De dia 31 de Maio a 11 de Julho, em Lisboa (Espaço Nimas) e no Porto (Teatro Campo Alegre), decorrerá um colossal ciclo dedicado ao cinema produzido nas últimas oito décadas em território japonês. São mais de 40 filmes de 11 cineastas, autêntico tsunami inesperado que compreende estreias passadas e novidades – como Hikari (Esplendor, 2017) de Naomi Kawase ou os restauros recentes de filmes de Yasujiro Ozu e Nagisa Ôshima. Para a nossa distribuição nacional (e para angústia deste escriba mentalmente de olhos em bico), o arquipélago nipónico andava sonolento, imóvel, sem grandes pruridos, lá perdido em glórias passadas no meio das flores de cerejeira e outros símbolos vários de domesticação. E, todavia, existe sempre qualquer coisa que faz empurrar um pedaço de terra adormecido até ao nosso cantinho, mui nobre, europeu. Seja graças à Palma de Ouro atribuída a Hirokazu Koreeda com Manbiki kazoku (Shoplifters, 2018) ou ao muito aguardado lançamento (previsto para dia 9 de Junho), de uma caixa de bombons, perdão, DVDs mizoguchianos (vale a pena: comprem e ofereçam-nos a quem amam), a verdade é que os pretextos políticos e as circunstâncias mais pragmáticas empalidecem face à oportunidade de (re)descobrir tamanha e tão ampla selecção em sala. Poderá dizer-se que Junho será o mês do Japão e, seguramente, tal não se deverá à “Festa Mansa” (por oposição à Festa Brava) celebratória do mesmo país e que tem lugar no Parque das Nações em igual mês.
Tanta diversidade requer alguma filtragem, não vá o espectador enrolar-se na onda sem chegar às bóias de salvamento. É necessário um manual de sobrevivência (no bom sentido da palavra, pois se é para se estar em perigo que seja por excesso de filmes!), algo que possa nortear, pelos vasos da História e da crítica, os nossos queridos náufragos lisboetas no Oceano Pacífico da Avenida 5 de Outubro (ou da Rua das Estrelas, caso sejam portuenses). Para isso, avançamos uma brevíssima lista, ao modo de entrada de enciclopédia, dos cineastas que terão os seus filmes projectados e, para cada um, escolheremos uma ou duas recomendações, relembrando aos mais distraídos que se pode e deve desenrolar uma grande História das pequenas estórias. Portanto, quem navegue de uma ponta à outra do ciclo ficará com algumas luzes do que se foi passando no cinema do fascinante arquipélago, quem foram e são os seus principais intervenientes, quais são algumas das suas obras-primas de cabeceira.
Banshun (Primavera Tardia, 1949) de Yasujiro Ozu
O “classicismo” inultrapassável
Akira Kurosawa meteu o Japão na boca do mundo cinéfilo ao trazer para casa o Leão de Ouro do Festival de Veneza em 1951 com Rashômon (1950). Muitos outros prémios internacionais se seguiriam em catadupa. Também em Veneza, Kenji Mizoguchi seria galardoado não só com o Prémio Internacional com Saikaku ichidai onna (A Vida de Oharu, 1952), mas também com dois Leões de Prata, com Ugetsu monogatari (Os Contos da Lua Vaga, 1953) e Sansho dayû (O Intendente Sansho, 1954); o último será projectado no ciclo. Em 1954 e 1955 respectivamente, Teinosuke Kinugasa arrecadava uma Palma de Ouro e um Óscar para melhor filme estrangeiro com Jigokumon (The Gate of Hell, 1953). Hiroshi Inagaki e, ainda, Kurosawa continuavam a receber honrarias: o primeiro, conquistava um Óscar para melhor filme estrangeiro com Miyamoto Musashi (Samurai, 1954) e outro Leão de Ouro com Muhomatsu no isshô (The Rickshaw Man, 1958); o segundo era premiado com um Leão de Prata com Shichinin no samurai (Os Sete Samurais, 1954) e um Urso de Prata no Festival de Berlim com Kakushi-toride no san-akunin (A Fortaleza Escondida, 1958). Essa década ficou conhecida como “A Era Dourada” do cinema japonês e não apenas pela crescente acumulação de galardões todos os anos. Um sistema de estúdios robusto mantinha a indústria bem oleada dentro do país, sendo que cerca de 70% de todos os lucros de bilheteira pertenciam a produções domésticas (como nos diz Jasper Sharp no seu Historical Dictionary of Japanese Cinema). Todavia, o conceito adoptado (e bastante questionável) de “clássico” servirá apenas de tocha no meio da escuridão. Mesmo assim, será difícil contrariar a afirmação segundo a qual os quatro cineastas abaixo produziram as suas melhores obras, justamente, nesse período áureo.
Kenji Mizoguchi (1898-1956) João Bénard da Costa dixit: “John Ford, Fritz Lang, Carl Th. Dreyer, Jean Renoir, entre os cineastas que, como Mizoguchi, começaram no cinema mudo e continuaram, sem solução de continuidade no sonoro, são os únicos que vejo de quem se pode dizer que foram tão grandes como. De maiores, não sei de nenhum.” Não é chamariz suficiente para, mais uma vez (as vezes que forem precisas), irmos meter uma velinha no santuário do imenso encenador dos sacrifícios femininos num mundo de fatalidade ora ruinosa, ora salvífica? Mais uma velinha nesse arauto da vitória da mise-en-scène sobre a montagem, crismada pelos jovens turcos dos Cahiers du Cinéma que encontraram em Mizoguchi um santo-padroeiro? Para quem quiser guardar os seus filmes indispensáveis (aqueles que aparecem em qualquer lista dos melhores filmes de sempre) para visionamentos caseiros, aproveitando os DVDs restaurados que sairão no princípio de Junho, recomendo aqui o filme do ciclo mais prematuro (mas muitíssimo maduro e coreografado), Zangiku monogatari (O Conto dos Crisântemos Tardios, 1939) e a derradeira obra, Akasen chitai (Rua da Vergonha, 1956). No primeiro, tenham especial atenção para a sagração do método mizoguchiano, aquilo que Tadao Sato apelidou de one scene, one shot: uma câmara extremamente fluída e móvel que isola elementos, iluminando-os através dos movimentos e não de cortes. No segundo, deixem-se contagiar por um punhado de mulheres resilientes, tão características do seu cinema, e não se esqueçam que o mais tradicionalista dos cineastas também era amigo da experimentação (por exemplo, a banda-sonora electrónica de Akasen chitai continua a surpreender pela sua modernidade).
Yasujiro Ozu (1903-1963) Adapto, sem hesitações, uma conhecida frase de Henri Bergson sobre Espinoza. Todo o cineasta que se preze tem dois cinemas: o de Ozu e o seu. Com efeito, a estética ozuniana, tremendamente difícil de replicar (devido à sua linguagem formal, tão própria que resvala sempre para travestismo ou paródia inadvertida se a intenção for imitá-la), é, porém, fácil de inspirar, colocando a criatividade alheia em marcha. É um tipo de cinema alternativo que se casa muito bem com o que não é dele, capaz de ensinar preciosas coisas sem nunca montar escolas nem formatar discípulos. Por outro lado, vêem-se filmes de Ozu para lavar os olhos de todos os outros filmes. Da mesma forma, o mundo que nos é subsidiário é também lavado (levado) por um outro, um mundo de humanos enquadrados na perspectiva de objectos, um em constante cerimónia para consigo mesmo. E não é todos os dias que podemos ver os dois melhores exemplares dessa lixívia perceptiva e transcendental: Banshun (Primavera Tardia, 1949) numa nova cópia restaurada e Tôkyô monogatari (Viagem a Tóquio, 1953).
Mikio Naruse (1905-1969) O mais soturno dos realizadores. Na Toho, baptizaram-no de Yaruse Nakio que quererá dizer alguma coisa como “Sr. Desconsolado”. Mas, o cinema de Naruse só é pessimista na medida em que faz questão de ter uma exigência aguda de lucidez para consigo próprio. Tão lúcido, de facto, que ninguém está a salvo do alastramento dos seus ângulos de miséria, melodramáticos só em forma e aparência. Nenhum personagem, homem ou mulher, mãe ou mama-san, marido ou adúltero pode ser mais do que um pateta perseverante, cuidando da sua vida na imensidão do espaço e do tempo (a paráfrase vem do próprio Naruse). O único filme que passará no ciclo é, porventura, um dos mais ilustrativos do que acabámos de descrever, Onna ga kaidan wo agaru toki (Quando Uma Mulher Sobe as Escadas, 1960), exemplar máximo da heroína narusiana sem final feliz mas incrivelmente esclarecida na derrota, como escrevia Audie Bock. Neste cinema, o ganho pequeno decorrente de uma perda gigante é a única coisa que podemos esperar dos outros e do mundo.
Akira Kurosawa (1910-1998) Pedimos desculpa, desde já, pela imprecisão que nos levou a colocar Akira Kurosawa no mesmo grupo dos mestres “clássicos”. Na verdade, o realizador pertence a uma outra geração (a de Keisuke Kinoshita ou Kon Ichikawa) que começou a filmar nos anos 40, já com o som instituído. Devido ao seu estatuto de primeiro representante do cinema japonês além fronteiras e por, ainda assim, produzir obras contemporâneas aos realizadores estreados nos anos 20, frequentemente o cineasta foi associado a eles como se partilhasse o mesmo berço. Durante o ciclo só estarão disponíveis duas obras tardias, longe da sede e da energia infectante do seu cinema dos anos 50 e 60. Madadayô (Ainda Não!, 1993) é, portanto, um filme episódico, montado numa horizontalidade narrativa, repetível, estranha a quem se habituou ao dinamismo épico e ao vital questionamento moral de películas passadas e bastante mais robustas. É uma última despedida gravada em película, o capítulo derradeiro de uma trilogia testamentária, frágil, iniciada com Yume (Sonhos, 1990) e Hachi-gatsu no rapusodî (Rapsódia em Agosto, 1991), que partilha, entre outras coisas (por exemplo, a vontade de presentificar, lateralizando o passado histórico) a mesma visão da velhice como estado mais perto do fim e, paradoxalmente, da origem da vida (a equivalência entre idoso e criança será, aqui, uma constante).
Seishun zankoku monogatari (Contos Cruéis da Juventude, 1960) de Nagisa Ôshima
As “Novas Vagas”
Costuma haver um terrível mal-entendido acerca da Nova Vaga Japonesa (ou Nûberu bâgu) que consiste em rotulá-la como um projecto geracional, declarada e colectivamente consciente, com intenções e ideias de cinema partilhadas. A História complica um bocado as coisas. Em primeiro lugar, foi por jogada publicitária da Shochiku que o termo, decalcado do francês, se aplicou a quatro jovens realizadores estreados pela companhia em 1960 (Nagisa Ôshima era um deles), data, aliás, especial porque marcou o ano mais profícuo de sempre do cinema japonês com 547 longas-metragens produzidas. Em segundo, porque nenhum desses novos cineastas (e outros mais tarde incluídos) alguma vez achou pertinente o emprego de tal chapéu conceptual para definir as suas filmografias específicas. Em terceiro (e poderíamos continuar ad nauseam) – e como resultado – criou-se uma espécie de arbitrariedade no que diz respeito à pertença ao dito movimento de uns cineastas em detrimento de outros. Será Kaneto Shindo um realizador da Nova Vaga, ele que já rodava desde o início dos anos 50? É a Nûberu bâgu uma maneira de estar e fazer cinema, colidindo com as ordens vigentes de então? E os realizadores sumptuosos de estúdio como Yasuzô Masumura ou Tai Katô? E Seijun Suzuki, que apenas queria entreter? Correspondeu a Nova Vaga a um período histórico (se sim, quando começou e acabou?) ou a uma colecção de carreiras, de tal modo que um filme feito nos anos 90, como por exemplo Gohatto (Tabu, 1999), por um cineasta do “movimento” pode ser ainda considerado um filme a ele relativo? Para não nos alongarmos na fragilidade do termo e não querendo aprofundar mais a polémica, falaremos, antes, de “Novas Vagas”, ondas plurais de um oceano criativo em tumulto constante. Os três cineastas abaixo são altamente recomendáveis para aqueles espectadores que gostam de sentir o wasabi a subir pelo nariz, roçando no lobo frontal do cérebro. Para aqueles que sabem ou foram avisados que não há extremismo como o japonês.
Shôhei Imamura (1926-2006) O primitivo, par excellence. Para ele, as “partes baixas” (da sociedade, da cultura, da própria fisionomia humana) suscitam um fascínio ilimitado, antropologicamente fetichista. “Os seus trabalhos”, escreveu Audie Bock, “são povoados por personagens gananciosas, lascivas, enganadoras, viciosas, vulgares, cómicas e frequentemente muito tocantes. O seu humor negro grosseiro e as suas heroínas indomáveis e bovinas [há que amar este adjectivo!] repeliram muitos espectadores europeus que parecem prezar o teatro Noh, a cerimónia do chá e a imagem do Japão de Kenji Mizoguchi.” De facto, o cinema de Shôhei Imamura vive siderado com os estados selvagens, pré-conscientes – ele mesmo afirmou que quando a Nikkatsu lhe pediu para filmar algo sobre a vida nocturna de Tóquio, acabou por ir parar, sem perceber porquê, a uma ilha exótica. A sua assinatura consiste em inspeccionar a genealogia de uma cultura escondida, mística e fortemente sexual (inclusive incestuosa) que subjaz à da abnegação do indivíduo, do aprumo e da higienização excessiva presente nos gestos e na conduta do povo japonês. Portanto, Imamura é o realizador do suor lacrimejante, da areia presa à carne, dos corpos desarrumados no meio da sede de um desejo que os puxa para as bases do ser. Durante o ciclo, serão mostrados apenas dois filmes da velhice, altura em que o primitivismo do seu cinema perdeu algum do seu foco antropológico e se entregou a uma irracionalidade solta e caótica, até na maneira de estruturar as narrativas. Kanzô sensei (Dr. Fígado, 1998) será uma boa oportunidade para assistir a algo verdadeiramente tresloucado, que de histórico apenas tem o contexto.
Nagisa Ôshima (1932-2013) Não existe nenhuma particularidade formal, nenhuma mania de autor organizadinho que ate os atacadores soltos do cinema heteróclito de Nagisa Ôshima. Afinal de contas, este é o obreiro responsável pelos 43 planos-sequência de Nihon no yoru to kiri (Noite e Nevoeiro no Japão, 1960) mas também dos incontáveis e fugazes planos de Hakuchû no tôrima (Violence at High Noon, 1966) que duram, cada um, 2.8 segundos em média. Como entender alguém capaz de experimentar o tempo e o espaço de maneira tão diametralmente oposta a cada nova película? Através de um ethos comum, que no caso corresponde a um chamamento anti-social para a revolta dos instintos, a sua exteriorização custe o que custar, símbolo da subversão de um país preso ao conformismo dormente do espírito colectivo. Quem meter os pés na sessão de Seishun zankoku monogatari (Contos Cruéis da Juventude, 1960) será apresentado a um cinema enervado e irrequieto, de anti-heróis atraídos pelo abismo da destruição que arrastam mulheres para a vertigem da liberdade, da transgressão e de uma soberana ruína. Para Ôshima, a modernidade implica sempre um corte radical com a tradição, se quisermos, um sacrifício ao Deus desviante do Eros. É aí que ele também descobre a subjectividade selvagem dos seus protagonistas, quase sempre criminosos ou situados nas margens da sociedade, quase sempre mártires das suas pulsões libidinosas, quase sempre figuras no limiar da sanidade. Um pénis cortado como prova culminante da paixão? Sim, claro que pensamos em Ai no korîda (O Império dos Sentidos, 1976), ainda um dos filmes mais inquietantes sobre obsessão alguma vez feitos.
Kôji Wakamatsu (1936-2012) Quando questionado pela razão de fazer filmes, este realizador de películas eróticas (pink ou pinku, como se diz no Japão) respondeu, certa vez, que sempre desejou matar polícias e que a única maneira de o fazer sem ser preso seria executá-los sumariamente no ecrã, nas sombras da ficção. Durante os anos 60 da contra-cultura japonesa, Kôji Wakamatsu desenvolveu uma vastíssima obra (só em 1969 rodou 11 filmes!) composta por imagens fantasmagóricas de revolução política e sexual. A despeito da brutidão in your face e de um ódio visceral e violento por qualquer figura de autoridade, este cinema jamais resistiu auscultar os sonhos dos corpos oprimidos. Corpos usados e abusados, traumatizados, abertos e remexidos por um desejo sujo, nada erótico diga-se de passagem, mas que debalde sonham. É essa conflituosidade anti-concupiscente num filme feito segundo as regras do pink que surpreenderá em Yuke yuke nidome no shôjo (Vai, Vai, Virgem Pela Segunda Vez, 1969), exercício perverso e pudico na mesma medida, onirismo frustrado de corpos que se querem libertar da extensão através da morte. A espiritualidade aqui só existe se for psicadélica, isto é, se for revelada pela intensificação dos sentidos e pela dissolução da mente em êxtases místicos. São esses os momentos mais inacreditáveis em Wakamatsu, quando a câmara palpita com a febre de uma alucinação, quando os apartamentos claustrofóbicos se transmutam em praias azuis desertas ou se reduzem a uma ofuscante brancura, como acontece no final dessa descida aos infernos aterrorizadora e freudiana chamada Taiji ga mitsuryô suru toki (O Embrião Caça Em Segredo, 1966).
Hana-bi (Fogo de Artifício, 1997) de Takeshi Kitano
O contemporâneo e (não) mais além
Os quatro nomes abaixo são aqueles que mais continuadamente foram exibidos no nosso circuito comercial. Para muitos, serão, ainda hoje, os maiores vultos do cinema japonês contemporâneo, a despeito de todos terem já uma longa carreira cujos inícios remontam aos anos 80 (Kurosawa e Kitano) e 90 (Koreeda e Kawase). Podemos questionar a razão de nenhum cineasta dos anos 2000 ou 2010 ter sido mostrado, muito menos conhecido, junto do nosso público. Será por falta de oferta ou devido a deficiências de exposição? No ano de 2008, por exemplo, o Japão produziu 418 longas-metragens e custa a acreditar que, num mercado cada vez mais global, a Europa tenha estreado apenas quatro ou cinco em todas as suas salas. O desinteresse pelas novas gerações (as de 70 e 80, correspondentes ao pós “Novas Vagas”) tinha já acontecido até Takeshi Kitano ter vencido o Leão de Ouro em Veneza. O reconhecimento internacional parecia desbloquear a cinematografia de um país inteiro. Portanto, todos os cineastas subsequentemente “descobertos” são filhos da glória de um prémio. E, mesmo assim, nem sempre foram sido recordados como deviam. Aproveitemos esta ocasião para fazer, frente à tela, a reavaliação que merecem.
Takeshi Kitano (1947-) Primeiro venerado, depois odiado e, finalmente, esquecido, Takeshi Kitano foi para uma geração de espectadores (nos quais certamente me incluo) o grande cineasta japonês do seu tempo. Os seus filmes de olhares petrificados, elipticamente inquietantes, capazes da maior subtileza e da maior frontalidade (no sentido metafórico e visual do termo) ensinaram-nos a ver e venerar essa cultura, distante e paradoxal, do silêncio e da violência, da flor e do fogo. Protagonista na maior parte dos casos, a presença robótica, quase deslocada, fechada em copas de Beat Takeshi (a faceta actor/comediante de Kitano) tornava o pacote todo ainda mais sui generis. Um certo estoicismo, uma certa rudeza e crueza na mise en scène catapultava tudo para uma espécie de cinema primordial, a meio caminho entre a pantomima e a imobilidade austera num mundo onde as palavras são pesos mortos. Hana-bi (Fogo de Artifício, 1997) precisa de ser revisto o mais depressa possível. Nele, está desenhado tudo o que torna o cinema de Kitano único. E para quem, porventura, quiser aventurar-se noutras áreas do kitanesco, pode sempre dar um salto às sessões de Kizzu ritân (Os Rapazes Regressam, 1996) e Kikujirô no natsu (O Verão de Kikujiro, 1999) e não sairá desapontado.
Kiyoshi Kurosawa (1955-) Conotado com um cinema de terror atmosférico montado na recusa, quer do grande plano, quer do uso de cortes para acelerar e facilitar os sustos, é na exploração e na amalgamação dessíncrona de diferentes géneros (e são vários: dos primeiros filmes pink ao cinema de yakuza, passando pelo thriller com ou sem fantasmas, mas sempre assombrado) que o universo de Kiyoshi Kurosawa pode mais bem ser descrito. Veja-se o único exemplar que passará ao longo da retrospectiva, Kishibe no tabi (Rumo à Outra Margem, 2015), autêntico questionamento ontológico acerca da figura do fantasma. Aqui, a visita do morto pouco difere da de um marido escapulido que regressa a casa após meses de fuga, para pouco espanto da esposa que lida com tal aparição de forma tremendamente quotidiana, como se já o esperasse. Não há na morte qualquer corrupção, qualquer entrega a uma maldição sobrenatural nem tão pouco a aquisição de uma sabedoria ou poder celeste. Se ela (a morte) é subtil e indiscernível passagem, então fantasma e esposa podem participar numa viagem rumo ao último romance, até ao apagamento da primeira desaparição. A morte da morte. O morto é vivo e os vivos andam mortificados? Frequentemente, em Kurosawa somos acompanhados por uma estranheza deste calibre e por uma incapacidade em responder a todas as perguntas suscitadas pela construção de universos singulares.
Hirokazu Koreeda (1962-) A sensibilidade de documentarista nunca abandonou Hirokazu Koreeda. Os personagens mais bem conseguidos das suas películas parecem ter estagiado de tal maneira na realidade que adquirem uma existência independente fora das câmaras e das tramas, na maior parte das vezes, pouco mais do que banais. No imperdível Aruitemo aruitemo (Andando, 2008), a discreta tensão familiar de uma visita aos pais casa-se com um ritmo acolhedor, entre o tique cerimonioso e a mais fina afectividade. A objectiva senta-se à mesa, connosco, como se fosse parte integrante do espaço detalhado da casa; de seguida põe-se a escutar conversas, ouve episódios anedóticos com a sonolência caprichosa e confortável de uma sesta de domingo. É um cinema de gerúndios (como a nossa excelente tradução portuguesa deixa antever), muito mais interessado no processo do que no resultado, preferindo as causas eficientes às finais (para adoptar a linguagem do nosso querido Aristóteles). No entanto, é precisamente nessa eficiência detalhada dos processos de sobrevivência que encontramos o discreto horror no relato de quatro crianças abandonadas pela mãe em Dare mo shiranai (Ninguém Sabe, 2004). Obra-prima implacável que jamais cai num sensacionalismo barato, apesar da temática e da violência aplicada à inocência de seres que, lentamente, vão descobrindo o triste destino deixado por uma progenitora negligente.
Naomi Kawase (1969-) A sua primeira longa de ficção, Moe no suzaku (Suzaku, 1997) continua sendo a sua melhor, ela, que como Koreeda, começou a fazer documentários, mas, contrariamente a ele, produziu-os no limiar do exercício intimista, a resvalar para o exibicionismo. Desde então, Naomi Kawase tem sido uma presença constante no circuito dos festivais. Uma recepção crítica que começou com a adoração merecida por uma estética contemplativa e pausada, desembocou mais recentemente na suspeita de um gosto questionável por dramas mais óbvios e sentimentais. De todas as longas presentes – inclusive a que estreará dia 11 de Junho – Futatsume no mado (A Quietude da Água, 2014), filme que, sendo sobre ritos de passagem não esconde um mundo duro de cortes e sacrifícios, será o mais recomendável, talvez por ainda conservar certos silêncios (aqui mais insulares do que rurais) do seu primeiro cinema, paradoxalmente mais maduro do que o segundo.