e-branco serodiamente soturno. A sua domação poética na composição pictórica dos espaços abertos é abdicada em prol de uma maior teatralidade, fixada nos interiores dos vários edifícios comunitários da cidade de Shinbone. É um Ford magoadíssimo, sujo na forma como regista a brutalidade física com que cadeiras são arremessadas contra janelas largas, contuso na tonalidade escura com que o sangue derramado cai para a poeira que cobre as ruelas citadinas, nostálgico na maneira como as personagens acarretam, nos seus olhares amargos e introspectivos, o pressentimento de um derradeiro adeus. Dito de maneira simples, The Man Who Shot Liberty Valance é a elegia definitiva ao western.
Olhar para a personagem de Ransom Stoddard (James Stewart) é reconhecer o herói fordiano mais clássico: o do indivíduo casto, honesto, liberal, tolerante, que acredita piamente na Lei e nos seus valores humanistas. Uma figura arquetípica do universo do cineasta, tantas vezes corporalizada na postura continente de Abraham Lincoln (aqui presente num retrato dependurado na sala-de-aula, onde é ensinada a Constituição aos habitantes da cidade). E, de facto, não há diferenças atenuantes entre a personagem de Stewart com a do presidente num estado mais pueril, o qual Henry Fonda havia inesquecivelmente encarnado em Young Mr. Lincoln (A Grande Esperança, 1939). Mas, ao contrário de Lincoln, a defesa do que é verdadeiro e correto por Stoddard é ridicularizada pelas duas figuras centrais que habitam em Shinbone: a do beligerante Liberty Valance (Lee Marvin), que rasga os livros de Direito e agride desenfreadamente Stoddard quando se cruza com ele, e a do íntegro Tom Doniphon (John Wayne), quando adverte o advogado, enquanto empunha o revólver, “I know those law books mean a lot to you, but not out here. Out here, a man settles his own problems.” A Lei (Stoddard) é assim mostrada, alegoricamente, impotente contra a violência endémica do Velho Oeste, transparecida pelos seus justiceiros (Doniphon) e vilões (Valance).
Mas a História necessita que Stoddard seja o herói, pois ele representa o Novo Homem (“peregrino”, é assim que lhe chama Doniphon), isto é, aquele que expõe as falhas ideológicas da sociedade em que se vê inserido, para reconstruí-la o mais proximamente possível de um conceito utópico. Stoddard é o progresso, e o não ser canonizado com o epíteto que dá origem ao título do filme, representa uma derrota reaccionária dos valores de fraternidade e justiça fundamentais que simboliza. Daí ascende a necessidade da criação do mito, que se opõe à realidade. Ford intensifica este contraste entre mentira e verdade pela sua mise en scène na batalha climática, vista sob duas perspectivas. Primeira, a de “a lenda”. Ford coloca-nos no meio da acção e transmite-nos a subjectividade de Stoddard (“subjectividade” no sentido estritamente psicológico, distinto do “plano subjectivo”, isto é, a câmara a ocupar o espaço físico do actor), que é também a que ficará registada na memória dos habitantes de Shinbone. Para isso, serve-se de uma montagem mais trabalhada e de um maior número de planos que obriguem a salientar o ponto-de-vista de Stoddard. E então, no alpendre, após o advogado sair armado das trevas que o cobriam, deparamo-nos com o plano médio onde vemos o seu rosto assustado (#1), ao qual é colocado, em contra-campo, outro com Liberty Valance a disparar, com uma expressão intimidante (#2). Voltamos à posição da câmara em #1, onde é ferido o braço de Stoddard, obrigando-o a largar a arma (#3). Retorno a #2, com a gargalhada solta de Liberty (#4), seguido por um campo/contra-campo onde as posições #3 e #4 são retomadas para mostrar a recuada de Stoddard do alpendre para ir apanhar a arma (imagens não apresentadas), introduzindo um plano geral com Stoddard a tentar debruçar-se sobre ela (#5). Este gesto é interrompido por Valence que, vemos num grande plano do revólver, dispara perto da arma do adversário (#6). E #5 é retomado (o plano mais longo desta sequência), com Stoddard a debruçar-se para recuperar o revólver e a regressar ao alpendre (#7). Plano médio com Liberty a engatilhar a sua arma (#8) e, finalmente, um plano geral com Liberty a ser atingido (#9).
Trata-se de uma sequência rica e rigorosa na sua construção onde, nos enquadramentos que são partilhados pelos dois oponentes, Stoddard ocupa sempre o primeiro plano e Valance o de fundo, sendo uma linha diagonal traçada entre estes dois elementos pelo palanque à porta do edifício, que orienta, harmonicamente, a progressão visual do enquadramento, ao qual a figura de Stoddard estará subjugada no plano #9. O espectador antevê assim de onde virá o disparo e é preparado para aquilo que já sabe – Stoddard matou Valance – ao mesmo tempo que percepciona a série de reacções que a personagem do advogado passa – medo (#1), dor (#3), esforço (#5 e #7) e alívio (#9). O ritmo na montagem na organização de cada um destes planos cria um estado de suspense que só entra em estado de descompressão quando o projéctil é finalmente lançado, obedecendo a um determinismo histórico transmitido numa organização espacial que se reitera e prepara, psicologicamente, a audiência para o desfecho desta sequência. Por todo este processo vagaroso de construção cénica, Stoddard surge aos nossos olhos como um herói, visão essa partilhada daí em diante pelos habitantes de Shinbone.
A découpage acima transposta entra em contraste com a encenação de “o facto”, que ocorrerá mais tarde. Poucos dias depois da batalha que lhe trará fama, Stoddard ver-se-á confrontado por Doniphon, onde “a lenda” será desmentida através de um flashback dentro do flashback, que parte do fumo do cigarro que o rancheiro expele para a câmara (um “fumo de memória” que desvanece quando Ford o transforma, engenhosamente, num dissolve para aquela noite), onde o duelo é desenvolvido sob outro ponto-de-vista. É eliminada a subjectividade de uma personagem, para prevalecer a objectividade imagética de Ford. Como? Nesta reencenação, a câmara encontra-se colocada numa posição mais meditativa, com a grande angular a englobar o espaço como um todo e com todos os seus intervenientes. Este plano geral, longo e de foco profundo, mostra a acção com Doniphon, em primeiro plano, a matar Valance num tiro certeiro que coincide com o instante em que o falhado de Stoddard é disparado. O espectador é aqui apenas uma testemunha neutra do evento, e a secura com que a cena é tratada (um único plano não antecipado por um outro semelhante, bem como uma menor manipulação temporal) faz com que, o que antes parecia ser um homicídio em legítima defesa se revele como um homicídio a sangue-frio. A reacção emocional que temos não é a de alívio, mas de choque. Um choque em ver este assassínio feito de forma fria a partir das sombras, que Ford catapulta como um choque de revelação da verdade sobre a identidade do verdadeiro assassino. Ford rejeita a simplicidade da “lenda” que antes nos havia sido fornecida pela montagem, dá-lhe uma complexidade moral acrescida pela fotografia e, com isso, chega ao “facto”. E é esta revelação que, narrativamente, provoca a anagnórise aristotélica em Stoddard, dando-lhe uma auto-absolvição por um crime que nunca cometeu, assim como a resolução em ascender ao poder político.
Doniphon torna-se então [juntamente com a Dra. Cartwright de 7 Women (7 Mulheres, 1966)] talvez a personagem mais nobre de um filme de Ford, com a passividade que acarreta ao deixar que Stoddard construa a sua carreira numa mentira e nos pecados do rancheiro. Ele é o outro herói fordiano (o Ethan de The Searchers, por exemplo) que, como diz Tag Gallagher em John Ford: The Man and His Films “consciente dos seus pecados e defeitos, não pode alcançar a Terra Prometida”. Quando vê a rapariga que ama, Hallie (Vera Milles), abraçar apaixonadamente Stoddard depois do duelo, percebe que é a figura frágil e pura do delegado que permite a elevação de Shinbone para fora dos seus limites de intolerância e violência, a transição de uma antiga ordem social para a sociedade moderna, a entrada de um movimento historicamente progressivo em constante andamento, tão bem representado pela figura da locomotiva [metáfora retomada e aprofundada por Sergio Leone, cineasta que tinha este Ford como o seu favorito, no épico Once Upon a Time in the West (Aconteceu no Oeste, 1968)] com que o filme se inicia e encerra. Tom sabe, Stoddard sabe, e a imprensa sabe. O Velho Oeste, representado pelo primeiro, tem de dar lugar ao Novo, personificado pelo segundo. Em nome da História, ou talvez apenas da felicidade de Hallie, Tom sacrifica-se e aceita o oblívio eterno, cavalgando solitariamente rumo ao eremitério do deserto árido, onde não conseguirá acompanhar as evoluções civilizacionais que se seguirão por causa do seu gesto, que mais não lhe deixará que quatro pessoas no seu velório, onde jazerá descalço e com ninguém a saber o seu nome.
Que mais há a apontar? Que mesmo sendo um Ford peculiar, reitera velhos gestos, como a rapariga que, no alpendre, vê o cavaleiro solitário a partir (imagem tão iconográfica da obra fordiana); que muito se vê e se fala em sinos entre Doniphon e Hillie, os quais nunca dobrarão; que o tema musical lírico que percorre a banda sonora não diegética no momento em que se dá a chegada de Hillie à antiga casa de Doniphon é, na realidade, o mesmo que toca quando a personagem de Henry Fonda visita a campa de Ann Rutledge em Young Mr Lincoln (melodia que simboliza em ambos os filmes três coisas: o amor juvenal, a morte inevitável e a saudade que fica, uma trindade cristalizada sob a forma de uma viuvez por um casamento que nunca chegou a acontecer). É este olhar desencantado, embebido em melancolia e remorso, que faz The Man Who Shot Liberty Valance o epitáfio mais bonito que acompanha o caixão do western. Talvez seja isto. Talvez esteja tudo naquele grande plano com o cacto florido, último vestígio do Velho Oeste, colocado por Hillie na campa do defunto, onde nunca tivemos tanta certeza da finalidade do gesto do rancheiro. A possibilidade de surgir algo delicado no ambiente mais selvagem (“It was once a wilderness; now it’s a garden”, dirá ela na cena seguinte, enquanto olha pela janela do comboio). A crença de que a beleza (a rosa) se possa erguer imperecível, tal é a resiliência da estrutura em que se assenta (o cacto). A capacidade de nascer, de uma estrutura bruta e espinhosa, um ser de uma pureza singela. De um facto brotar, enfim, uma lenda.
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