Lucrecia Martel é talvez a realizadora mais influente do século XXI. O seu cinema tornou-se imagem de marca da produção cinematográfica argentina e, de modo mais lato, um modelo para muito do cinema de autor contemporâneo, um pouco por todo o mundo. O Luís Mendonça inventou a expressão dos filmes “martelados” e de facto, como o vidro do mesmo nome, o olho de cada realizador lucreciano torna-se difuso, sem fundo, abstracto. Nos seus filmes há sempre um mal-estar que ferve debaixo de uma aparente tranquilidade. Uma qualidade vegetal (para não dizer vegetativa) que observa o drama a partir de um ponto de vista narcotizado, indiferente, cerebral. Essa estranha sensação de incómodo surge através do seu gosto pelos planos longos, por um ritmo narrativo muito espaçado, pelo recurso às elipses nunca explicadas e pelo silêncio que quase sempre se impõe como um sublinhado – veja-se a sua curta Muta (2011) onde se cristaliza o seu olhar num exercício de estilo para a marca de roupa Miu Miu. Zama (2017) é um filme que parece construído sobre uma ideia de silêncio muito palavroso (e quando digo silêncio, penso em mudez, e de forma mais lata, nas várias formas de amputação do sentidos, que o filme investiga, um por um).
O novo filme de Martel segue, em certa medida, a investida da realizadora no cinema de género que La mujer sin cabeza (A Mulher Sem Cabeça, 2008) constituíra. Onde esse era uma thriller psicológico, este é um filme de época que se aventura pela fantasmagoria e termina como survival horror. Nesse sentido o modo como a cineasta argentina pensa o género do filme de época partir de uma perspectiva quase historiográfica, transforma Zama num tratado sobre o silenciamento histórico dos povos indígenas da América do Sul. Silenciamento literal por a sua presença no filme se resumir a gestos de serventia e, só muito raramente, a uma ou outra linha de diálogo. Gestos esses que Martel faz questão de salientar: o som do abanador que um escravo opera sobrepõe-se ao diálogo entre os senhores, a presença de vários servos mudos (e a referência de que a sua mudez lhes retira direitos, como o de casar), ou com outras incapacidades, como o coxear ou a tribo de índios cegos que vagueia na noite (cegos por acção dos colonizadores). E também as referências, recorrentes, à insensibilidade ao mau cheiro dos corpos putrefactos (uma mão necrosada, uma orelha amputada, um cadáver pendurado numa árvore, por oposição aos “elegantes” perfumes das gentes finas de Buenos Aires). Tudo a terminar com o a sequência final do filme que, literalmente, impõe no colonizador esse efeito de amputação.
Martel é tanto melhor quando o seu cinema não tem pudor em abrir-se ao inesperado, levando-nos num caudal de imagens e sons que que revelam o cinema como um território de infinitas possibilidades.
Mas, em boa verdade, este mais recente título da realizadora (depois de um intervalo de quase uma década), torna explícito aquilo que vários dos seus filmes anteriores já anunciavam, de forma subterrânea. Por exemplo La Ciénaga (O Pântano, 2001) retratava já uma família burguesa de classe média-alta que destratava os seus criados ameríndios, acusando-os de preguiça e roubo. Mas também várias das suas curtas abordavam esta questão: Leguas (2015) descrevia a segregação dos ameríndios no sistema de ensino na Argentina (como parte de um projecto maior sobre o abandono escolar na América do Sul) e Nueva Argirópolis (2010), no seu misterioso caudal de movimentos, gestos e olhares, tecia uma trama de narrativas fragmentárias que compunham um retrato coral da população ameríndia contemporânea, do ecrã do computador à formação das ilhas no rio Bermejo, passando pela língua e pelos seus ofícios. Filme esse baseado na proposta de confederação sul-americana que Domingo Faustino Sarmiento propusera em 1850 (e que dá o título ao filme). E claro, também La mujer sin cabeza, onde uma mulher à qual tudo deveria correr bem se vê abalada por um safanão psicossomático (?), que no fundo é uma parábola sobre a sua má consciência de classe.
Mas talvez o melhor de Zama se prenda com o desprendimento do seu tomo final, quando o filme se esquece (ou deixa de dar tanta importância) ao pensamento da história e se afunda na decadência nauseabunda de um colono caído em desgraça. Quando o filme se aproxima de um onirismo que faz lembrar o cinema de Carlos Reygadas, e a selva se transforma em local místico onde tudo se confunde e a linearidade deixa de fazer sentido [que, de certa maneira, faz lembrar outro “filme histórico” e outra “selva” e outra “via crucis”, as de O Ornitólogo (2016) – talvez pela presença em ambos do director de fotografia Rui Poças], aí Lucrecia liberta-se do seu torpor e com ela também o espectador acorda para um filme que realmente lhe diz qualquer coisa fora da aborrecida (ainda que exaustiva e laboriosa) lição de história. Mas claro, Martel filma esplendorosamente, pensa a composição e a encenação de formas virtuosas, e, por exemplo, o modo como faz da presença dos animais veículo de estranheza (aquele lama!) ou como o (quase) primeiro plano e o (quase) último plano do filme se comunicam directamente em sentidos inversos é, no mínimo, digno de uma nobre vénia.
A juntar a isso, é também salutar o fino sentido de humor que se torna agora mais evidente, numa carreira que tendia para o sorumbático. Aliás, os créditos de abertura, sobre as imagens submarinas de peixes, remetem directamente para aquele que é o mais divertido filme da realizadora, e também o mais irónico (por ajudar desfazer um pouco o mito que Lucrécia criou para si de oráculo do cinema contemporâneo), a curta-metragem Pescados (2010), onde uma câmara à mão improvisada capta uma serie de carpas de bocas abertas aguardando alimento e uma voice over dobra os seus possíveis diálogos: elas sonharam que eram um carro, cada uma delas uma peça. Exercício auto-paródico sobre o poder do sonho na criação, que aqui abre um filme onde essa auto-ironia ficou à porta (ou melhor, reduzida a umas melodias doces d’Los Indios Trabajaras). Martel é tanto melhor quando o seu cinema não tem pudor em abrir-se ao inesperado, levando-nos numa torrente de imagens e sons que que revelam o cinema como um território de infinitas possibilidades. Pena que Zama só consiga isso a espaços, largos.
A realizadora argentina estará em Lisboa para a ante-estreia comercial do filme no IndieLisboa (dia 28 de Abril) e no Porto, dia 2 de Maio. Zama estreia a 3 de Maio nas salas portuguesas. Lucrecia Martel será ainda alvo de um retrospectiva no IndieLisboa – Herói Independente, juntamente com Jacques Rozier – onde se exibirão todos os seus filmes referidos neste texto e outros ainda.