“Look at the eyes,” Ford replied when asked how one should watch a motion picture. He was giving us a clue about how to understand himself: “The secret is people’s faces, their eye expression, their movements.”
Joseph McBride, Searching for John Ford
Foi o último Ford e o mais mal-amado. Um verdadeiro filme maldito pela recepção fria (crítica e comercial) que recebeu nos Estados Unidos, onde foi visto como um thriller de pouco valor. E mesmo que Andrew Sarris ou os Cahiers du cinéma o tenham corajosamente defendido na altura, o fracasso foi tanto que levou a que o realizador não conseguisse voltar a fazer outra longa-metragem. Hoje, e apesar das páginas apaixonantes que Joseph McBride e Tag Gallagher lhe dedicaram nos seus livros sobre o cineasta, as análises escasseiam a esta película difamada e esquecida. E é pena. 7 Women (Sete Mulheres, 1966) (pois é esse o nome deste “anátema”) acarreta todos os traços de um canto de cisne, tratando-se talvez da obra mais complexa do seu autor. Mas para ver isso, é preciso olhar-lhe nos olhos.
Trata-se de um caso raro na carreira de Ford, redutoramente conhecido como um “cineasta de homens” imerso em westerns com as paisagens de Monument Valley como plano de fundo. Não é o caso do seu filme derradeiro. Como em The Man Who Shot Liberty Valance (O Homem Que Matou Liberty Valance, 1962) o realizador optou por um registo mais teatral focado em interiores, aqui habitados primordialmente por elementos do sexo feminino, neste conto de uma missão cristã sitiada onde, na década de 30 e num lugar remoto da China (“the last place on earth”, como é dito a certa altura), uma médica ateísta é levada ao sacrifício extremo. Mas apesar de Ford ter trocado o Velho Oeste pelo Extremo Oriente, 7 Women comporta-se como um western fordiano na acumulação abluída dos temas sobre os quais se alicerça a obra do realizador. O drama, afinal, constrói-se em torno de um pequeno grupo de pessoas que, reunidas pelo acaso, enfrentam circunstâncias trágicas [Stagecoach (Cavalgada Heróica, 1939)], assim como do forasteiro que chega de um meio longínquo a uma comunidade que, mais tarde ou mais cedo, se verá sob a opressão de uma entidade externa [My Darling Clementine (A Paixão dos Fortes, 1946)]. Não há diferença entre a postura desafiante da Dra. Cartwright (uma andrógina Anne Bancroft) e a do Ringo de John Wayne em Stagecoach, ou entre a chefe da missão devota, Agatha (Margaret Leighton), e o coronel rígido de Henry Fonda em Fort Apache (Forte Apache, 1948), ambos com os seus apegos quase extremistas à tradição. Mesmo o bando invasor aparenta ter o comportamento voraz do de algumas comunidades indígenas com que Ford mitificou o faroeste.
O que está mais sublimado em 7 Women, no entanto, é o uso da mise en scène e na forma como esta progride a sofisticação narrativa do seu material para uma discreta alegoria religiosa, ao mesmo tempo que reflecte a psicologia das duas figuras femininas principais (Cartwright e Agatha) de que depende o destino da missão. Começando pelo primeiro ponto, apesar da religiosidade estar saliente em quase todos os habitantes daquele espaço, não deixa de ser curioso que a entrada à qual Ford confira uma iconografia católica seja, justamente, a daquela que mais rejeita Deus. Como Gallagher aponta em John Ford: The Man and His Films, o momento em que Cartwright atravessa os portões da missão, de forma serena e montada numa mula, é semelhante à chegada de Jesus, sobre um jumento, a Jerusalém. Não por acaso, o tema que percorre a banda sonora neste instante é o hino “Jesus Loves Me”, cantado por um coro de crianças. Está anunciado, assim, que esta personagem terá paralelismos com o profeta cristão, dando início ao seu longo calvário. (O que lhe fez deixar a terra-natal? “I had personal reasons to get out”, diz ela. E, embora ouçamos mais tarde o reconto de um romance adúltero que falhou, nunca teremos certezas de quais foram essas razões.) De igual modo, Ford prepara simbolicamente a transformação da comunidade num Inferno real, através da entrada progressiva do fogo nos seus enquadramentos, servindo-se de tochas inflamáveis nos momentos mais soturnos como a chegada fúnebre dos refugiados de uma outra missão destruída ou no enterro das vítimas de cólera, culminando na fogueira ingente que Cartwright e o pastor contemplam na véspera da invasão. A partir desse instante, a maioria da acção irá decorrer à noite, iluminada pelos archotes acesos e candeias de azeite dependuradas nos tectos, com a luz das labaredas a percorrerem os traços assustados dos rostos desprotegidos daquelas personagens. Pelo uso da chama, 7 Women torna-se, gradualmente, numa luta entre uma figura ambivalente, paradoxalmente sacra e secular, e o Inferno em que se vê inserida.
Sobre o uso da mise en scène enquanto reflexo psicológico, creio que me explicarei melhor se usar como ponto de partida um outro Ford. No final de Hangman’s House (A Casa do Carrasco, 1928), Victor McLaglen despedia-se do casal amigo que tinha ajudado a reunir de forma nobre e dedicada (Ia e Ib). No momento em que ficávamos com um plano médio de McLaglen isolado a ver o casal afastar-se, assistíamos a uma mudança de expressão inusitada, onde a alegria que antes dominava o seu rosto (IIa) passava a ser tomada por uma tristeza imprevista (IIb). O espectador percebia então que ele amava a rapariga que havia ajudado a trazer para os braços de outro homem. Nada havia, previamente, sido verbalizado sobre as paixões dele que permitisse chegar a esta conclusão, exclusivamente pela fixidez da câmara no rosto do actor e na transformação do seu olhar era percepcionado o seu estado interior. É um dos traços de génio de Ford: a economia de expressão que, sem perturbar o fluxo narrativo, fornece a caracterização das suas personagens de uma forma exclusivamente visual.
Uma estratégia semelhante pode ser observada 38 anos depois em 7 Women, no instante em que Agatha entra no quarto da adolescente Emma (Sue Lyon). Três planos essenciais: um fechado do rosto espantado da chefe da missão (A), um médio, ligeiramente erótico, com o corpo semi-despido da jovem (B) e, para terminar, um novo plano médio (e mais alongado) a reforçar a reacção da figura mais velha, apoiada no mosquiteiro da cama de Emma (C). Como em Hangman’s House, os sentimentos não são explicitados de uma forma verbal quando, num momento-chave, uma personagem contempla outra por si protegida. A reacção de Agatha revela então menos um instinto maternal receoso do que uma atracção sexual reprimida pela ninfeta, inalcançável para ela pelos votos de celibato que tem de cumprir escrupulosamente. A forma nervosa como no restante desenrolar do encontro Agatha suspira e toca no cabelo de Emma, bem como a postura abalada com que sai para o exterior no seu final, apenas parecem confirmar o seu hipotético segredo pecaminoso. Quando Ford fala de um amor impossível de ser consumado (por respeito fraternal no primeiro exemplo e um compromisso religioso no segundo) só a câmara tem direito a mostrar o não-consentimento romântico e a dor que este acarreta, servindo-se para isso do olhar daqueles que regista.
Cartwright representa então uma ameaça para Agatha, na medida em que 1) acarreta vícios cristãmente condenáveis, que poderão corromper a estabilidade moral da missão (o álcool, o tabaco e a falta de pudor em falar das suas aventuras amorosas passadas) e 2) conquista gradualmente a admiração, amor e respeito de Emma. Dizer Cartwright, Agatha e Emma é dizer Progresso, Conservadorismo e Sociedade, e como as duas primeiras decidem, de forma antagónica, o melhor modo de sustentabilidade para a terceira. Este conflito fica então temporariamente resolvido naquela breve cena a meio da noite, onde Cartwright é chamada por Agatha para ir auxiliar uma Emma debilitada. Nesse momento, o Progresso é mostrado como o inevitável vencedor, pois a religiosa percebe, no desespero de contemplar a fragilidade da adolescente, que a missão não é a sociedade hermética auto-suficiente em que acredita. E, por isso, as suas fraquezas e incertezas serão confessadas a Cartwright na cena seguinte onde, num armistício emocional ao luar, afirma que “God is not enough”.
Eventualmente, o bando do facínora Tunga Khan conseguirá violentar a missão. Para permitir a ocorrência de um parto, Khan exige a Cartwright que se envolva sexualmente com ele, o que a doutora consentirá, dando origem ao que é, possivelmente, a sequência mais elaborada do filme inteiro. Observemos: Cartwright entra no quarto de Khan e coloca-se atrás da concubina que ocupa o leito, a qual se encontra em primeiro plano com a sua assistente, e que domina a influência visual do enquadramento (representação de posse de poder no quarto) (1a). Ocorre, portanto, a necessidade de haver uma tomada de poder por parte de Cartwright. Para isso, Ford fá-la contornar a cama até ficar em primeiro plano, focando nela a atenção do espectador pela superioridade de tamanho que alcança, despossando assim a manceba da sua influência (1b). Com esta domação assertiva do espaço por Cartwright, Khan dispensa as mulheres que antes ocupavam a cama, pois ela mostrou-se disponível para ocupá-la (1c). Mas Cartwright, apesar da aceitação física a que se dispõe, necessita de salientar a sua rejeição moral ao acto e o desprezo que nutre por Khan. Como tal, move-se para junto da janela, recusando-se a compartilhar o plano com o bandido. A forma como a câmara acompanha o seu movimento enfatiza a posição de poder da médica, pois é ela quem domina o espaço (1d). Khan olha espantado para este súbito distanciamento do leito de que Cartwright antes se tinha aproximado de forma aquiescida (2). Segue-se um plano médio dela a fumar, com um olhar inabalável e que confronta Khan com a sua posição de impotência (3). Ele, ao sentir a humilhação e a sua inferioridade, expulsa de forma violenta o soldado que assistia à cena na soleira da porta (4). Khan, numa tentativa de tomar para si o poder do quarto corporalizado em Cartwright, evade o espaço dela, obrigando à partilha do mesmo num plano de conjunto (5). Contra-picado com a postura imponente dele, pelo ângulo baixo é perceptível que passou a estar numa posição superior à de Cartwright (6). Mas, em contra-campo, Cartwright permanece firme e com a mesma resiliência no olhar do plano 3 (7). Ela acolhe este lugar inferior com indiferença, pois o que é relevante para ela é menos o poder do quarto do que a tentativa de preservação da integridade colectiva e da sustentabilidade comunitária, o que é confirmado pelo dissolve relaxado para o bebé recém-nascido a ser limpo pelas mulheres cativas (8 e 9). É um exemplo claro daquilo que Serge Daney referiu na sua análise a esta obra como a necessidade da continuidade e protecção da vida pelo ponto-de-vista do indivíduo, ao invés do da comunidade e do consenso moral. E é esta elaboração na mise en scène enquanto espelho íntimo das personagens, capaz de tornar um espaço num tabuleiro de poder, que faz de 7 Women um filme extraordinário.
Para terminar, umas palavras sobre o clímax onde, após conseguir resgatar as mulheres na troca da bata medicinal pelo robe do meretrício, Cartwright sacrifica-se a fim de abjugar a comunidade da intolerância a que havia sido submetida. Qual a razão para a médica se suicidar após envenenar Khan? Perguntar isso é perguntar o porquê de Ethan Edwards não entrar na casa após devolver a pequena Debbie ao seu lar, é perguntar o porquê de Tom Doniphon recusar o mérito de ter morto Liberty Valance. Todos eles perderam algo, a dada altura, demasiado importante para ser compreendido pelos outros. Ethan perdeu-o nos anos em que combateu pela Confederação, Doniphon no momento em que escolheu assassinar um homem pelas costas, Cartwright naquelas “personal reasons” que a levaram a abandonar a América. Os seus últimos gestos são consequência das revelações individuais que têm sobre a certeza da impossibilidade em reavê-la. Não tem um nome certo esta coisa que já não faz parte dos heróis fordianos. Vai de um sentimento de pertença a auto-conhecimento, e talvez passe por um pouco de fé, mas não existe uma palavra suficientemente forte para ela. Tal como não existe uma palavra suficientemente magoada para a sua perda. É por isso que só pelos rostos deles é possível percebê-la. Está tudo nos olhos.
Deixo um agradecimento especial ao walshiano Luís Mendonça pela crítica fornecida de Serge Daney.