Luz Obscura (2017), último filme de Susana de Sousa Dias, prossegue a revisitação da ditadura salazarista, servindo-se novamente de imagens de arquivo, mas inscrevendo-se desta vez de forma mais declarada no presente, mostrando-nos mesmo que fugazmente os herdeiros da história que acompanha, numa tentativa de, através da desocultação da sua imagem, revelar algo sobre a marca que o passado deixou neles.
Este percurso através da memória é feito pela realizadora, mas caberá idealmente também ao país. Se este filme continua o trabalho de questionamento do cinema enquanto relação entre som e imagem, e é também nesse sentido uma auto-reflexão, é como mote para a análise da própria história que Luz Obscura merece ser visto pelo público português. Importa-me destacar que estas duas formas de circunspeção têm graus de conseguimento diferentes, ainda que possamos perguntar se o sucesso de uma não está relacionado com o sucesso da outra.
Todo o filme é estruturado em torno das vozes dos três filhos de Octávio Pato, militante do Partido Comunista Português, opositor ao regime salazarista e mais tarde candidato à Presidência da República. Álvaro, Rui e Isabel, nascidos na clandestinidade, chegaram a passar períodos da sua infância no interior de uma prisão. Os depoimentos dos três são simultaneamente, e de forma indestrinçável, e as memórias de uma família e um documento histórico sobre a violenta repressão policial exercida pelo regime sobre os seus antagonistas. O modo como o público e o privado aqui se articulam é relevante.
Sousa Dias constrói Luz Obscura, como é aliás sublinhado pelas palavras iniciais, a partir daquele que foi um dos pilares centrais de sustentação do Estado Novo, a família. A estrutura familiar, enquanto forma de organização apropriada pelo fascismo, é, pois, apresentada com valor invertido – como núcleo de resistência, no interior do qual se transmitem convicções, mas também objectos mais prosaicos. Essa pequena História não é pouco importante para o exercício propriamente colectivo da memória.
À semelhança das práticas da desconstrução que encontramos em Natureza Morta (2005) e 48 (2010), em que as imagens são ressignificadas, seja através da sua desaceleração ou do comentário feito pela própria música, no primeiro caso, ou da excessiva duração da imagem, sobre a qual a voz do retratado revela elementos à partida invisíveis, no segundo, também em Luz Obscura se opera, a vários níveis, uma inversão dos termos, nomeadamente de modelos de família, questionamento que o projecto em que Sousa Dias trabalha actualmente pretende continuar.
A insistência numa humanização da história surge como excessivamente literal, como se aí se sentisse o esforço de Sousa Dias nos forçar à identificação com aquelas pessoas.
Um mesmo elemento – as fotografias de cadastro de Octávio Pato, das suas duas companheiras, irmãos e filhos, que serviam naturalmente como retrato do inimigo, do criminoso – surge aqui redescrito pelo mesmo processo de voice-over que Dias usou em 48. Aquelas fotografias, rimando com as incursões à casa em ruína, são agora o único álbum possível da família Pato, destruída por um regime e em prol dele. O gesto mais importante de Luz Obscura é sugerir que uma mesma coisa pode ser usada de modos opostos, como se insinua a propósito da juventude e do intelecto dos agentes da PIDE de quem Álvaro Pato fala no final.
Os momentos em que a reivindicação das imagens tem o seu expoente mais perfeito não são tanto aqueles em que Álvaro descreve torturas ou quando, por exemplo, vemos a drástica transformação do rosto da sua mãe, vencida por meses de prisão, ainda que estas constituam revelações agudas e ainda hoje necessárias acerca da acção da PIDE. Mas aquela reivindicação, como dizia, concretiza-se de forma mais perfeita nos momentos em que o filme devolve algo aos filhos de Pato, como quando vemos na tela o rosto do tio Abel, tornado mais luminoso pelas palavras saudosas de Isabel, que diz não ter dele nenhuma fotografia.
Sugeri implicitamente acima que, no caso de Luz Obscura, a reflexão sobre o passado depende necessariamente de um equilíbrio entre a humanização da história, através da convocação dos seus intervenientes, e uma contenção formal que garanta uma empatia ponderada. Se há, de facto, uma sobriedade no trabalho de Sousa Dias, a correspondência entre as duas bandas, a do som e a da imagem, é talvez o ponto de maior instabilidade do filme.
Por um lado, Luz Obscura integra momentos de uma certa abstracção, que me parecem muito ricos, que abrem a leitura ao invés de a fecharem, como os minutos iniciais do filme, em que a voz de Isabel evocando a infância desponta de um mar negro e agitado, quando fala de um mundo visto por uma janela, com o que de terrível e belo essa imagem contém. Por outro, há, ao longo do filme, uma certa violência imposta às imagens pelas palavras de Álvaro, Isabel e Rui, pela amplificação dos sons que os rodeiam, criando um espaço claustrofóbico, um enredamento que me parece, simultaneamente, uma virtude e um defeito. A insistência numa humanização da história, nomeadamente a tentativa de filmar a memória embutida nos três irmãos, surge como excessivamente literal, como se aí se sentisse o esforço de Sousa Dias nos forçar à identificação com aquelas pessoas.
Nenhuma destas imperfeições, no entanto, retiram a Luz Obscura a sua importância. Estreado na anterior edição do festival IndieLisboa, em 2017, e exibido já internacionalmente, em festivais como o Cinéma du Réel, o filme tem agora estreia comercial nas salas portuguesas.