24 Frames (2017) de Abbas Kiarostami: filme em 24 episódios de 4 minutos, cada um baseado em fotografias do realizador, as quais se descobrem “animadas” por técnicas de pós-produção digital. 24 imagens paradas que se colocam em movimento. Fotografia e cinema tocam-se, imobilidade e movimento cruzam-se. A narratividade de uma imagem estática reinventada pela coreografias CGI do chroma key. O digital que transfigura o analógico, o cinema a 25 frames per second com nostalgia pelos 24 fotogramas por segundo. O ficheiro a pensar a película, o .RAW a reflectir sobre o negativo. O último filme (porque póstumo) do realizador iraniano Abbas Kiarostami é um ensaio contemplativo sobre a ontologia da imagem fotográfica no seu trajecto em direcção à imagem em movimento (e mais além).
E como em todos os filmes póstumos, aqui todos os nervos da criação colaborativa parecem evidenciar-se. A figura tutelar do autor esvai-se por entre as contribuições técnicas das várias mãos que jogam o baralho marcado que Kiarostami deu e partiu. E apetece desacreditar que o realizador dessas pérolas de humanidade que são Khane-ye doust kodjast? (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, 1987), Zire darakhatan zeyton (Através das Oliveiras, 1994) ou Ta’m e guilass (O Sabor da Cereja, 1997) possa ter feito um filme como este: obsessivamente estrutural, dedicadamente de dispositivo, maniacamente digital. Mas pensá-lo é recusar a evidência de que a obra de Kiarostami sempre caminhou (em especial na última década e meia) no sentido da elevação do dispositivo como ferramenta narrativa e do exercício do cinema como território pedagógico sobre os mecanismo da representação pelo cinema e pela fotografia (quase sempre exercícios de auto-análise). Pois bem, que dizer então de Dah (Dez, 2002), Five Dedicated to Ozu (2003), 10 on Ten (2004) [e, de certo modo também Shirin (2008)]? Todos filmes que encontram na nota de intenções formal, contida no próprio título, a régua e o esquadro de uma câmara que observa através do plano fixo (quase matemático) os rostos e as paisagens. 24 Frames é a continuação desse gesto maquinal que aproxima Kiarostami de, por exemplo, James Benning. Aliás, o próprio título do filme do iraniano encaixaria muito bem na filmografia do norte-americano, escondido entre Ten Skies (2004), 13 Lakes (2004) ou Twenty Cigarettes (2011).
Mas se o filme de Kiarostami pode parecer infectado pelo olhar benninguiano, de facto será só mesmo aparência. Porque cada um caminha segundo a mesmo estrada, mas em direcções contrárias. Para Benning, o espartilho matemático da duração do plano serve como instrumento narrativo puramente formal (a passagem de um comboio, o tempo de um cigarro, ou, simplesmente, 27 minutos) que o realizador trabalha a partir de uma montagem da selecção (por oposição a uma montagem do corte). Em Benning, a monumentalidade que o tempo oferece aos gestos, às paisagens, às nuvens, é uma que surge (também) da escolha precisa sobre aquilo que cabe na moldura monolítica do seu formalismo. De um plano que dura horas, o realizador encontra os exactos 27 minutos de modo a que, do início ao fim, haja espaço para um proto-arco-narrativo de respirações e variações de luz, de pequenos movimentos e sons ambiente. Ora, Kiarostami trabalha tudo isto em 24 Frames mas a partir de uma premissa diametralmente oposta: onde Benning parte de uma acção minimal para, através da distensão dos tempos do olhar, fazer revelar a força brutal de uma presença, Kiarostami parte de uma acção inexistente (a fotografia estática) e soma-lhe, ponto por ponto, elementos narrativos no sentido da construção de universo ciente da sua artificialidade. A chuva, o passarinho que passa, os sons das cigarras, a banda-sonora, as flutuações da luz filtrada pelas nuvens, os fumos…
Aquela imagem foi caçada, enjaulada e amestrada; a fotografia aprendeu agora os truques de circo que o cinema lhe ensinou, sabe rebolar e dar a pata, sabe fazer rir e fazer chorar.
Neste sentido, 24 Frames tem tanto do estruturalismo de Benning como das experiências em redor da “animação” da pintura, como Mlyn i krzyz (O Moinho e a Cruz, 2011) de Lech Majewski sobre o trabalho de Pieter Bruegel, Shirley: Visions of Reality (2013) do cineasta avant-garde Gustav Deutsch sobre o trabalho de Edward Hopper, ou o recente Loving Vincent (2017) dos animadores Dorota Kobiela e Hugh Welchman baseado igualmente em pinturas de Vincent van Gogh. O que liga estes títulos é, além do desejo de “soprar vida” nas imagens paradas, a irrealidade da construção. Não que sejam, todos eles, exercícios falhados, pelo contrário. O que é demais evidente é a presença do instrumento digital: a captação de movimentos, a rotoscopia, o green ou blue screen, os efeitos pós-produzidos e a construção sonora feita no vazio, sobre o silêncio. Para não ir mais longe, em 2014 o realizador português Micael Espinha produziu Cinza (2014), uma curta-metragem de 10 minutos que partia de fotografias do arquivo da biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian tiradas durante o Estado Novo, às quais retirava todos as figuras humanas e preenchia (através de efeitos de pós-produção) com chuva e neve, piscares de luz em acima de tudo, uma paisagem sonora que “animava” aquela imobilidade pós-apocalíptica que servia como perfeita metáfora da mumificação higiénica do salazarismo. Aí o realizador tirava partido da qualidade imaterial dos efeitos especiais digitais e convertia-a numa realidade distópica. De certo modo, Kiarostami também parece trabalhar esta falsa sensação de (ir)realidade que se revela nas costuras da colagem digital numa reflexão sobre o engodo da imagem fílmica por oposição à “verdade” da imagem fotográfica (em contradição com a famosa boutade godardiana).
O que produz em 24 Frames (e fica por perceber se por vontade ou por acidente) uma verdadeira surpresa é o facto de essa realidade pós-produzida se desfazer na aparência, apresentando o real como espaço do absurdo. O facto de o frio que percorre a grande maioria dos frames nunca se meter debaixo da pele, ou o horror nunca chegar a tocar o coração, o movimento da água parecer sempre artificial, ou a interacção entre os animais nada ter que ver com aquele que é o comportamento “natural” entre dois pássaros, dois cavalos, duas vacas… Essa espécie de indiferença entre os vários elementos que Kiarostami convoca através destas hiper-sofisticadas colagens digitais é, no fundo, a afirmação do artificial como aquilo que se encontra amputado de uma anima que torne cada gesto realmente real, passando o pleonasmo. Mas a inteligência do filme passa exactamente por se apresentar como exercício didático sobre a construção do falso. Nesse sentido, 24 Frames enquadra-se muito de perto de todas as meta-ficções que Kiarostami realizou, com os filmes dentro dos filmes, os realizadores-personagens e as rodagens como set.
O primeiro frame é, nem de propósito, sobre uma pintura de Bruegel (a mais conhecida, Jagers in de Sneeuw, em português Caçadores na Neve) e é o único que começa na imobilidade e no silêncio (como a própria pintura) e depois, paulatinamente, se vê “animado” pelo fumo que sai de chaminés, pela chuva que cai obliquamente, pelo corvo que saltita entre os ramos, por umas vacas que se passeiam ao longe, e claro, pelos sons de tudo isto. Mas Kiarostami vai, de frame em frame, aperfeiçoando a ilusão. No segundo inventa um travelling lateral a partir de uma janela de uma carro (plano puramente kiarostamiano) ao qual junta uma música diegética e sons vindos do fora de campo. No quinto a banda-sonora já não é diegética e o sons de fora de campo têm consequências na acção. Depois começam a surgir recorrências entre frames consecutivos ou enquadramentos semelhantes (os balcões frente ao mar, as janelas que dão a ver as copas das árvores, a neve, os pássaros, os animais de pasto…) e situações que parecem a continuação de episódios anteriores (os lobos que rodam as ovelhas e depois os lobos aproveitando um repasto). Chegam ainda a cor e os elementos humanos (ainda que muito poucos). O artificial vai-se tornando cada vez mais real, mas sem nunca lá chegar verdadeiramente. Um cão que ladra sem objectivo, um lobo que escorrega na neve sem nela deixar rasto, uma onda que salpica sempre do mesmo modo: na procura do máximo realismo, cada um destes frames tropeça no artificalismo da encenação, convertendo-se numa espécie de magnífico postal vivo que de modo nenhum reflecte nem o local nem a experiência do sítio.
E por tudo isto o filme faz-se thriller ontológico sobre a natureza do olhar. Quem observa afinal através daquelas imagens? É que a objectiva que tirou aquelas fotografias já se encontra totalmente soterrada pelas dezenas de camadas digitais e sonoras que o filme lhes sobrepôs. Cada um daqueles efeitos provém de um banco de imagens, de uma ferramenta de After Effects ou de uma rodagem paralela com um ecrã azul ou verde. O resultado é uma imagens sem origem determinada, um manto de retalhos digitais sem olho, mas ensopado pelo desejo narrativo de Kiarostami. E é aí que surge o belo: dois corvos que se alimentam um ao outro num beiral frente ao mar, um rebanho de ovelhas que se aninham em torno de uma árvore em pleno nevão, o mau tempo a fustigar as janelas de uma casa onde toca o Ave Maria do Schubert, um veado ao som de Madame Butterfly… Pode afirmar-se que a tese de 24 Frames é afinal sobre a potência coxa das imagens de produção digital, que embora consigam ultrapassar ocasionalmente a sua artificialidade a favor de uma qualidade humana (analógica?), quase sempre tropeçam num emaranhado de máscaras e layers. Talvez por isso haja, mais que uma vez, referência à caça, aos tiros, à mira da espingarda: aquela imagem foi caçada, enjaulada e amestrada, a fotografia aprendeu agora os truques de circo que o cinema lhe ensinou, sabe rebolar e dar a pata, sabe fazer rir e fazer chorar. O cinema traz aqui a fotografia pela trela, com um chicote numa mão e um docinho na outra, para que ela salte e dance como pedem os aplausos.
E por tudo isto o que fica, acima de qualquer outra coisa, é a obsessão pela arquitectura, pelos espaços em ruínas, pelos edifícios decompostos no meio do nada, ou pelas estruturas delapidadas de betão despido. Porque aí Kiarostami não mexe. Os seus frames só “animam” o vivo (os animais e a natureza), tudo o resto permanece impassível. E é ao compreender isto que o filme póstumo do realizador iraniano se enche de uma melancolia (para não dizer de um niilismo) que observa um mundo pós-apocalíptico onde a quase totalidade das gentes desapareceu e só ficaram as bestas e os vestígios arqueológicos da civilização.
No final, no último frame, temos duas janelas: a que dá para a rua e a de um ecrã de computador onde passa, em super slow motion, The Best Years of Our Lives (Os Melhores Anos das Nossas Vidas, 1946) de William Wyler, quando Teresa Wright e Dana Andrews se beijam antes do The End (ao som de Love Never Dies de Andrew Lloyd Webber). Junto ao computador uma mulher dorme, possivelmente uma das técnicas de efeitos especiais que trabalhou as imagens anteriores, exausta pelo trabalho de sobreposição. Não é uma sala de cinema, não é um projector, não é sequer uma televisão, é um computador e uma imagem de cinema (clássico!) manipulada digitalmente na sua velocidade de reprodução, isto é, a muito menos que 24fps. Quando chegamos ao número certo do standard cinematográfico em película 35mm deparamo-nos com um ecrã digital que nos oferece uma imagem desacelerada, como se Kiaroistami afirmasse que o clássico (ou o analógico) já não consegue acompanhar o ritmo do mundo digital. O futuro é outro, sem finais felizes nem The Ends, apenas o incessante turbilhão náutico das imagens que se consomem. A fotografia foi domada pelo cinema e o cinema foi domado pelo YouTube. Ambos jazem mortos, com a radio star e e as outras estrelas de media caídos.
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24 Frames é exibido hoje, dia 7 de Maio, às 21h30 na sala Félix Ribeiro, na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, abrindo a retrospectiva 24 Imagens – Cinema e Fotografia que decorrerá entre Maio e Junho (num total de 48 sessões) nessa instituição. O filme de Abbas Kiarostami repete no dia 10 de Maio, às 15h30 na mesma sala.