A dupla Marco Dutra e Juliana Rojas tem desenhado um percurso muito sólido no cinema, vogando algures entre o drama sócio-político e a fábula horrífica. Os seus filmes, mais notavelmente o extraordinário Trabalhar Cansa (2011), trabalham inquietações vividas na sociedade brasileira, mas mascaram-nas habilmente de terror psicológico ou fábula negra costumeiramente com um twist ácido ou… cínico. Como se escreve “cínico”, é com “c” ou com “s”? A pergunta é lançada pelo professor da primária numa sala de aula, quando o filme já vai a mais de meio, investindo numa segunda parte que muito vincadamente separa as águas no que é a experiência de As Boas Maneiras (2017). O filme começa longe dessa sala de aula, e sem “cinismo”, num apartamento de luxo em plena cidade de São Paulo. Rojas e Dutra filmam a cumplicidade (que se vai transmutando noutra coisa…) entre uma abastada jovem mãe branca e a sua empregada negra, futura ama do filho que aquela traz no ventre. Durante cerca de uma hora e picos, As Boas Maneiras é um lento, absorvente, sensual e atmosférico filme de horror que, pelo mistério que vai desenrolando, parece ser uma versão Val Lewton de filmes recentes que nos têm chegado do Brasil e que transportam para as casas das classes média e alta as tensões vividas macroscopicamente em toda a sociedade, começando por aquelas que subterraneamente se estabelecem entre a mulher-a-dias e a sua patroa – Doméstica (2012) e Que Horas Ela Volta? (2015), por exemplo, são filmes que ao lado de As Boas Maneiras parecem sucumbir, ainda mais do que já sucumbem, a uma retórica social e política sem imaginação.
As Boas Maneiras vive de um crescendo feito de mistério e insólito, de uma história de corpos que se transmutam e se devoram. Mas, também sentimos desde cedo, há um filme fantástico a querer sair do ventre. Lá fora, a cidade e a lua oferecem-se como um cenário pintado para um terror de estúdio de consumo caseiro. O drama tem contornos sociais, habituais no cinema brasileiro recente, mas não conseguimos fugir ao lado fake e cuidadosamente produzido deste mundo – não é só a lareira electrónica que nos dá a sensação de estarmos dentro de um filme atravessado por uma forte pulsão de género, pulsão que explode quando entra a maravilhosa sequência em banda desenhada que explicita o background da história. Entre os beijos, o sexo e a carne, uma fantasia de Hollywood vai tomando conta do filme. Lembrei-me nalguns momentos da interpretação que Paul Verhoeven fez do espírito do cinema fantástico da Universal em Hollow Man (O Homem Transparente, 2000). Parece-me que Juliana Rojas e Marco Dutra operam a mesma “actualização” com As Boas Maneiras, mas em vez de The Invisible Man (O Homem Invisível, 1933) optam por outro monstro, The Wolf Man (O Homem Lobo, 1941).
Tinham estes cineastas de escolher um monstro que se manifestasse por via de um “excesso de visibilidade”, que lidasse metafórica ou literalmente com as convulsões do corpo – já antes, na sua fabulosa curta Um Ramo (2007), a dupla trabalhava sobre uma possibilidade de body horror disfarçado de fábula horrífica, vagamente ambientalista, sobre a fertilidade. Claro que há sempre, mesmo na primeira parte, uma leve ironia que não é estranha nem a Verhoeven, nem, acima de tudo, ao sentido mais pop e lúdico de John Landis [An American Werewolf in London (Um Lobisomem Americano em Londres, 1981)] ou Joe Dante [The Howling (O Uivo da Fera, 1981) e Gremlins (Gremlins – O Pequeno Monstro, 1984)]. Ao mesmo tempo, no seguimento de outra curta, O Lençol Branco (2004), o horror à maternidade volta a ser um assunto, ensaiando-se aqui, sobretudo nessa tal primeira parte do filme, a possibilidade de um Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968) da classe alta brasileira.
Quando “tudo muda”, o filme parece voltar à estaca zero e aí é mais negociado o modo como nos conquista. Sobrevém a fábula infantil, o Shyamalan mais filho de Disney e enteado de Val Lewton do que o contrário.
Na entrevista que me concedeu em 2015, Marco Dutra confidenciou que o seu próximo título seria “um filme de lobisomens passado em São Paulo (…). É a história da criação de uma criança lobisomem. Vai beber numa outra fonte que tem mais a ver com o conto de fadas, com o Mogli talvez. É uma longa-metragem sobre a educação, sobre a formação de uma criança, mas dentro do universo do horror, da violência.” O resultado vai perfeitamente ao encontro do que fora perspectivado. As Boas Maneiras é, sem dúvida, uma parábola desconfortável sobre a violência de se ser mãe e o estado selvagem de um “lobijovem” no confronto com o mundo, nomeadamente com a escola. É marcadamente isto sobretudo a partir da segunda parte, em que o filme, ele próprio, na sua própria pele, sofre uma mutação significativa. Saltamos de um registo mais soturno, e indecifrável, do horror sexual eivado de uma “inquietação de classe”, para uma declarada “fantasia terrena”, mais assumidamente próxima dos filmes de Landis, Dante e, um dos heróis de Dutra, M. Night Shyamalan. O que estava implícito na primeira hora e pouco ganha, a seguir, a densidade de um corpo porventura demasiado explícito, ao passo que quase desaparece do tecido do filme o que era expresso durante essa primeira parte – a inebriante mistura entre lesbianismo, canibalismo e metamorfose animal ensaiada no coração de uma eventual “luta de classes” brasileira.
Apetece ser um pouco como o senhor de La Palice e sublinhar que, de facto, “o que se ganha na segunda parte, ganha-se na segunda parte, mas o que se perde também se perde”. Isto é, a volta desavergonhada – “sínica” com “s”? – que Juliana Rojas e Marco Dutra dão a esta história, vai ela mais ou menos a meio, demora a ser processada, pelo filme e, como corolário, pelo espectador. Diria que As Boas Maneiras é rápido a conquistar-nos, com a sua história minimal que actualiza um certo body horror pós-clássico que vai beber aos melhores exemplos do cinema americano, mas é igualmente rápido a ultrapassar-nos nas nossas expectativas, quando quase joga fora “o bebé com a água do banho” – uso a expressão célebre, mas ela é quase literalizada a meio da história. Quando “tudo muda”, o filme parece voltar à estaca zero e aí é mais negociado o modo como nos conquista. Sobrevém a fábula infantil, o Shyamalan mais filho de Disney e enteado de Val Lewton do que o contrário. Não se perde tudo, mas o lamento na nossa cabeça nunca passará por completo. Até porque as camadas de género acumulam-se em excesso, acrescendo uma veia musical que Juliana Rojas transporta para este filme vinda do seu amenamente divertido musical de terror Sinfonia da Necrópole (2014). Nesta saturação de referências, parece que As Boas Maneiras perde uma “maneira” mais sua, mesmo que se sinta sempre – e isso é Shyamalan também – um amor comovente dos realizadores pelas suas personagens. Esse amor ajuda-nos a não desistirmos do filme no decurso da sua demasiado precoce, longa e explícita segunda parte.