Presente em Lisboa como uma das homenageadas da edição 2018 do IndieLisboa, foi no primeiro de Maio que a realizadora argentina Lucrecia Martel preencheu um auditório na Culturgest, conquistando as dezenas de presentes com carisma e sentido de humor. Foram duas inspiradas horas da ”heroína independente” Lucrecia (i)moderada por Cláudia Varejão que, tão rendida como os outros realizadores e artistas presentes, escutava com atenção de aprendiz. Apesar dos relativamente escassos títulos (apenas quatro longas, ao lado de várias curtas), o cinema de Martel tornou-se, distintivamente, um emblema da América Latina do século XXI. A despeito do assumido cansaço, aceitou conversar sobre Zama (2017), o seu mais recente filme, estreado no âmbito do Festival e, em Portugal, distribuído nas salas pela O Som e a Fúria.
Antes de mais, obrigada pelo seu lindíssimo filme. O seu cinema tem vindo a acompanhar-me: pude ver alguns dos seus filmes repetidamente, aquando da sua estreia em sala em Lisboa, enquanto estava na Escola de Cinema e foram formadores. Senti que Zama participa do mesmo espírito que conduz La mujer sin cabeza (2008). Em ambos, chegamos até um/uma protagonista que não está inteiramente na sua vida, seja por culpa (no caso de Verónica), seja pela vontade de estar alhures (no caso de Zama) e o resultado é um filme que observa à superfície da pele. Pertence ao cinema a vocação de estudar o outro, aproximando-nos dele, através da atenção às microfisionomias e sensações?
Sempre me pareceu que a única forma de ver coisas novas no mundo é fixando os pequenos detalhes. A nossa percepção está de tal forma acostumada a fazer leituras rápidas e a prosseguir a partir delas que, quando uma pessoa presta verdadeira atenção aos detalhes, começa a ver a realidade de outra maneira. E começa a ver a arbitrariedade da realidade – e este é um conceito, para mim, muito importante. O meu motto: fazer filmes para ver a arbitrariedade da realidade. Porque senão a realidade parece ser uma coisa que o cinema deseja imitar e eu penso que não é assim. Pelo contrário: o que o cinema pode fazer – caso os realizadores assim o queiram – é desactivar essa naturalização da realidade e encarar a realidade como algo construído. E chegamos a isso através da micro-construção de detalhes e de um movimento aproximado de observação.
O grande director de fotografia Rui Poças – mais um factor que aproxima o filme de Portugal – confidenciou, sobre a experiência de trabalhar com a Lucrecia Martel, que há mais investimento nas conversas preparatórias para o filme do que na sua rodagem propriamente dita. O que é que há de particular neste método de trabalho?
Eu acho que só existe uma coisa e essa coisa é o corpo.
A questão é que ter ideias leva tempo. Não se tem ideias rapidamente. As ideias imediatas são sempre cliché. Para ter ideias mais frescas leva-se bastante tempo e tem de ser assim. Com o Rui [Poças], o que aconteceu no trabalho preparatório foi que chegámos à conclusão de que não iríamos usar nem velas, nem fogo nem nenhuma dessas formas de luz que rapidamente dão ao espectador a impressão de que está no passado. O objectivo era gerar um passado mais duvidoso. Há formas fixas que o cinema usa para tentar convencer o espectador de que ‘‘é assim’’, não é? Acho que os filmes que procuram falar do passado através desses recursos tentam dizer precisamente isso: “Naquele tempo era assim”. Mas se um realizador não recorre a estes elementos, o espectador duvida daquilo que está a ver, num terreno de insegurança que eu prefiro. O Rui partilhava deste ponto de vista, com vontade de trabalhar esse estado de mistério que deixa o espectador na dúvida: onde estamos? Que filme é este? O que vai acontecer a seguir?
O seu filme anterior, La mujer sin cabeza, já estreou há dez anos. O que é que se passou neste interregno e por que é que demorou tanto tempo a regressar à realização?
A verdade é que não estou constantemente a pensar no que é que vou fazer a seguir como realizadora ou em qual vai ser o próximo filme. Até agora, tenho conduzido a minha vida deixando que os interesses surjam, de repente. Não é que eu tenha um desejo permanente de fazer cinema. Quando tenho o projecto de fazer um filme, faço-o – quero dizer, sempre que pode fazer-se, claro. Mas não tenho projectos para filmar para o próximo ano nem sequer tenho vontade de passar a vida a fazer filmes, apenas. Não sou esse tipo de realizadora.
Esteve três anos a tentar uma adaptação da banda-desenhada El Eternauta, não foi? Em que pé está esse projecto?
Os produtores com quem estive a tentar negociar a adaptação do livro têm os direitos sobre o mesmo. Como, protegendo o meu ponto de vista enquanto realizadora, não consegui chegar a um acordo, não vou fazer esse projecto. Em 2010, terminei a escrita desse guião mas esse filme, a fazer-se, não será comigo mas com outro realizador.
A última cena de Zama parece-nos alegórica… remete-nos para a barca mitológica que atravessa o Limbo até ao Reino da Morte – ou quiçá – até ao Reino da Vida, mais uma vez. Regressamos aos ‘’pântanos’’ de La Ciénaga (2001), um lugar intermédio e sem forma, imperfeito mas envolto em mistério. É um estado de esperança ou de desencantamento?
Ajuda-me muito encarar cada um dos meus personagens como monstros. O único objectivo claro do monstro é que ele deseja.
Quando eu filmo, não penso no que tenho à frente como um símbolo, como a metáfora para uma outra coisa. Zama está naquela barca e os índios levam-no para outro lugar, que será onde eles vivem. Agora, se encarasse aquilo como uma metáfora, nem sequer saberia filmar. Filmo aquilo que eu acho que se está a passar: dois índios conduzem Zama numa barca através de uma paisagem aquática, num cenário cheio de árvores e a perder de vista que me encantava precisamente pela sua indefinição. Mas nunca fixei sobre esta cena uma ideia simbólica concreta. É importante que assim seja porque é exactamente isso que deixa ao espectador todas as possibilidades interpretativas, como a interpretação que acabou de fazer. Se eu vinco uma ‘‘função metafórica’’ num determinado momento, o espectador verá e dirá: “é isto.” E isso seria roubar ao espectador uma parte do jogo, seria mandá-lo sentir e pensar desta ou daquela maneira, impedindo-o de desempenhar o seu próprio papel nesta troca.
Percebo e, enquanto espectadora, só posso agradecer-lhe. Zama está em permanente estado de ansiedade: quer voltar a casa, quer voltar à família (o seu verdadeiro El Dorado). Divergente dos preceitos dominantes, sem ambições materiais excepto a preservação da própria vida, é nesta espécie de existência pós-paradisíaca que o acompanhamos e que nos relembra da formulação clássica do conceito de amor romântico, alimentado por ideais e platonismo: Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta viram-se separados, Hércules ansiava voltar para Penélope e enfrentou tão grandes perigos e trabalhos, etc. Aqui, o cinema lida com a imagem de um homem a envelhecer e a degradar-se que, em suma, sente e não sente desejo carnal pelas mulheres. Tendo partido de um romance para esta adaptação, acha que o cinema corrige esta visão (algo ocidentalizante) do amor, mostrando como se passa entre corpos e não só entre espíritos?
Eu acho que só existe uma coisa e essa coisa é o corpo. Todas as nossas loucuras advêm da separação artificial dos dois: para um lado o espírito, para o outro lado o corpo. Para mim só há uma coisa e que tem esse componente material – é matéria invisível mas é parte do corpo. Desta forma, quando antecipo um filme e reflicto sobre personagens ou conflitos, trato de ultrapassar essa ideia, em que também fui educada, da separação corpo-alma. E faço um esforço muito grande para sacudir de mim essa divisão, para poder observar as pessoas na sua integridade. Ajuda-me muito encarar cada um dos meus personagens como monstros: não existe nenhum homem adulto, não existe nenhum rapaz jovem. Eles são monstros. Esta forma de pensar permite-me fugir imenso ao cliché. O único objectivo claro do monstro é que ele deseja. Agora, o que é que ele deseja? Nada em concreto. Algo indefinível, difícil de compreender ou de dar a ver. Então, Zama é como que um alien que deseja algo que não se pode delimitar concretamente. E todos nós somos assim. Estamos em permanente desejo de algo que não é exactamente o amor, não é exactamente o êxito, não é exactamente o dinheiro. Estamos sempre a desejar mas isso que nós desejamos é, fundamentalmente, um enorme ponto de interrogação. E, pelo meio, surgem coisas que não desejámos mas que nos produzem imensa satisfação, precisamente por não serem aguardadas. Porque a existência é mesmo muito misteriosa. [risos] A propósito do monstruoso: o livro (de Antonio Di Benedetto), do qual parte este filme, começa com um símio morto que dá à costa, indo e vindo em redemoinho. Uma cena que eu não filmei.