Revisitamos o mês passado para escrever cápsulas críticas sobre a comédia thrillesca Game Night (Noite de Jogo, 2018), a animação que sonha com terror Isle of Dogs (Ilha dos Cães, 2018), a sátira mais actual do que podemos supor The Death of Stalin (A Morte de Estaline, 2017) e a revelação do IndieLisboa vinda da China Da Xiang Xi Di Er Zuo (An Elephant Sitting Still, 2018).
Game Night (Noite de Jogo, 2018) de John Francis Daley e Jonathan Goldstein
O filme obedece a uma fórmula bastante simples e despretensiosa. Trata-se de uma espécie de cruzamento entre The Game (O Jogo, 1997) e Coherence (2013), mas enquanto nestes filmes a ideia de jogo consistia num arrepiante enleio numa teia formada pela dúvida e o medo, Game Night assume desde o primeiro minuto a intenção cómica. Os diálogos rápidos, como que “gaguejos deslocados”, fora de tempo, são a arma cómica número um aqui. E os seus protagonistas estão em ponto de rebuçado: Jason Bateman e, acima de tudo, Rachel McAdams. Ela, na realidade, toma conta do filme numa das composições cómicas mais divertidas do cinema americano recente. Na crença de que vive uma noite de jogos sem precedentes, megaprodução garantida por um familiar cheio de dinheiro e bazófia, um casal entra no seu papel e “joga-se ao jogo”, sem freios, usufruindo dele em pleno. Numa sequência particularmente divertida, McAdams saca de uma pistola e põe em sentido um conjunto de mânfios que descontraem num manhosíssimo bar de motoqueiros. Ela reproduz a famosa line de abertura de Pulp Fiction (1994) e, inebriada pelo seu sentido de diversão, ameaça atirar a matar se “any of you fucking pricks move”.
As sequências burlescas sucedem-se. McAdams é rainha, dona e senhora desta comédia thrillesca. Mas talvez a sequência que mais convida à gargalhada seja o one man show de Jason Bateman que faz lembrar Blake Edwards ou Jerry Lewis. O marido procura descobrir a verdade por trás do jogo, mas acaba por “manchar” (literalmente) essa sua diligência, salpicando de sangue o santuário tão querido do carente agente da polícia que é vizinho do casal. É verdade que Game Night perde muito da sua hilariante comicidade quando o casal McAdams e Bateman se apercebe do grau de veracidade do jogo em que se vira envolvido. Mas o filme não trava completamente a sua própria boa disposição. O desenlace, como bom naco de filme de acção, revela aliás uma trama elaborada de onde releva um nemesis muito convincente interpretado por Michael C. Hall. Enfim, Game Night reúne todos os condimentos de um divertido filme de domingo à tarde (ou de domingo à noite, para ser mais preciso). Depois, e repito-me, não dá para resistir a McAdams.
Luís Mendonça
Isle of Dogs (Ilha dos Cães, 2018) de Wes Anderson
O fenómeno que tem produzido uma revisitação (e revisão) em baixa dos grandes autores dos anos 1990 é, no mínimo curioso. Chen Kaige, Zang Yimou, Lars von Trier, Almodóvar, Jane Campion, Mira Nair, Kusturica, os Coen e os Dardenne são hoje olhados com desdém (no mínimo desprezo – senão por todos, pelo menos por um grupo bem sonoro). Haneke está em águas pantanosas e salvam-se Leigh, Moretti, Tarantino e Panahi (Kiarostami e Kieslowski morreram, portanto já não entram nesta contabilidade). Wes Anderson, apesar de ter conhecido o dourado do reconhecimento apenas no início dos anos 2000, está enraizado nesse cinema de fim de século (e de milénio). E nem de propósito, Isle of Dogs (Ilha dos Cães, 2018) parece ser o primeiro filme do realizador que não é recebido com pompa pelas vozes dos quatro cantos desta flat earth. Os motivos pelos quais o filme vem sendo admoestado pelos paladinos da moral cinematográfica tem que ver com as questões da representação de pessoas não ocidentais por um realizador branco (cis hetro) norte-americano, em particular um olhar que foi criticado pela suposta fetichização do “outro” através de um exercício contemporâneo de orientalismo (o dito white washing). A este propósito, remeto o leitor para o texto que o nosso walshiano Bernardo Vaz de Castro escreveu sobre o filme, e, em sua oposição, o texto que Moeko Fujii escreveu para o The New Yorker. A mim, pessoalmente, aborrece-me ler os filmes pela forma como estes pensam o mundo, prefiro olhá-los pela forma como eles pensam o cinema (já que o cinema, ao ser pensado pensa também o mundo – e não é nesse jogo de reflexos distorcidos que surge o real?).
No caso de Anderson o mundo que o seu cinema pensa é um que se bamboleia elegantissimamente no exercício da máxima coreografia. A obsessão do gestos, das cores, dos padrões, dos enquadramentos, das posturas e dos olhares, das entoações, enfim… um cinema que trabalha a favor da cristalização. Mas cristalização do quê? Do real, lá está. A suposta fantasia do mundo encantado de Anderson é nada mais que o coalho do extremo apuramento das coisas cá fora. Há qualquer coisa de taxidermista ou mumificador nos modos de Anderson, mas se assim é, as suas figuras empalhadas ou ligadas por gaze preservam – ainda que fugazmente – os vestígios da vida que Anderson delas sugou. E o que me interessa, nos seus filmes – em especialmente os dois últimos –, é o modo como, a espaços, o cristal racha e da brecha surge o horror (não é por acaso que se têm criado paródias de terror do método andersoniano). Aquela perfeição maníaca dos seus filmes anuncia uma ruptura que só pode vir pelo caos, pelo horror, por uma fúria que tudo devora. Em The Grand Budapest Hotel (2014) já assistíamos às falangetas decepadas de um personagem, agora a cena que mais perturba é a da preparação do sushi. Ali, na dança essencial das mãos experientes do mestre sushiman assistimos à matança, à crueldade e ao horror ritualizado. Vêmo-lo imperturbado, qual sociopata, que decapita um caranguejo e lhe retira as vísceras – ainda em movimento – e tudo é perfeitamente cáustico. No “realismo” dos gestos, a animação de Anderson encontra a sua razão de ser: oferecer de forma melíflua a natureza do mal (que pelo contraste se acidifica ainda mais). Tomando as palavras de Richard Brody, é possível descrever a partir de Moonrise Kingdom (2012) uma possível “trilogy of revolt” – e apetece-me seguir pelos trilhos dos false friends e pensar numa “trilogia da revulsa”. De facto a casa de bonecas de Anderson começa, pouco a pouco, a transformar-se em assustadora mansão e os seus rodriguinhos têm agora qualquer coisa de Chucky, o boneco assassino. Que siga os caminhos formais do terror, agora que as suas parábolas narrativas já remetem para o holocausto!
Ricardo Vieira Lisboa
The Death of Stalin (A Morte de Estaline, 2017) de Armando Iannucci
No passado festival de Roterdão, onde The Death of Stalin (A Morte de Estaline, 2017) de Armando Iannucci foi o filme de encerramento, havia concomitantemente vários filmes que pensavam o passado da antiga União Soviética, em particular o legado icónico dos seus líderes. Dois deles tomavam a recente medida adoptada pela Ucrânia, em 2015, que baniu todas as imagens, símbolos e estatuária do regime comunista, para tecerem considerações sobre a construção da história e das relações de má-consciência que a contemporaneidade com ela mantém. Em Leninopad (2018) de Anna Jermolaewa, uma curta-metragem de vinte minutos, a realizadora fazia uma peregrinação pelos púlpitos vazios que se espalhavam pela Ucrânia e questionava os transeuntes sobre o que neles se houvera erguido (e onde tinham ido parar essas construções). Em, The Fall of Lenin (2017) de Svitlana Shymko a mesma questão era feita a partir de uma espécie de transe hipnótico onde as imagens de arquivo se sucediam numa espiral rítmica que desembocava em vídeos de YouTube onde se vandalizavam as imagens de Lenin – grupos de encapuzados amputavam estátuas, pilhando bustos e mãos, para no seu lugar colocarem imagens de cariz religioso. A juntar a estes dois títulos, outros dois: um também visto em Roterdão, na competição principal, Interregnum (2017) de Adrian Paci, onde se descrevia – a partir do arquivo fílmico – um cruzamento entre os momentos de “intervalo” entre líderes, nas encenações maciças do “luto da nação”; e, desta feita exibido no IndieLisboa, Schneewittchen (Snow White, 2017) de Thadeusz Tischbein, onde a metáfora da princesa comatosa se vertia em descrição perfeita do culto dos corpos mortos de vários dos líderes mundiais (que trabalharam para si, em vida, o culto da personalidade), nomeadamente os líderes soviéticos como Lenin e Estaline.
Serve este intróito apenas para referir que num espaço muito curto de tempo – e em resultado, diria eu, do grande debate sobre a memória histórica associada às estátuas dos generais sulistas nos Estados Unidos da América – vários filmes revisitaram as feridas abertas do regime soviético (independentemente das devidas diferenças entre Lenine e Estaline, naturalmente). Nomeadamente aquelas que se prendem com o culto da figura, com as repercussões tentaculares da propaganda, como os sistemas de perseguição e silenciamento e pela construção ficcional de uma imagem de nação que era tanto mais ideológica quanto mais distante da realidade se tornava. O filme de Armando Iannucci faz-se, no fundo, nas incongruências desse intervalo, entre a construção magnânima do líder e da nação, e a qualidade humana (para não dizer simplesmente mesquinha) dos protagonistas dessa “grande” narrativa. E de facto a escrita de Iannucci – que se confirma como um dos mais certeiros argumentistas políticos da actualidade, é dele o inteligentíssimo In the Loop (2009) e a série televisiva Veep – diverte-se no jogo do Quem é Quem?, oferecendo-nos as pequenas tricas (não tão pequenas assim, na medida em que uns morrem em consequência delas…) de uma panóplia de actores secundários da história que procuravam subir a protagonista no momento do vazio de poder. Esse lado pequeno, defronte da mitologia maximalista do regime, é donde surge o humor. Disso e, claro, de uma série de brilhantes diálogos metralhados à velocidade de cruzeiro e de um excelente elenco anglófono que recusa liminarmente enveredar pelo pastiche do sotaque.
Ricardo Vieira Lisboa
Da Xiang Xi Di Er Zuo (An Elephant Sitting Still, 2018) de Hu Bo
Uma das maiores revelações do IndieLisboa de 2018, Da Xiang Xi Di Er Zuo (2018) de Hu Bo, dá seguimento ao retrato implacável da China desconhecida que de forma tímida e brutal vem contrastando com os filmes propagandísticos de Zhang Yimou, o romance sofistacado de Wong Kar-Wai ou a internacionalização de Ang Lee. Esta zona negra que alguns ousaram tocar, como é o caso sobejamente conhecido de Wang Bing, a primeira obra Lao Shi (Old Stone, 2016) de Johnny Ma ou o cinema de Jia Zhangke em Tian Zhu Ding (China – Um Toque de Pecado, 2013), são alguns exemplos que nos chegam enquanto espectros, pois eles retratam os olvidados (parafraseando Buñuel), os que estão para além das margens de Pequim e do triunfo capitalista. Os corpos nestes filmes reclamam a dignidade que em vida lhes foi negada, são parte da massa esquecida (o plano final de Tian Zhu Ding), são os indesejados (o asilo em Feng Ai, 2013) ou os solitários deambuladores (o taxista em Lao Shi ou o estudante em Da Xiang Xi Di Er Zuo) que procuram um lugar por entre as ruínas maoístas e os edifícios dourados e nunca erguidos do capitalismo. É nesta esquizofrenia que vemos os efeitos de um China a duas velocidades, de uma máquina que permite a que uma elite ascenda ao estado selvático capitalista dos bens de consumo, enquanto a restante população vive subjugada à ditadura da falta e privação de ecos comunistas.
O retrato de Hu Bo ganha a força de um Ulisses de Joyce, que ao longo de um dia, nos dá atmosfera irrespirável de anos. A alegoria do elefante sentado em Manzhouli (Norte da China) que une estes quatro personagens, representa a própria condição imóvel a que cada elemento está subjugado. A aparente acção que no filme desencadeia o encontro entre os personagens, não provém de um tomar as rédeas da situação, mas antes da aceitação trágica de que a vida está já traçada. Ao longo do filme o discurso é pautado por esta inevitabilidade teleológica. É certo que a ênfase dada ao discurso por vezes cai no quase ridículo ou sufoca o trabalho impressionante de câmara, capaz de sustentar o ambiente que as palavras querem imprimir forçosamente. Neste aspecto, notamos alguns erros típicos de primeira obra, como a redundância (entre texto e imagem, já anteriormente referido), o excesso de música (que também ele trai a força da imagem, sobretudo num dos mais belos travellings do filme enquanto o rapaz se coloca em fuga após a disputa nas escadas e nos cria a mesma sensação de opressão entre as paredes da escola e das casas na rua) e a falta de uma economia (ao longo de duas horas e meia há um trabalho de câmara que quase nos sufoca e de repente, sem qualquer motivo aparente, surge um plano de um lugar cheio de neve e desafogado. Aquilo que mais tarde é um lugar devidamente pensado como zona de respiração ao espectador, dado que a viagem seria de certo modo uma libertação, naquele momento anterior, surge como efeito de estilo e não como pausa. Este plano absolutamente desnecessário, mesmo que belo, quebra o filme e a tensão impressa de forma tão extraordinária). Independentemente destes aspectos negativos, devemos salientar que são falhas menores num filme sobejamente maior. Aquilo que foi um desespero de contornos dostoievskianos, onde a crueldade por vezes ganha um gosto pela própria crueldade (marca assinalada por alguns críticos de Dostoiévski à época, como foi o caso de Mikhailovski), é um dos retratos mais impressionantes sobre o outro lado da China e que infelizmente termina aqui, com a morte do seu autor no passado mês de Outubro.
Bernardo Vaz de Castro