La paura (O Medo, 1954) começa num ambiente nocturno semelhante a um qualquer film noir que nos conduz pela cidade onde um casal se despede, discute, beija. Amantes em crise, infidelidade e medo em primeiro plano e ameaça com rosto de chantagem são elementos que se concentram logo nos primeiros minutos, e colocam-nos no lugar certo do mal-estar das personagens, apertadas no interior de uma trama de traição e suspense. A cidade reduz-se muito depressa e esvazia-se para criar um microcosmos com a aparência de melodrama noir. O ambiente tem importância, logo à partida, pelo tom construído por Rossellini neste filme peculiar que finalmente ainda lhe pertence, mas está mais perto de outros universos de cinema, numa zona mais confortável para a sua mulher Ingrid Bergman, aqui protagonista, emparedada numa história de culpa e medo. É referida a vontade do realizador de se aproximar de um estilo mais hitchcockiano, com influências do cinema alemão, e uma notória valoração da intriga base e dos elementos que a sustentam, onde são lançados os temas da traição e da vingança – tudo bem engrenado num verdadeiro rodopio emocional.
Ingrid Bergman, no papel de Irene Wagner, mulher do professor e cientista Wagner, interpretado pelo actor alemão Mathias Wieman, tem medo, um medo que atravessa e alimenta o filme todo, fazendo jus ao seu título, em italiano, La paura, que se baseia livremente no romance de Stefan Zweig Die Angst, e foi rodado na Alemanha durante 30 dias. A acção no livro acontece na cidade de Viena imperial, no filme estamos em Munique nos anos 50. Contou com duas versões uma alemã (Angst) e outra internacional (Fear), que se distinguem pela montagem e por alguma diferenciação nos planos e no final, um feliz, e mais fechado, e outro, mais aberto (a versão italiana corresponde à internacional), houve ainda uma versão mais curta com o título Non Credo più All’Amore. Em 2014, o filme foi restaurado e conta com uma versão apresentada em Cannes, segundo a montagem que Rossellini realmente pretendia.
Resgatado que está agora O Medo, estamos perante um filme que parece não ter medo da exposição mais sensível à questão da traição e da vingança, com flechas apontadas aos poderes afectivos e ao lastro central da intimidade. A manipulação joga-se numa encenação intensa, bem elaborada na troca entre os lesados, e muito bem projectada no desespero de quem sente a culpa, de quem se sente armadilhado e sem saída.
Rossellini com as suas ditas “crónicas neo-realistas” à volta do casal que se desfaz, marcadas pela entrada de Ingrid Bergman na sua vida pessoal e na vida dos seus filmes, a encarnar as figuras femininas centrais, abre um campo privilegiado à modernidade do cinema na sua forma estrutural, fazendo dialogar intensamente fundo e forma. Neste período, com a cumplicidade de Bergman no duplo papel de actriz e mulher, Rossellini produz assim a passagem para a subjectividade no seu cinema. Temos, portanto, a entrada em campo de Bergman, no privilegiado campo das imagens de Rossellini com os grandes: Stromboli, terra di dio (Stromboli, 1950), e a nova prisão da resgatada mulher refugiada, Karen, na ilha vulcânica de Stromboli, território hostil que se vê e sente de fora, na mesma proporção que a personagem o sente por dentro e o vive interiormente (a lembrar em espelho a vida pessoal de Ingrid Bergman e a partida da América para Itália, deixando atrás marido e filha, e olhos moralizadores cravados em si); Europa 51’ (1952) tem o sopro de um périplo sacrificial da personagem Irene que na perda trágica do filho procura fazer o bem, tal qual um anjo, mulher santa, mulher louca, com a suprema inspiração de Francisco de Assis; Viagem em Itália (1954) põe a vida de Katherine e do marido numa viagem a dois, carregada de momentos e de sinais que levam o filme e as personagens para uma dimensão de fé mais ampla e milagrosa – filme ultra citado pela cinefilia.
O Medo parece um filme mais circular na aparência, mas organiza-se formalmente de tal maneira que se recolhe em potência como detentor de uma força interna qualquer, de uma qualidade intangível, estranha, que se isolarmos algumas das falas mais explicativas (logo no início as personagens contam-se muito, expressam directamente todo o seu mal-estar) ficamos com as sensações mais fortes do tal desespero que alimenta a expressão do medo. Este medo está logo lá no início, na situação instalada, no corpo de uma mulher que luta ferozmente com a culpabilidade. A chantagem atravessa-se imediatamente no caminho de Irene, vinda das sombras e da escuridão, na figura da menina Schultze.
Mas as coisas não são na verdade o que parecem ser, e o filme avança numa onda de suspense intimista, articulando progressivamente a intriga para se chegar ao manipulador nato daquela roda perigosa: o marido. Pode falar-se da dimensão manipuladora que é projectada no filme que reflecte a vida privada de Bergman e de Rossellini, não podemos escapar a este núcleo da biografia da actriz e do realizador, pois este é o último filme de ambos e carrega naturalmente o fim e a separação.
Rossellini não larga Bergman, o filme é, a maior parte do tempo, ela, exposta, vulnerável, e também é ele, o marido, quer dizer, o realizador, a “olhar”, a perscrutar a mulher, o movimento do seu corpo, a tensão expressiva dos músculos do seu rosto, o medo traduzido no olhar, a luta interna de ambos a sair cá para fora. O desespero está no corpo da actriz que se move pelo filme dentro como um bicho tenso que espreita janelas, assoma furtivamente às portas, sobe e desce escadas, carregadinha de uma película de temor que a vai cobrindo toda.
O que fazer quando o espaço se encurta à volta? Quando o tempo fica pequeno e o medo fica grande? Rossellini e Bergman têm algumas respostas: levar um corpo para a imagem, despojar um décor, concentrar as coisas, repetir os passos, atender aos gestos pequenos, à deslocação pelo espaço; deixar a personagem ficar sozinha, torná-la uma figura em trânsito, perdida, trabalhar as sombras para as distinguir da luz, olhar de frente, confrontar, criar laços, desenlaçar tudo.
Por fim, Irene irá atravessar o laboratório, um incrível décor que se descobre amplo, naquele momento parece um espaço infinito que cresceu; vemos os animais em gaiolas, cobaias em cativeiro, e ampolas, e mais frascos de laboratório. O marido tem vindo a criar vários venenos, ele sabe do assunto: “Um veneno pode neutralizar outro”, vai testando-os nos animais, medindo-lhes o ritmo cardíaco, a capacidade de resistência, a qualidade de resposta. O ritmo cardíaco de Irene é também medido, avaliado, os meandros mais agitados da sua pessoa são projectados nas sombras, recolhidos nos cantos, num submundo complexo de medos, ela passa a ser a cobaia.
Este é um filme que se pode ver melhor nas margens, na projecção mais noir do “sintoma” que passa pelas imagens, que reflecte e olha Irene-Bergman, pelo olho cru de Rossellini, que lança as intimidades para fora do seu núcleo, e o rigor formal vai compor quadro, a quadro, e formar esta convulsão. O filme mais estranho de Rossellini, segundo o crítico Adriano Aprà, “transparente” e “oculto”, ao mesmo tempo, e na verdade dos mais misteriosos que realizou.
O que realmente sempre importou ao cineasta foi o ser humano: “tentei exprimir a alma, a luz que está no interior dos homens, a sua realidade que é uma realidade absolutamente íntima, única, presa ao indivíduo, como também o sentido das coisas que o rodeiam, as coisas têm um sentido porque são olhadas por alguém”. Pois é, este é também um filme de Rossellini, olhado por ele, onde a realidade do concreto e a fé no homem podem estar ali nas sombras e na escuridão.
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Este texto continua a rubrica Cinema em Casa onde regularmente o À pala de Walsh fará os destaques de lançamentos DVD/Blu-Ray /VOD no mercado nacional. La paura pode ser visto em streaming na mais recente plataforma de VOD nacional, o Filmin.
O filme passa também nesta quarta-feira, dia 30 de Maio, no Espaço Nimas, às 19h00, no âmbito do ciclo Amor & Intimidade.