Falando da crítica de cinema enquanto escola, numa entrevista de 2010, Serge Bozon constata que a revista Cahiers du cinéma produziu um cineasta na década de 1980, Olivier Assayas, outro na de 1990, Thierry Jousse, e dois durante a de 2000, Cédric Anger e Mia Hansen-Løve. No que toca à La lettre du cinema – revista trimestral dedicada a cinema de vanguarda e a abordagens que privilegiam a ligação entre o cinema e a arte contemporânea, onde Bozon foi colaborador -, em apenas uma década, a sua comunidade de cineastas incluía: Vincent Dieutre, Judith Cahen, Sandrine Rinaldi, Axelle Ropert, Jean-Charles Fitoussi, Jean-Paul Civeyrac, Pierre Léon, Pascale Bodet, ou mesmo, Eugène Green. Trata-se de uma grupo de cineastas sem grandes expectativas quanto aos resultados comerciais, mas que partilham uma certa unidade estilística e comunhão de gostos – entre o trabalho do Cercle du Mac-Mahon, cineclube ligado ao Cinéma Mac-Mahon, cuja programação durante a década de 1960 favorecia a fetichização da mise en scène através das obras de Raoul Walsh, Otto Preminger, Fritz Lang ou Joseph Losey; ao grupo de autores que trabalha em torno da companhia de produção Diagonale, fundada por Paul Vecchiali em 1976, cujo lema “a economia é o estilo” se repercutia em curtos períodos de filmagem, extremo controlo de orçamentos e partilha de equipas técnicas e artísticas. Quando inicia a actividade na escrita de cinema, Bozon não almeja tornar-se realizador, no entanto considera que “a crítica é uma forma de transformar essa curiosidade num estado febril”. Madame Hyde (2017), Tip Top (2013), La France (2007), Mods (2002) e L’amitié (1998) são obras de contrastes e disrupções, compostas pela convocação, nem sempre serena, de apontamentos vindos do cinema de género: musical, comédia, policial ou fantástico.
Entretanto, Serge Bozon comissariou, em conjunto com Pascale Bodet, Beaubourg, la dernière Major! (2010), evento de dez dias que ocupou o primeiro andar do Centre Pompidou, sugerindo uma história alternativa do cinema francês. Recusando abordagens de ordem sequencial de autores, filmes ou avanços técnicos, propunha uma visão de cem anos de cinema francês por meio de aspectos da actividade cinematográfica como a realização, o argumento, a correcção de cor ou o som. Em termos práticos, reuniu autores do presente e do passado, entre obras de vivos e mortos, num conjunto de projecções, conferências, performances, concertos, sessões DJ e outros espectáculos, que contou com as intervenções de Paul Vecchiali, Luc Moullet, Adolfo Arrietta, Pierre Léon, Raoul Ruiz ou de outras figuras menos evidentes como Thomas Salvador, realizador e acrobata que até à data apenas tinha realizado curtas-metragens. Beaubourg, la dernière Major! foi o pretexto para Bozon filmar, com o público a assistir, a média-metragem L’imprésario (2011), em que a relação amorosa entre uma jornalista e um empresário artístico é intercalada por uma selecção das intervenções. Tal como o evento, o resultado é um testemunho de amor, mas também a dessacralização da ideia de uma história única, expondo invisibilidades e contornando estereótipos.
Apesar da posição singular de Serge Bozon no cinema francês, Madame Hyde (2017) é o seu primeiro título a estrear pela distribuição comercial portuguesa, o que é surpreendente uma vez que os seus filmes têm sido objecto de larga cobertura nos meios especializados e têm passado e recolhido prémios nos principais festivais internacionais. No caso de Madame Hyde, Isabelle Huppert recebeu o prémio de melhor interpretação feminina no Festival de Locarno 2017. Numa adaptação livre, da responsabilidade de Bozon e da colaboradora habitual e realizadora Axelle Ropert, do romance gótico Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde (1886) de Robert Louis Stevenson, Isabelle Huppert regressa à obra de Bozon, longe da extravagante inspectora policial de Tip Top, interpretando Marie Géquil, professora de ciências desprezada pelos alunos e pelos colegas até que sofre um acidente no laboratório escolar que desperta Madame Hyde, figura com uma faceta que mudará as suas relações dentro das comunidades escolar e familiar, num caminho que pretende assegurar autoridade mas que apenas redunda em desintegração.
Para além das inúmeras adaptações no teatro, na televisão, na rádio, na música ou na literatura, o cinema tem sido pródigo no tratamento das figuras de Dr Jekyll e Mr Hyde: desde os clássicos de John S. Robertson (1920) e Rouben Mamoulian (1931), com interpretações excepcionais de John Barrymore e Fredric March; às comédias Abbott and Costello Meet Dr. Jekyll and Mr. Hyde (Abbott e Costello Entre o Médico e o Monstro, 1953) de Charles Lamont e The Nutty Professor (As Noites Loucas do Dr. Jerryll, 1963) de Jerry Lewis; à habitual versão a cores dos títulos da Universal produzida pela Hammer, The Two Faces of Dr. Jekyll (As 2 Faces do Dr. Jekyll, 1960) de Terence Fisher; ao euro-horror de Dr. Jekyll y el Hombre Lobo (1972) dirigido por León Klimovsky e interpretado por Jacinto Molina, internacionalmente conhecido como Paul Naschy; ou à obra-prima tardia de Walerian Borowczyk, Docteur Jekyll et les femmes (Dr. Jekyll e as Mulheres, 1981), interpretada por Udo Kier.
É nas rimas das trocas de palavras, por vezes azedas, entre a professora e os alunos que a musicalidade, aqui entendida como a busca de uma certa harmonia, melhor parece viver.
Dr. Jekyll and Sister Hyde (A Bela e o Monstro, 1971) de Roy Ward Baker, também produzida pela Hammer – a terceira adaptação do estúdio após The Ugly Duckling (Lance Comfort, 1959) e a referida versão de Terence Fisher -, interpretada por Ralph Bates e Martine Beswick, é uma das adaptações mais curiosas e das primeiras em que Jekyll, entrelaçado nas histórias de Jack the Ripper e da dupla Burke and Hare, famosos “resurrection men” (ladrões de cadáveres), se transforma numa mulher atraente, que serve como disfarce para os crimes monstruosos cometidos. Largando os estudos sobre doenças, que lhe exigem mais que uma vida para encontrar as curas, Jekyll fica obcecado com a descoberta de um elixir da juventude. Partindo da premissa que as mulheres vivem mais anos que os homens e possuem sistemas biológicos mais poderosos, utiliza hormonas femininas retiradas de cadáveres frescos resultantes de assassinatos, com vista a produzir a milagrosa solução que lhe permitirá prolongar a vida. Inesperadamente, misturando as hormonas femininas no soro que bebe, a transformação muda o seu género, dando lugar a uma bela e perigosa Madame Hyde.
Ao contrário da maioria das adaptações, que partem de engenhosos jogos de câmara e efeitos especiais para compor a transformação de Jekyll em Hyde, no filme dirigido por Walerian Borowczyk ela acontece por meio da imersão num banho de químicos. Também a noiva (Marina Pierro) se deleita demoradamente nesse banho, metamorfoseando-se numa potencial Madame Hyde, sem significativas diferenças nos traços físicos. Como Cristina Álvarez López e Adrian Martin referem no ensaio visual Phantasmagoria of the Interior, dedicado ao filme, “em Borowczyk, as mulheres são vítimas do mundo racional que as sepulta – ou libertadoras, que abrem espaços através da força da curiosidade e do desejo”. Neste aspecto, além da transformação de género, Madame Hyde está mais próximo de Docteur Jekyll et les femmes do que das outras adaptações. No primeiro plano de Madame Hyde, o director da escola fecha os estores de uma janela, fixando imediatamente uma fronteira que separa o interior do exterior. É um percurso interior que seguiremos, através de uma Isabelle Huppert electrocutada, em que mesmo a estrutura óssea se parece desintegrar provocando consecutivas quedas, simbolicamente transformada em figura flamejante, até à sua combustão integral no split screen em que rolam os créditos finais.
A intromissão do fantástico no real, num jogo de contrastes que lembra o recentemente estreado e igualmente premiado no mesmo ano em Locarno, As Boas Maneiras (2017) da dupla brasileira Marco Dutra e Juliana Rojas, é a evocação da possibilidade de diálogo entre a cidade e a periferia, uma outra forma de imaginar o jogo social em que as diferentes realidades se intersectam produtiva e continuamente. Ainda assim, sem pôr de lado a comédia – e Madame Hyde é capaz de suscitar pontuais gargalhadas – não deixa de ser um retrato da sociedade francesa bem mais abstracto e amargo que os seus anteriores títulos. A questão da diversidade cultural, que é uma das forças de Tip Top, na sua transversalidade aos diferentes estratos da sociedade e motor para divertidíssimos gags, aqui é segregada para uma turma de ensino profissional, a quem é vedada a participação em determinados projectos. Nesta ordem social, um dispositivo de planos e contraplanos separam Madame Géquil de uma turma de alunos suburbanos descendentes de emigrantes. Paradoxalmente, à falta dos habituais apontamentos musicais, é nas rimas das trocas de palavras, por vezes azedas, entre a professora e os alunos que a musicalidade, aqui entendida como a busca de uma certa harmonia, melhor parece viver.