Neste artigo de homenagem ao grande cineasta italiano Ermanno Olmi, desaparecido ontem, incluímos um texto de Francesco Giarrusso que desenha uma breve biofilmografia do cineasta (que termina nos anos oitenta) e, como complemento que olha a parte final da obra de Olmi, publicamos um excurso de Luís Mendonça sobre o derradeiro título do mestre italiano, estreado este ano na Festa do Cinema Italiano, Vedete, sono uno di voi (2017). Acresce a esta pequena homenagem um passatempo (que pode consultar aqui) em que oferecemos exemplares do livro Ermanno Olmi. Uma excêntrica normalidade (Edição Il Sorpasso).
Começar esta breve apresentação de Ermanno Olmi com a enumeração de dados biográficos parece-me algo insignificante, dado que a existência humana só se torna decifrável após a morte – e esta ainda não foi processada -, quando o brotar caótico da vida cessa de fluir deixando o sentido sedimentar-se sobre os escombros do tempo. Ainda assim, na indefinição da vida, nunca concluída e sempre aberta ao imprevisível, existem indivíduos cujos atos os legitimam, por assim dizer, a ter uma biografia. De resto, é apenas a força de vontade, o livre arbítrio que elevam o ser humano da amorfa planície das normas, libertando-o do pântano dos constrangimentos rotineiros. Como dizia São Francisco de Assis, a essência verdadeira do homem não reside naquilo que a vida lhe oferece, mas sim naquilo que conquista por si, com a força livre da própria escolha. Seja santo ou louco, herói ou vilão, só uma atitude excecional livra o homem da anonímia sufocante, trocando “finita e humana vida / Por divina, infinita e clara fama.”
Quem conhece minimamente Ermanno Olmi estará a pensar na escassa pertinência das minhas palavras, pois a vida dele aparentemente nada tem de extraordinário. Olmi prefere a calma solidão da montanha à multidão ruidosa da cidade, o cuidadoso ofício do cineasta à profissão do realizador, os pequenos projetos às grandes produções ao ponto de ter sempre trabalhado longe de Roma, da grande máquina produtiva do cinema italiano. E tudo isso teve inevitavelmente um preço: o esquecimento por parte do público e a dificuldade da crítica em definir o seu trabalho, sempre contracorrente em relação às vagas dominantes do cinema. Mas não será precisamente essa atitude que faz de Olmi um dos heróis cinematográficos dos nossos tempos?
A obra de Olmi está marcada por gestos de uma liberdade absoluta, sincera, por vezes ingénua na audácia das escolhas encenadas. Como não lembrar o atrevimento com o qual realizou Il tempo si è fermato (1959), utilizando o dinheiro destinado ao enésimo documentário industrial que a Edisonvolta, a empresa para a qual trabalhava, lhe costumava comissionar? Ou como esquecer a sua perseverança em filmar em cenários naturais com atores amadores embora o Neorrealismo já não constituísse o contexto cultural de referência? Não estou a pensar somente na trilogia Il tempo si è fermato, Il posto (1961) e I fidanzati (1963), ainda temporalmente próxima ao Neorrealismo, mas em filmes mais tardios como I recuperanti (1970) e L’albero degli zoccoli (A Árvore dos Tamancos, 1978) em que se respira ainda a atmosfera épica do real tal como foi teorizada por Zavattini.
E depois? Mesmo quando todos estavam à espera que Olmi continuasse na direção traçada por L’albero degli zoccoli, aproveitando o sucesso que o filme obteve graças também à vitória da Palma de Ouro em 1978, Olmi mais uma vez surpreende-nos com a realização do seu projeto mais ambicioso: Camminacammina… Era o longínquo 1983.
Francesco Giarrusso
Vedete, sono uno di voi é um documentário produzido para o canal de televisão RAI sobre a vida do Cardeal Carlos Martini, teólogo, homem da igreja e do seu tempo. Filme sobre a morte e a fé. E uma visão crítica da Igreja católica.
Quem narra é o próprio Olmi, cineasta católico pós-rosselliniano. As palavras de Martini e de autores que cita, como o escritor Mario Soldati, são apropriadas na própria textura da voz do realizador italiano. A vida, a morte, a fé, o amor e o trabalho. Os temas deste filme são também temas da obra de Olmi, desde os seus primeiros filmes, os documentários produzidos para a empresa de electricidade Edisonvolta.
A relação com a morte e o divino é mais óbvia a partir do filme que rodou com Rutger Hauer e que lhe valeu o prémio máximo em Veneza: La leggenda del santo bevitore (A Lenda do Santo Bebedor, 1988). Adensa-se com um filme como Il mestiere delle armi (Profissão das Armas, 2001), sobre o primeiro soldado morto com tiros de artilharia. Mais recentemente, Olmi aborda o problema da imigração de novo com Rutger Hauer, no cenário de uma igreja transformada em campo de refugiados, Il villaggio di cartone (A Vila de Cartão, 2011) – filme que se estreou directamente na televisão por cá.
Neste documentário, as primeiras palavras, ditas pela voz fraca mas cativante de Olmi, são fundamentais. Versam sobre a morte. O filme começa, e em certa medida não sai, do leito de morte de Martini. O Senhor Cardeal diz ser como qualquer um de nós. Tem medo de morrer. Da agonia final. De não poder controlar mais o seu corpo e as suas palavras. Olmi conta a história de Martini a partir da sua morte. A morte impele-nos a acreditar em Deus, diz-se no filme. Ora, para Olmi a “morte é um acto de justiça em relação a todos” (in Ermanno Olmi. Uma excêntrica normalidade) que nos faz valorizar a importância da vida. É, em certa medida, um mistério mobilizador.
Outro aspecto que me parece que põe em comunhão o pensamento e acção do Cardeal Martini com o espírito do cinema de Olmi prende-se com o que aquele designa de dimensão contemplativa do mundo. A educação de um novo olhar sobre o mundo. Esse gesto, caro ao Cardeal e ao cinema de Olmi – veja-se A Árvore dos Tamancos -, de parar o tempo, de ouvir o silêncio, de saber receber este como a palavra do mundo… Esta “atenção”, que participa na edificação de um tempo contemplativo, é característica fundamental de todo o cinema de Olmi. E aqui essa atenção olmiana encontra uma valiosa parceria espiritual, no verbo como na acção do Cardeal Martini.
Encontra-se tema e cineasta também na visão crítica que ambos têm da Igreja. Diz Martini: “Tive sonhos sobre a Igreja. Hoje não tenho. A Igreja deve reconhecer os seus erros. Da idolatria do dinheiro aos escândalos da pedofilia. Uma mudança radical é precisa. A Igreja está desactualizada em 200 anos.” Estas palavras ecoam em Olmi que dissera por outras palavras, em entrevista publicada no livro Ermanno Olmi. Uma excêntrica normalidade, o seguinte: “Enquanto a Igreja oficial tem dificuldade em estar a par dos tempos, porque se carregou de pesos e de estorvos por vezes bastante fastidiosos, a Igreja real, escondida, está seguramente presente na realidade quotidiana.” Martini é para Olmi, e Olmi também é/era assim, um homem desta Igreja real. Um homem como nós.
Luís Mendonça