Cineasta de aparições e fantasmagorias, Kiyoshi Kurosawa foi para a Europa filmar uma história de amor assombrada pelo espírito da fotografia oitocentista de Louis Daguerre. Da sua dolorosa concepção, para a modelo, devido aos longos tempos de exposição, que a obrigam a uma pose rígida e mortificante, até à sua fixação espantosa por efeito dos vapores de mercúrio, a fotografia daguerreotipista aparece associada a uma ideia tanatográfica de dor e fantasmagoria. Como se materializa – como se materializa, de facto, aqui – esse espírito imanente à imagem (imago, palavra latina que significa o defunto aparecido)? Através de um ritual de morte, o da tiragem de uma fotografia. A fotografia tira-se e faz-se. Por um lado, é como na teoria dos espectros de Balzac, narrada por outro grande fotógrafo do século XIX, Nadar (Quando Eu era Fotógrafo): a cada disparo captura-se uma das “películas infinitesimais” que formam uma “série de espectros” de cada corpo da Natureza. Por outro lado, o fotógrafo é um verdadeiro metteur en scène, compondo a cena com uma precisão cirúrgica, da roupa e adereços até ao rigor mortis da pose do ou da modelo. Em Le secret de la chambre noire (O Segredo da Câmara Escura, 2016), filme teórico algo gélido, que a certa altura resiste ao fascínio fácil, a fotografia é literalmente, como um dia disse Susan Sontag (Ensaios sobre a Fotografia), “um assassínio sublimado”, uma janela aberta para o lado de lá…
Ao devir-fantasma das personagens, sucede-se o devir-fantasma do próprio filme a certa altura, num perturbante split em que – se havia dúvidas até então – o corpo vira espectro e o espectro vira corpo. Estamos em pleno universo de Kurosawa, que há muito se transformou num dos mais brilhantes – e ritualistas – cineastas do terror. Um terror materialista, quase primitivo, que aspira a um eterismo enigmático – enfim, diria que algures entre Segundo de Chomón e Andrei Tarkovski -, que se baseia num dispositivo extremamente rudimentar de efeitos para produzir a sua muito concreta dimensão “fantástica”. Os espectros são como gente, confundem-se connosco, porque andam, falam e… beijam como nós. Que a personagem principal se apaixone pela modelo exangue, desapossada do seu “eu” pela fotografia, não nos aparece como algo de estranho no universo de Kurosawa. Acontece frequentemente nos seus filmes não sabermos ao certo quem é “o outro”, apesar de não haver dúvidas da sua presença. Isto é, aliás, levado à letra no filme que se segue a este, e que carece ainda de estreia nas nossas salas, Sanpo suru shinryakusha (Before We Vanish, 2017), em que presenças alienígenas se manifestam na Terra em corpos de pessoas comuns, tentando extirpar a humanidade de conceitos tais como “propriedade”, “trabalho”, “eu e tu”, “amor”, etc. Em Le secret de la chambre noire, o conceito que se trabalha, até ao âmago, é o de fotografia. Como também acontece na obra máxima de Kurosawa Cure (A Cura, 1997), uma força qualquer anima corpos espectrais ou, no caso, espectralizados pela imagem fotográfica.
O filme de Kurosawa termina numa conciliação terrível, gélida, perto de inerte, entre essa pseudopresença (do espírito) e essa ausência (do corpo) que são tropos da fotografia.
O filme está claramente dividido em dois, transpondo para a sua própria estrutura narrativa uma dualidade intrínseca à imagem, entre significado e significante, entre a realidade e o analogon. A primeira parte é mais sedutora, porque a produção do daguerreótipo é objecto de uma fascinante reconstituição, na cenografia, tempos de exposição e em placas de metal de grandes dimensões onde ganham vida – uma vida mais verdadeira do que a vida ela mesma, apetece exclamar citando Edgar Allan Poe no seu Retrato Oval – imagens dessa modelo em processo de desvanecimento existencial, película após película. É um processo de perda de uma realidade primeira, fazendo de um ser analogon de carne e osso. Esta é a história de uma persistência de fantasmas, os do passado e do presente, os que vivem na cabeça e habitam os lugares em que se inicia o frágil protagonista (interpretado com uma nota gélida apreciável por Tahar Rahim).
Quem é? Quem assombra, porque assombra? Por quem e em nome de quê assombra ela? A rapariga filha do fotógrafo (outra interpretação assinalável, a de Constance Rousseau) torna-se, deste modo, uma espécie de grande metáfora da fotografia feita de carne e osso. Mas nem tudo é “teoria” neste filme de Kurosawa. Na sequência passada na estufa, em que o fotógrafo (Olivier Gourmet) é visitado pelo fantasma da mulher, somos assaltados por uma delicada e arrepiante apropriação de um certo tempo fílmico pela câmara – e montagem – de Kurosawa, um que desliza no sentido de uma pura “estranheza familiar” ou “imobilidade de morte” [a fotografia como ideia, parece-me, sempre foi objecto simultaneamente de desejo e de terror no cinema do nipónico, veja-se e reveja-se por exemplo Kôrei (Séance, 2000) ou Sakebi (Retribution, 2006)]. Portanto, não se iluda o espectador que lamenta mais profundamente do que devia por causa da primeira parte que passou e não volta mais. Ela volta insidiosamente como se a primeira parte transbordasse psiquicamente para a segunda parte. As questões levantadas na primeira parte transformam-se, nessa segunda parte, numa manifestação subterrânea de grandes implicações. Como uma corrente de ar que agita as existências até que a realidade seja, enfim, plenamente substituída pela persistência do fantasma, leia-se, de uma realidade tomada por fantasmas. O final, à guisa de Psycho (Psico, 1960), é uma dura negação – e, contudo, é também uma triste afirmação – da vida. Como dizia Sontag (Ensaios sobre a Fotografia), uma fotografia “é simultaneamente uma pseudopresença e um signo de ausência”. O filme de Kurosawa termina numa conciliação terrível, gélida, perto de inerte, entre essa pseudopresença (do espírito) e essa ausência (do corpo) que são tropos da fotografia.