1.
É tanto uma maldição como uma bênção para Mitchell Leisen, um bem sucedido e prolífico cineasta que trabalhou para a Paramount nos anos 30 e 40, ter colaborado com argumentistas tão marcantes como Preston Sturges, Billy Wilder e Charles Bracket. A série de obras-primas por ele realizada a partir dos seus argumentos, de Bracket e Wilder, Midnight (Meia-Noite, 1939), Arise, My Love (1940) e Hold Back the Dawn (A Minha História, 1941), de Sturges, Easy Living (Uma Pequena Feliz, 1937), Remember the Night (Lembra-te Daquela Noite, 1939) e No Time For Love (Não Me Fales de Amor, 1943), contribuiu significativamente para uma carreira que durou mais de trinta anos. Essa carreira, tão versátil quanto bem-sucedida, incluiu muitas outras grandes obras, como Death Takes a Holiday (1934), Hands Across the Table (Candidata a Milionária, 1935), Lady in the Dark (A Mulher que não Sabia Amar, 1944) e No Man of Her Own (Nenhum Homem Era Dela, 1950). Independentemente desses filmes e do seu sucesso, a obra de Leisen raramente é discutida ou explorada em estudos de cinema, especialmente quando comparada com os seus contemporâneos. A sua carreira, marcada por aquele longo e estável relacionamento com a Paramount, foi rotulada pelos autoristas como inconsequente, passando a imagem de um dos “yes-men” favoritos do estúdio, a trabalhar em automatismo. As origens de Leisen no trabalho de decorador e figurinista para Cecil B. DeMille na era do cinema mudo fizeram com que certos críticos também duvidassem das suas habilidades para a realização, ecoando os sentimentos expressos por Sturges e Wilder em mais do que uma ocasião. Sturges, numa de suas referências públicas a Leisen mais conhecidas, comparou-o a “um vitrinista”, um cineasta “mais interessado na cenografia do que na história (que estava a contar)”.
A vingança que Sturges e Wilder orquestraram contra Leisen tinha origem naquilo que eles consideravam serem os maus tratos aos seu argumentos. Pode-se especular que os dois escritores tinham para com Leisen um ressentimento natural, já que ele adaptara alguns dos seus primeiros trabalhos como argumentistas para a Paramount, e que o choque de personalidades causou provavelmente muita tensão. No entanto, Wilder e Sturges referem-se também à experiência de trabalhar com Leisen como o principal motivo que os levou a mudarem-se para a cadeira de realizador e assim poderem controlar a adaptação dos seus próprios textos. No final, todos venceram. Todos menos a reputação crítica de Leisen.
Fofocas à parte (e é isso que isto praticamente é), a série de filmes de Leisen com Sturges e Wilder é amplamente considerada como brilhante. Obras memoráveis, cujas qualidades vão além de sua associação com os dois notórios escritores. Os ágeis filmes que Leisen realizou ao longo de toda a sua carreira podem ser caracterizados pela elegância visual e uma dedicação romântica que normalmente falta nas criações mais cínicas de Wilder ou nas incursões pelo slapstick dos filmes de Sturges, sempre pesados em diálogos. Há uma sensibilidade distinta nos filmes de Mitchell Leisen que é firme e consistente, indo muito além da “respeitabilidade” (uma palavra que Wilder usou para as intenções artísticas de Leisen) e do virtuosismo técnico. O seu cinema é rico em alusões sexuais ousadas e provocadoras, abstracções surreais, astúcia política e um trabalho de composição engenhosamente forte. Algum tipo de “Leisen Touch” está obviamente presente.
2.
Para muitas das personagens que povoam os filmes de Mitchell Leisen, a busca pelo amor está ligada à busca pela estabilidade financeira ou social. Apaixonar-se por uma pessoa (que, como em muitas comédias românticas, é aquela pela qual menos se espera) fará com que o novo casal se aposente dos dois principais “mercados” que a vida tem para lhes oferecer – o mercado do namoro e o mercado das acções. Através de uma visão de “paridade” total, ou de um relacionamento que evolui lentamente de uma atracção indevida para uma completa sincronização dos seres, a lacuna original entre os amantes (principalmente relacionada com as diferentes classes sociais que eles representam) perde a sua relevância. Os dois solteiros formam uma unidade, uma força que a sociedade, diz Leisen, não consegue considerar.
É o que acontece com Charles Boyer e Olivia de Havilland em Hold Back the Dawn. Boyer interpreta Georges Iscovescu, um imigrante de ascendência romena, que vive temporariamente numa cidade mexicana na fronteira com os EUA até que consiga, de alguma forma, obter o seu visto de residência americano. Para atingir esse objectivo, decide seguir um atalho e casar-se com uma americana. Planeia seduzir Emmy (De Havilland), uma professora que visita o México com a sua turma de alunos, e casar-se com ela o mais rapidamente possível, apenas para a abandonar logo a seguir a entrarem nos EUA. Na bela cena de sedução que acontece no saguão de um hotel, em frente às crianças adormecidas no chão, é-nos apresentada uma imagem espelhada no reflexo do vidro de uma janela, criando uma imagem que exige uma interpretação dupla de um mesmo evento. Uma série de planos brilhantemente encenados mostra Emmy, de vestido branco caminhando de costas para a câmara, distanciando-se de Georges, apenas para observar o seu reflexo na janela. Georges segue-a, o seu reflexo é menos visível por a cor escura do seu fato ser “engolida” pelo breu da noite. Então ela vira-se e enfrenta a câmara. A janela e a noite reflectida não estão mais em campo. Ele abraça-a e beija-a.
Este momento chave começa com uma visualização da habilidade do engate de Georges, e depois corta para uma cena que apresenta uma mudança que surge nos modos das suas acções. A cena referida é a continuação imediata dessa sedução – Georges é-nos apresentado andando fora do hotel, antecipando os passos de Emmy, correndo atrás dele. Há uma mudança de luz inexplicavelmente rápida entre a fase crepuscular da cena anterior e a luz diurna da seguinte. Parece que a dúvida quanto ao seu esquema cínico começa a instalar-se no inconsciente de Georges – tanto pelo sentimento de culpa quanto pela compreensão da atracção mútua que entre eles se estabelece, e na qual se começa a afundar, fazendo-o, literalmente, mover-se para fora da escuridão e para dentro da luz.
O desaparecimento do reflexo na cena anterior em consequência do encontro dos dois corpos é muito coerente com a visão de Leisen sobre a força extrema da dimensão física e como ela pode transcender a rigidez da mente (uma ideia que ele parece compartilhar com um romântico como Frank Borzage). O seu recurso a reflexos e imagens sobreenquadradas (frame-inside-a-frame) é contínuo ao longo do filme e adequa-se de forma eficaz a uma cena posterior de semelhante potência atmosférica. A cena, baseada numa imagem espelhada que nos leva de volta à cena da sedução e depois a re-escreve, mostra-nos Georges observando Emmy através do espelho retrovisor, deitada na parte de trás de sua carrinha. Ela está pronta para fazer amor, e Georges, cheio de remorsos, finge uma ferida na mão como desculpa para não cumprir seu desejo e sucumbir ao prazer. Sentado ali, a olhar para Emmy, perto mas também fora de alcance, fica claro para George que o seu esquema fracassou. O enquadramento de Leisen no espelho representa o olhar de Georges, ao concentrar-se apenas em Liza, deixando as dúvidas e a culpa fora de campo. Este momento crítico muda a dinâmica de poder do casal – agora ele é a “vítima” e ela é a “vitimizadora”, ele é o único que corre o risco de cair numa “armadilha”. Os cálculos morais (e imorais) da cena de sedução desapareceram do enquadramento. A luxúria tomou conta dele.
Em Hands Across the Table, Carole Lombard interpreta Regi, uma manicure que sonha encontrar um homem rico que finalmente a liberte de uma vida a limpar unhas sujas. Quando ela descobre que o homem tonto que acabou de insultar no caminho para o seu local de trabalho é na verdade o filho de uma família rica, ela fica extremamente nervosa e excitada; dá-lhe uma manicura do inferno e massacra cada um dos seus dedos ensanguentados. O interessante desta história, obviamente construída para o riso, é que Theodore, o ricaço interesse amoroso, interpretado por Fred McMurray, o favorito de Leisen, aguenta as dores, mesmo sabendo que Regi vai continuar a fazer-lhe mal. Um reconhecimento do masoquismo puro, Theodore sacrifica os dedos com o único objectivo de conseguir um encontro com Regi. Ela descobre rapidamente que ambos são muito parecidos, que ele também trata o amor de um ponto de vista cínico [este confessa-lhe que a sua família perdeu toda a fortuna nos anos da depressão levando-o a tornar-se num garimpeiro (gold digger), assim como ela – “Você lembra-se daquela coisa chamada ‘a grande paixão’?”, pergunta-lhe ele, “Esses éramos nós”]. A química mágica e a atracção que os amantes compartilham força-os a agir de formas não tradicionais um para com o outro e para com o que os rodeia, mesmo que sem conhecimento consciente.
3.
Outra das infames citações de Wilder sobre Leisen aparece numa entrevista conduzida por Andrew Sarris. “Ele era apenas um decorador”, diz Wilder sobre Leisen “como Vincente Minnelli” (um sentimento que ecoa a própria descrição de Sturges sobre Leisen citada aqui no primeiro parágrafo). Wilder estava obviamente a referir-se aos inícios de carreira partilhados entre Leisen e Minnelli como decoradores e figurinistas antes de se tornarem realizadores. Enquanto Wilder provavelmente pretendia menosprezar Leisen ao fazer essa comparação (ele nunca se importou com Minnelli), ele acabou realmente por fazer um comentário sólido sobre dois cineastas que compartilham um mesmo sentido estético. Leisen, como Minnelli, explorou nos seus filmes as texturas de tecidos e o seu efeito na flexibilidade das suas composições.
Em Easy Living, Leisen usa o tecido como matéria-prima para projectar símbolos de luxúria e erotismo. Leisen apresenta Jean Arthur e o seu interesse amoroso, Ray Milland, deitados num luxuoso quarto de hotel, frente a frente, permitindo apenas o encontro dos rostos. A face de Arthur está coberta por um véu e quando exala ar da boca o véu sobe e volta a poisar-se sobre o seu rosto. As características delicadas deste aparecem através da textura do véu, com os lábios apreciando a carícia do tecido. Depois do inevitável beijo, Arthur senta-se olhando de lado para a câmara, sorrindo para um ecrã negro desbotado.
Em Hold Back the Dawn, o lenço de Emmy tem um papel fundamental no drama. Vêmo-lo ser retirado por Georges, enquanto se beijam à frente do carro dela. Depois de deixar Georges, descobrindo a verdade por trás dos seus motivos para o casamento, Emmy entra no carro e abandona a fronteira mexicana. Obviamente angustiada e chocada, ela começa a chorar. O vento que sopra pela janela aberta do carro levanta o lenço em voo e joga-o no rosto de Emmy. Ela perde o controlo do carro e nós vemos um plano em POV [Point of View] – o despiste do carro é-nos mostrado através do tecido que lhe cobre os olhos. O lenço, funcionando como a mão longa da fé, projecta a mudança pela qual passou Emmy depois de se apaixonar por Georges. Ela compreende que a revelação da traição não a impede de continuar a amá-lo. Essa compreensão permitiu a Leisen outra oportunidade de examinar o rosto da sua personagem feminina através do tecido, ou mais precisamente, o seu ponto de vista deteriorado através da textura, como se o lenço, com toda a carga romântica que o filme lhe injecta, se tivesse transformado parcialmente nela.
4.
I’m sorry, I can’t help it. But you’ve always had to be the boss and something inside me deeply resents it. I know I’ve been pretty rotten to you and I picked myself afterwards. But there´s always been that secret battle between us, from the very beginning, and I’ve always wanted to win because… well, because I’m me, I guess!… Anyway, I want you to know, now that I’m leaving, that with all my shenanigans… I think you’re fine.
Diz Johnson (Ray Milland) a Liza (Ginger Rogers) in Lady in the Dark (1944).
Um dos melhores filmes a cores de Leisen, Lady in the Dark, intencionalmente desafia muitas coisas que foram estabelecidas como as características das comédias românticas ou melodramas de Leisen dessa época. É um surreal, às vezes profundamente estranho, “musical” (embora com apenas dois números principais de música e dança), baseado numa peça de sucesso da Broadway. O filme não conta exactamente uma história, já que habita a psique de Liza, interpretada por Ginger Rogers, editora de uma revista de moda, gerindo escritores e designers com o apoio de um velho e rico mecenas que planeia casar-se com ela. Encontramo-la primeiro a meio de um ataque de ansiedade – uma possível reacção mental ao stress, fadiga ou trauma. Embora ela tente ignorá-lo como algo sem importância, ele continua a regressar e há o risco de a ansiedade a deixar desequilibrada no trabalho, em casa ou mesmo durante o sono. Também é evidente, pela primeira vez, que ela é uma mulher de carreira, colocando o seu emprego no centro da vida pessoal, inexistente fora do escritório. Esta caracterização é conseguida visualmente graças à sua roupa, já que está vestida ao longo do filme com fatos de negócio clássicos, mas coloridos – apesar de serem para mulher, têm o mesmo design dos cortes masculinos. O absurdo dos seus vestidos monótonos choca fortemente com os ousados cortes usados e discutidos na sede da revista. Graças ao mecenas, que financia a revista e actua como seu confidente, a vida agitada de Liza chega a um ponto de ebulição. Depois de anos de namoro, ele pede-a em casamento. Reconhecendo a grande dimensão deste homem na sua vida, Liza opta por não recusá-lo de imediato. Com este noivado em potência a pairar-lhe sobre a cabeça, Liza cede à ansiedade – como cuidar de algo que não seja o trabalho e como viver com alguém que ela não ama.
Essa crise leva-a a tentar algo em que nunca tivera grande confiança, a terapia freudiana (nem Leisen, a julgar pela conclusão do filme). E assim, com sessões diárias que mergulham cada vez mais fundo nas experiências da infância, a sua vida privada e profissional é mantida em conflito. Quando Liza conhece um novo pretendente, à imagem de uma bela e desejada estrela de Hollywood, a perspectiva de um caso de amor “extraconjugal” excita muito mais os seus colegas de escritório do que a excita a ela. Ainda assim, decide tirar proveito da sua corte e tratá-lo como uma rota de fuga à proposta de casamento sem amor, que ameaça o seu trabalho e o seu futuro.
Enquanto o conceito básico sobre o qual a trama de Lady in the Dark se baseou poderia ser interpretado como vergonhosamente conservador e misógino, é mérito do filme que ele permaneça firmemente consistente com o seu próprio descuido, nunca se restringindo a nenhuma agenda social ou floreados estilisticamente monótonos. (O impressionante plano de abertura do olho de Liza a ser examinado por um médico, como se a magia do “mergulhar mais fundo” no inconsciente selvagem fosse aquilo com que estamos a lidar). A fotografia Technicolor do filme é fora do comum na sua escolha de cores complementares, as sequências de sonhos são simplesmente bizarras e o uso de estereótipos está na fronteira do ordinário (o amigo gay de Liza é mais caricatural do que um cartoon). No entanto, como noutros momentos da obra de Leisen, esta deveria ser tratada, e acredito que sempre pretendeu ser, principalmente em termos puramente surrealistas. Sondando o inconsciente de uma personagem, de um intérprete, de um realizador e da própria criatividade, o filme liberta-se dos grilhões do politicamente correcto e deixa de lado qualquer traço da amaldiçoada “respeitabilidade” que Billy Wilder atribuiu erroneamente a Leisen.
A cena final – o principal motivo das críticas que o filme recebe hoje em dia em relação à sua problemática política de género – é muito mais complexa e ambígua do que os críticos estavam dispostos a aceitar. Liza rejeita o jovem pretendente estrela de cinema, quando percebe que tudo o que ele quer é que ela seja a sua agente, agindo nos bastidores e controlando todas as suas escolhas de carreira (uma rejeição que é um acto feminista empoderado, se alguma vez houve um). Decide então renunciar imediatamente do seu cargo na administração da empresa, entregando-o ao mais talentoso dos trabalhadores masculinos. O que fica claro, embora não tão claramente quanto Leisen provavelmente pretendia, é que Liza se demite de seu trabalho como um acto de libertação da dominação masculina (a pressão do mecenas feita através do patrocínio da revista ou a pressão do analista freudiano que ridiculamente insiste que ela sofre de um complexo de Édipo, justificando assim a sua fuga à feminilidade).
O que acontece a seguir gira em torno do diálogo que surge como epígrafe deste ponto quarto, tirado da última cena do filme, que culmina com o irritante escritor Ray Milland e Liza a “fazerem as pazes”. Ele admite ter estado infantilmente protestando contra o facto de ela ser sua chefe todos aqueles anos, criticando-a por ser ela a dirigir a revista que ele sempre quis dirigir sozinho. A solução “louca” de Liza: vão dirigi-la juntos. Na veia de muitas outras obras de Leisen, o tom dessa confissão é mais uma vez o da união de forças entre dois interesses românticos em potência do que de uma mulher que desiste dos seus sonhos. Aqui está outro casal de Leisen que encontra a sincronia, ou harmonia, para se tornar uma força só.
5.
As tendências surreais de Leisen têm origens nos seus dias como decorador e figurinista, mas também nos seus fetiches por partes de corpos (principalmente mãos e pés), sequências de sonho, vestidos extravagantes e mais notavelmente Fred MacMurray sem camisa. Sendo um dos únicos realizadores abertamente gays daquela época, Leisen foi provavelmente por esse motivo vítima de desdém por parte de alguns dos seus pares,tal como por causa do seu posicionamento consistente no centro de suas produções. Ele gostava de assinar o nome nas sequências de créditos de abertura e às vezes até aparecia como personagem (como a engenhosa cena no centro de Hold Back the Dawn, uma cena supostamente inventada por si e não por Wilder ou Bracket).
Um opositor por natureza, os seus filmes exigem ser mais amplamente vistos e profundamente explorados, dado a sua circunstância fílmica ser tão escorredia quanto um pedaço de tecido que bloqueia a nossa visão, fazendo-nos colidir com o amor.
No Time For Love (1943) de Mitchell Leisen
Dan Shoval
Realizador, escritor e cinéfilo israelita
Tradução do inglês por Ricardo Vieira Lisboa