Carlos Alberto Carrilho e Miguel Patrício continuam a sua cobertura do IndieLisboa, passando por títulos da Competição Internacional de longas-metragens do festival, assim como pela secção Silvestre e Boca do Inferno.
Da xiang xi di er zuo (An Elephant Sitting Still, 2018) de Hu Bo
É inegável que o suicídio de Hu Bo, após ter concluído Da xiang xi di er zuo (An Elephant Sitting Still, 2018), irá marcar a sorte do filme e as leituras que sobre ele forem produzidas. A dedicatória que surge nos créditos finais serve para lembrar a tragédia pessoal, mas também para inquirir até que ponto não estamos perante um filme-testamento. Na sua primeira e única longa-metragem, vagamente inspirada no mito grego de Jasão e os Argonautas, Hu Bo, também responsável pelo argumento e pela montagem, constrói um épico de quatrod horas que corresponde a um dia na vida de várias personagens, que se cruzam e reencontram, enquanto cresce nelas o desejo comum de se dirigirem para a cidade de Manzhouli, onde um elefante permanece sentado, indiferente à crueldade do mundo. A câmara de Bo segue junto ao corpo das personagens em longos e bem coreografados planos sequência, enquanto a profundidade de campo é desfocada e o fora de campo é maximizado, numa articulação que põe em causa o argumento de a normalidade ser difícil de dramatizar.
Nunca chegaremos a ver Manzhouli, incaracterística cidade chinesa cuja maior distinção é o facto de ser a mais importante fronteira terrestre entre o país e a Rússia, intersecção de poderosas linhas ferroviárias que ligam a Asia Oriental à Ocidental e à Europa. Mas, no último plano, como sinal de desassossego, ouvimos repetidamente o rugido barulhento do elefante, ofuscado pela escuridão. Da obra de Jia Zhangke ou Wang Bing sabemos que a selvajaria capitalista se propaga até ao ponto mais recôndito da China, embora em Da xiang xi di er zuo o país pareça ainda mais cinzento e deprimido. É apenas ao cair da noite, com a chegada da luz das lâmpadas e letreiros, que emerge uma viva claridade artificial. Como um périplo de longa duração, Da xiang xi di er zuo é um grito sem filtros que o correr dos anos poderia amenizar. Algo que nunca poderemos confirmar.
Carlos Alberto Carrilho
Les garçons sauvages (2017) de Bertrand Mandico
Em Portugal, existe uma certa tendência crítica que perpetua mitos datados, teimando em referenciar um mundo onde cineastas marginais agem como um bando de rapazes selvagens, indesejáveis maltrapilhos que roubam onde podem, dormem em cabanas improvisadas, sem morada certa. Não se percebe a metodologia usada, provavelmente resultado de algo bem mais simples como a ignorância e a sobranceria. Neste mundo improvável, até Kenneth Anger cabe dentro dessa categoria, mesmo sendo presença assídua em qualquer Cinemateca que se preze, objecto de luxuosas caixas de DVDs e Blu-rays lançadas por editoras prestigiadas, e menção obrigatória em qualquer trabalho escolar sobre cinema experimental. Vem isto a propósito da recepção crítica a Les garçons sauvages (2017), primeira longa-metragem de Bertrand Mandico, depois de muitos anos a trabalhar em formatos de curta e média-metragem, grande parte apresentada e premiada nos grandes festivais de cinema nacionais.
Por Mandico não ser um desconhecido, surpreende que as indicadas fontes de inspiração marginais sejam tão vulgares, que tanto poderia ser meia dúzia como qualquer outra centena. O que nem é segredo, pois Mandico faz questão de explicar uma multitude de influências que incluem figuras e factos da cultura popular, como David Bowie, Alain Delon, James Ensor, Seijun Suzuki ou Monte Verità. A máscara de uma pintura de James Ensor (1860-1949) antecede uma chuva de esperma que poderia ter saído de La bête (A Besta, 1975) de Walerian Borowczyk ou de Behind the Green Door (Por Detrás da Porta Verde – O Filme, 1972) de Artie e Jim Mitchell, o que desperta estimulantes continuidades temporais e espaciais. De resto, também a evolução narrativa acompanha a exploração formal, compondo a metamorfose de um grupo de rapazes, representados por actrizes, a partir de técnicas que evocam o cinema primitivo e experimental, como a pós-sincronização do som e os efeitos especiais manuais realizados durante as filmagens. Reduzir Les garçons sauvages a modelos passados, a uma marginalidade que eterniza uma visão monolítica do cinema de autor, é uma forma de negar a contemporaneidade do olhar de Bertrand Mandico na intersecção compulsiva de territórios porventura anacrónicos, olhando para o passado de modo a escortinar uma ideia de futuro.
Carlos Alberto Carrilho
Le lion est mort ce soir (2017) de Nobuhiro Suwa
Em Le lion est mort ce soir, Jean (Jean-Pierre Léaud) não consegue filmar a cena da sua morte. Ele confessa não possuir ferramentas nem conhecimento técnico de modo a converter a transformação das memórias de vida num derradeiro desligamento neutro, o último suspiro, a antítese de todo o ofício mimético do actor (quem nunca morreu não poderá saber o que é a morte, mas quem morreu nada mais poderá saber). No entanto, não deixa de ser curioso como Jean – Léaud, o protagonista deste filme ou ambos? – apenas o ano passado, tinha(m) já prestado contas à Senhora da Foice no soturno La Mort de Louis XIV (A Morte de Luís XIV, 2016), verdadeiro documento acerca da decadência física e mental do homem de carne e osso que sobrevive a todas as tentativas de representação de um outro. Quem se deixou hipnotizar pelos ritmos (ritos) fúnebres de Albert Serra dirá que o Rei Sol morreu bem, morreu como devia ter morrido, lentamente ofegante, colado aos lençóis, sem medalhas, espectacularmente patético (a cena da autópsia confirma-o). E, apesar disso, o filme terno de Nobuhiro Suwa (que não teria metade da sua força se não dialogasse internamente e não sucedesse ao de Serra) opta por uma estratégia completamente diferente: um orbitar em redor do lago da morte sem nunca ousar mergulhar nele. Não será por acaso que Jean, ao ver a miragem da única mulher que amou dentro das águas cintilantes, não a consegue resgatar. Ele não sabe nadar (no lago da morte). E o filme também não. Ambos permanecem nas margens, com os pés dentro de água, especados, imaginando a sua profundidade de olhos abertos – o plano final do filme, contrário à ideia, muito cinematográfica, que se morre de olhos cerrados.
Portanto, a morte aqui é sempre mediada. Pela fantasmagoria, pelos dois cinemas (o dos adultos que a representa; o das crianças que a exorciza), enfim, pela estranha e até, na maior parte das vezes, desajeitada presença do velho leão Léaud que, à semelhança das palavras do seu personagem homónimo, encontra-se na idade mais decisiva por que um homem pode passar, a idade do encontro com a finitude. Suwa, tal como Serra, priva-se de esconder essa fragilidade do actor que fatalmente se interpreta a si mesmo, mas aqui as sombras de uma glória passada são, paradoxalmente, mais difíceis de encarar a despeito da radical diferença de tom de um e outro cineasta (a decadência de Léaud joga sempre a favor do espanhol e nem sempre para o japonês). Quando as crianças questionam Jean pela sua profissão e este responde: “Sou um actor”, não conseguimos deixar de partilhar o mesmo primeiro sentimento de incredulidade dos petizes. Mas essa é a presença fascinante em Le lion est mort ce soir: uma insusceptível de cinema, resistente a ele, ou então a mais passível de o criar mesmo sem câmaras (como acontece na cena mais hilariante, quando Jean decide improvisar, estrebuchando, no set à revelia das direcções dos pequenos cineastas).
Miguel Patrício
Bara no sôretsu (Funeral Parade of Roses, 1969) de Toshio Matsumoto
Já no seminal ensaio A Teoria do Documentário Avant-Garde (Zen’ei kiroku eigaron, 1963), Toshio Matsumoto escrevia: “a tarefa da arte contemporânea deve cumprir-se na procura por novas maneiras de destruir a crença naïf no objecto, a compreensão (…) clássica do humano (…) que é baseada numa atitude conciliatória para com o objecto.” Mais à frente exigia aos documentaristas do futuro a apreensão “da totalidade do conflito e da unidade entre o mundo exterior e interior, almejando a uma síntese dos dois, possibilitando uma nova forma fílmica.” Bara no sôretsu, primeira longa-metragem que assimila ensinamentos teóricos e experiências documentais anteriores nomeadamente na curta-metragem Tsuburekakatta migime no tame ni (For My Damaged Right Eye, 1968), está montado num cepticismo extremo para com a exterioridade do mundo externo, a ideia errada que o mundo pode ser representado sem a interioridade de uma perspectiva. A rejeição desse carácter objectal, naturalista, só poderia precipitar toda a empreitada para a interioridade do aparato da percepção. O real feito objecto pela (e para a) câmara é aqui sucessivamente desmantelado, espartilhado em diferentes registos e perspectivas, como num poema interseccionista. Não há nenhuma imagem que não seja comentada por uma outra, instrumentalizada, nenhuma nesga de essencialidade que sobreviva à maré furiosa de uma montagem em eixos temporais, intrincados, em que nada sucede ou antecede de uma única maneira e cujas imagens “combinam (…) realidade e fantasia como numa pintura cubista”, citando Matsumoto. Tudo é dialéctica, tudo é guerra, tudo é tensão sobreposta (e sobreexposta).
Matsumoto vê, assim, no Édipo travesti (perdão, no Eddie travesti) o turbilhão ôntico, a martelada final da identidade, a confusão que não reclama para si mesma uma etiqueta no catálogo dos seres, em suma, a diva subversiva coroada em rosas (uma nova diva baseada, ainda que ironicamente, no cânone hollywoodesco), reflectida no espelho da estrutura formal do próprio filme que, como é evidente, se desmantela em vários estilhaços, nunca sendo apenas a soma dos processos e das linguagens cinematográficas adaptadas, mas uma síntese, justamente, de determinações exteriores (as ruas de Shinjuku, entes filmados, a individualidade concreta de cada plano) e interiores (a cadência das imagens, as estratégias de distanciamento e reflexividade, o espectador que não tem alternativa senão sentir-se como uma máquina de percepção). Nesse mundo em constante transgressão (sexual, identitária, política, cultural), Matsumoto também vê personificada “a ferida e a lâmina/ a vítima e o perpetrador” dos dois versos soltos do L’Héautontimorouménos de Baudelaire citados no primeiro intertítulo; a negação soberana que faz o “gay boy” fingir (do fingere latino) ser um simulacro de “hetero woman” – e não nos é dito no final com todas as letras que “o espírito de um indivíduo alcança o seu absoluto através da negação incessante?” Pois bem, o dispositivo da máscara será o símbolo máximo dessa negação, baluarte da subjectividade sem concessões de todo o cinema da Art Theatre Guild. Ela permite ser o outro e o mesmo, transitar entre os intervalos, representar a síntese dos contrários (homem/mulher, interior/exterior, documentário/ficção, etc.). E também o cinema de Matsumoto constantemente se mascara, se maquilha, se transforma (no sentido transformista do termo), é à imagem e semelhança do drag-queen que apresentando uma silhueta indubitavelmente feminina no duche, esconde um peito raso masculino subitamente revelado e paralisado pela câmara.
Miguel Patrício
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