Andrew Niccol é um dos nomes mais curiosos a trabalhar dentro da máquina de produção em barda de Hollywood. Um homem que escreve, produz e realiza os seus próprios filmes e que tem, indelevelmente, uma marca autoral pela recorrência dos temas, pela insistência do género e pela solidez do estilo. Explico-me, Niccol tem um predilecção pela ficção científica, os seus filmes tratam de forma quase obsessiva sobre as múltiplas declinações deste género cinematográfico, sempre como metáfora para as maleitas da sociedade (claro, nem podia ser doutro modo). A saber: em Gattaca (1997), os limites da eugenia genética; em The Truman Show (The Truman Show – A Vida em Directo, 1998) – do qual Niccol é o argumentista –, a sociedade do espectáculo e a reality tv como modo de vida; em S1m0ne (Simone, 2002) – o seu melhor filme –, as zonas cinzentas da realidade virtual; em In Time (Sem Tempo, 2011), o capitalismo como sistema (literalmente) assassino; em Good Kill (Morte Limpa, 2014), os limites éticos sobre a vigilância e acção militar com drones; e por fim o mais recente Anon (2018), sobre o direito ao esquecimento numa sociedade da máxima transparência digital.
Os seus filmes, como um todo, constituem uma visão geral sobre os “grandes temas” da sociedade contemporânea: das questões da identidade aos limites da privacidade. E também como um todo o cinema de Niccol tem a tendência para os diálogos professorais (para não dizer académicos, que não são, mas soam) que interrompem uma certa leveza de género (quase sempre o thriller de acção). A juntar a isto há nele uma tendência para o azulado, para as cores frias, e para uma arquitectura brutalista onde dispõe os seus personagens como pequenos pinipons numa maqueta. Com excepção dos personagens tomados por actores singulares, como Jim Carrey ou Al Pacino, a generalidade dos seus personagens afunda-se num esquematismo narrativo que está mais preocupado em construir a distopia do que em criar elementos dramáticos que de facto dêem corpo às gentes que Niccol convoca, quais peões descartáveis numa guerra de figuras retóricas. Ainda assim, mesmo que um pouco desinteressante, Niccol pode ser encarado como um dos poucos autores a subsistir à mastigação dos blockbusters e a percorrer com coerência um trajecto muito seu e marcadamente distinto do que se vai fazendo. Aliás, não foi por isso surpreendente que o anterior Good Kill competisse na secção oficial do festival de Veneza: mais cedo ou mais tarde Niccol seria/será coroado auteur (e não necessariamente um vulgar auteur). O que fica por saber é se essa elevação se fará pela via formalista e mecanizada da teoria dos autores (a versão americanizada por Andrew Sarris – o mais provável) ou pela via ética e moral da politique des auteurs (a versão “activista” dos Cahiers du Cinéma).
As vítimas morrem assistindo ao que o assassino observa – deliciosa perversão. A morte tornada espectáculo de um só espectador, um espectador V.I.P., um live feed no qual só o morto pode pôr like.
Independentemente destes considerandos gerais, Anon interessa-me, mais do que qualquer outra coisa, por trabalhar uma situação que, desde há uns tempos, me tem assaltado o entusiasmo: um personagem que assiste à sua própria morte (por vontade ou por imposição… normalmente a segunda). Naturalmente Peeping Tom (A Vítima do Medo, 1960) de Michael Powell é o primeiro e provavelmente o epítome deste gesto terrível dramático (e dramatúrgico). A câmara que filma a morte enquanto reflecte o rosto desfigurado da vítima é uma ideia de uma perversão cinéfila inigualável. No entanto, o outro exemplo deste tropo narrativo aceita igualmente um (tres)leitura cinéfila, a morte do médico psicótico de The Serpent’s Egg (O Ovo da Serpente, 1977) de Ingmar Bergman. Hans toma o comprimido de cianeto enquanto se observa num espelho, vendo o seu rosto ficar encarniçado ao som dos murros daqueles que tentam arrombar a porta do seu laboratório. Sendo que momentos antes reflectira sobre a metáfora do ovo de serpente como figura sinóptica do mundo (pós-holocausto), mas que encontra, na superfície translúcida do ovo uma possível referência à igualmente translúcida celulóide que suporta o filme (isto porque o médico se comporta como crítico de cinema, analisando minuciosamente as assassinas filmagens que produzira junto dos seus pacientes-cobaias). A película do filme como entidade à beira de se romper [como em Personna (A Máscara, 1966)?], deixando sair a serpente. O cinema como cápsula do horror, sempre à beira de explodir.
Mas se estas são referências distantes para Niccol, Strange Days (Estranhos Prazeres, 1995) de Kathryn Bigelow é evidentemente o centro da sua devoção. Anon é uma adaptação aos dias de hoje (pela via da privacidade no mundo da ciber-segurança) do extraordinário filme de Bigelow, e o dispositivo central desse filme (as filmagens de morte em P.O.V., tornadas snuff movies) repete-se aqui, sem tirar nem pôr. No entanto, a graça passa, exactamente, por o assassino em série de Niccol fazer um hack aos olhos digitais das suas vítimas, obrigando-as a receber a transmissão dos seus próprios olhos, isto é, do assassino. Elas morrem assistindo ao que o assassino observa – deliciosa perversão. A morte tornada espectáculo de um só espectador, um espectador V.I.P., um live feed no qual só o morto pode pôr like. No entanto, o cinema de terror e de ficção-científica dos anos 80 e 90 já havia antecipado esta estratégia através do vídeo (como aliás o vídeo antecipou, pelo nicho, aquela que é, agora, a massificada cultura de Internet), sendo os melhores exemplos Creepshow (Creepshow: Contos de Terror, 1982) de George A. Romero e escrito por Stephen King (o episódio com Leslie Nelson a fazer de psicopata, obrigando cada elemento do casal feliz a observar, em simultâneo, a idêntica morte do parceiro através de ecrãs de televisão), Brainstorm (Projecto Brainstorm, 1983) de Douglas Trumbull e um pequeno momento em La cité des enfants perdus (A Cidade das Crianças Perdidas, 1995) de Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet.
Esses são os momentos mais interessantes do filme, quando este se infecta de janelas e da estética dos first person shooters, desembocando numa reflexão sobre a memória nos tempos digitais (ele quer recordar o trauma, ela quer apagar o passado). Uma memória onde o passado é (re)visto (literalmente) como testemunho do real, mas igualmente alvo de manipulação. Ou de como surgem pequenos pormenores cheios de graça: os criminosos que agem de olhos fechados para que não haja provas das suas acções; a ausência de referentes e o regresso ao analógico como a única forma de escapar ao voyeurismo do estado ciber-securitário. Mas, contas feitas, Anon é, como quase sempre são os filmes de Niccol, simultaneamente muito interessante (pelo universo que constrói) e muito aborrecido (porque pachorrento no ritmo narrativo e enfadonho na dimensão humana que procura tropegamente invocar).