Avaient-ils jamais rencontré ce sourire?
Jamais.
Que feraient-ils s’ils le rencontraient un jour?
Ils le suivraient.
Henri-Pierre Roché, Jules et Jim
1.
Na sequência de Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958), de Alfred Hitchcock, em que Scottie vê Madeleine pela primeira vez, o filme assimila a percepção do protagonista masculino através de um plano subjectivo. Neste plano, vemos – ou seja, Scottie e o espectador vêem – Madeleine com o seu marido, Gavin Elster. Significativamente, vemo-la enquadrada em dois quadros dentro do quadro maior da imagem: num primeiro plano, uma espécie de porta divide duas áreas do grande salão, e, ao fundo, vê-se um espelho que, sem a reflectir, a contém no interior da sua área.
É habitual chamar-se a atenção para os “quadros dentro do quadro” de Vertigo, sublinhando-se, em particular, o facto de Madeleine ser a personagem que mais vezes se pode ver dentro deles. Poucos minutos depois da sequência na sala do restaurante, Scottie dá início à sua primeira perseguição, durante a qual este recurso visual marca repetidamente presença: o carro verde de Madeleine é enquadrado no vidro do carro de Scottie; Madeleine é enquadrada na porta da florista e, logo depois, no espelho de uma porta; Madeleine é novamente enquadrada no vidro do carro, antes de entrar num cemitério; Madeleine é vista entre duas colunas, no museu; Madeleine é enclausurada na janela de um hotel.
Mais tarde, ficamos a saber que a mulher perseguida é, na verdade, quem orquestra o jogo da perseguição. Sabendo estar a ser vista, ela age tendo em conta os efeitos que deseja provocar no homem que a persegue. Em suma, ela representa uma peça para um único espectador, que é também tornado, inadvertidamente, personagem dessa mesma peça. Ao mostrar esta personagem no interior de quadros, o filme sublinha a ideia de que ela pertence ao domínio da representação: Madeleine é, na verdade, Judy, uma mulher contratada por Gavin Elster para se fazer passar pela verdadeira Madeleine (esposa de Elster) aos olhos de Scottie. Assim se percebe a insistência do filme em enfatizar a qualidade representativa desta mulher. Ela é, na verdade, uma actriz numa peça (bem como, com efeito, outras fórmulas análogas: personagem num romance [gótico], figura num quadro [romântico], etc.). É, em suma, alguma coisa a que não é possível aceder directamente, mas, sim, apenas de forma mediada. Os quadros são figuras simbólicas desta mediação.
2.
O quadro paradigmático de Vertigo é, no entanto, Portrait of Carlotta, de autor desconhecido e doador anónimo, que pode ser visto num museu de São Francisco. O retrato surge pela primeira vez na referida sequência da perseguição de Scottie a Madeleine, a qual se estrutura, toda ela, em torno da pintura (e convém lembrar, neste ponto, que o desenvolvimento da sequência é pré-determinado por Judy e Gavin Elster, o que significa que são eles os responsáveis pela estruturação da mesma em torno do retrato).
Num primeiro momento da sequência, Scottie espia Madeleine enquanto esta compra um bouquet de flores, seguindo-a depois até um cemitério, onde ela permanece durante alguns minutos, perante um túmulo. Quando ela se afasta finalmente, Scottie consegue ver a inscrição do túmulo, que nos é então revelada: “Carlotta Valdes, born December 3, 1831, died March 5, 1857”. Seguidamente, Scottie segue a mulher até ao museu, onde ela se senta estática e silenciosamente a contemplar uma pintura, e ele, por seu turno, após pedir informações a um funcionário do museu, fica a saber (e nós também, pois a identificação entre Scottie e espectador é, nesta primeira parte do filme, notória, e, aliás, sublinhada por planos subjectivos ou subjectivados; ou seja, também nós somos vítimas do plano de Elster) tratar-se de um retrato de Carlotta Valdes, a falecida mulher cujos nome e sepultura o protagonista já conhece.
Ao aproximar-se de Madeleine, que observa a pintura, Scottie apercebe-se de que o bouquet adquirido por esta é semelhante àquele que se vê no quadro, tal como a forma espiralada no seu cabelo se assemelha àquela no cabelo da figura retratada. A mulher real apresenta-se, assim, com elementos que também pertencem à mulher representada. Esta contaminação de Madeleine por Carlotta é desenvolvida na cena seguinte. Scottie segue-a até um hotel, e interroga a recepcionista, que lhe conta haver uma mulher que dá entrada regular com o nome Carlotta Valdes, dizendo-lhe também, no entanto, que de momento esta não se encontra presente – Scottie acabara de a ver entrar no hotel, mas, sendo levado ao quarto de Valdes, atesta, incrédulo, a sua ausência.
Pouco depois, ele toma conhecimento de que Madeleine é bisneta de Carlotta, uma dançarina de cabaré que foi resgatada de um centro missionário por um homem rico, que a tomou como amante, oferecendo-lhe uma casa (o hotel onde Madeleine deu entrada), engravidando-a, e abandonando-a depois, retirando-lhe o filho, que passa a criar juntamente com a sua esposa legítima. Na sequência do abandono, Carlotta transforma-se em “sad Carlotta” e, por fim, em “mad Carlotta”, acabando por pôr termo à sua vida.
Neste ponto, convém lembrar que Gavin Elster contratara Scottie para seguir a sua mulher porque, de há uns tempos para cá, esta vinha assumindo comportamentos excêntricos, passando longos períodos em estado quase catatónico, e fazendo longas viagens de carro, rumo a lugares desconhecidos. Ora, no fim da primeira sequência de perseguição (florista/cemitério/museu/hotel), torna-se evidente a sugestão de que Madeleine pode estar a ser possuída pela sua bisavó. E a possessão é sugerida através de um claro efeito de emulação (ao nível comportamental – Madeleine está a enlouquecer, tal como o seu antepassado), que se concretiza através de efeitos simples de imitação (em particular, a duplicação dos elementos no quadro).
3.
Uma vez que, nesta primeira parte do filme, o desenvolvimento da narrativa é ditado pelo ardiloso plano tecido por Gavin Elster, é forçoso admitir que esta personagem assume uma posição autoral. Em suma, Gavin Elster é o meneur de jeu que, tornado uma espécie de avatar do verdadeiro autor, Alfred Hitchcock, elabora a sua narrativa. É importante perceber que esta narrativa inventada por Elster, e que dita a primeira parte do filme de Hitchcock, é uma narrativa de cariz fantástico na qual o sobrenatural reclama uma componente fulcral, em particular através do motivo da possessão. Em suma, Elster cria, no plano da sua realidade, uma ghost story, e, não dispondo de efeitos especiais que concretizem materialmente, no plano do real, o fantasma (como num filme de Bauer, em que a sobreimpressão de imagens serve esse propósito), Elster é obrigado a concretizar o carácter sobrenatural do seu filme através de uma ideia de cinema pobre, com poucos meios, dispondo apenas da materialidade física das coisas. Assim, reveste a sua narrativa com visitas a cemitérios, imitação de retratos, ou truques de desaparição sem nenhuma magia efectivamente envolvida (refiro-me à referida cena do hotel).
O filme sobrenatural que Vertigo desenha, nesta primeira parte, é um filme em que o efeito do fantástico é concretizado puramente através da sugestão. E, no entanto, fá-lo tão convincentemente, que Scottie não só compra (relutantemente, porém) essa história, como contribui para a sua complexificação. Ele assume o papel de herói nessa narrativa de fantasmas, cemitérios e retratos, bem como se torna o homem que, apaixonando-se pela mulher votada à perdição, se propõe salvá-la: uma vez que o filme começa com uma morte que ele não consegue evitar, é natural que tente evitar uma segunda morte, a partir do momento em que começa a tornar-se claro que esta vai acontecer (de alguma forma, e num primeiro momento, Madeleine pode representar para Scottie a hipótese de corrigir a sua primeira falta).
No final dessa “história dentro da história”, Scottie acabará por não conseguir salvar Madeleine, porque, na verdade, a história sobrenatural na qual ele pensa desempenhar um papel não é, inteiramente, a mesma história na qual ele é tornado personagem. A verdadeira história é prosaica, ordinária, com algo de abjecto, e pode resumir-se da seguinte forma: um homem (Gavin Elster) elabora um plano para assassinar a sua esposa (Madeleine), que envolve a contratação de uma mulher (Judy), que se faz passar pela primeira, perante um terceiro elemento (Scottie) que, sem se saber vítima de um jogo de faz-de-conta, poderá, no fim, comprovar perante a polícia que a morte de Madeleine se tratou de um suicídio, ilibando assim os criminosos, ao mesmo tempo que ele próprio não pode ser incriminado, uma vez que foi impossibilitado de impedir o suicídio por queda do alto de uma torre devido à sua devidamente diagnosticada acrofobia.
Ao não conseguir evitar a morte de Madeleine, Scottie perde o seu estatuto de herói numa suposta narrativa de fantasmas: de alguma forma possuída por Carlotta, Madeleine acaba por duplicar o impulso suicida da primeira. Saber-se-á, contudo, que Scottie não consegue vencer os fantasmas porque aqueles que ele defronta são, na verdade, demasiado humanos.
4.
E, assim, Vertigo apresenta-nos, na verdade, um simulacro de ghost story, não correspondendo, de maneira alguma, aos pressupostos que ditam uma verdadeira história de fantasmas. Dir-se-ia, então, que – sem a existência de qualquer componente sobrenatural – o filme de Hitchcock acaba por tornar-se um mero jogo de espelhos, que se constrói unicamente no plano da imanência e da representação enquanto faz-de-conta.
Os “quadros dentro do quadro” que pontuam o filme consistem, assim, em figuras simbólicas da representação, que auxiliam na caracterização de Vertigo como um filme sobre, em última instância, isso mesmo: o engano, a representação, a arte (do crime, e não só: também da performance, de amar, etc.). Esses enquadramentos são figuras que, tradicionalmente, associamos à reivindicação da consciência, por parte do objecto artístico, de que ele é apenas isso, um objecto autónomo, desprovido de realidade, separado do mundo real através de uma moldura. Os quadros chamam, assim, a atenção para a cisão entre níveis distintos de realidade, o que é um aspecto fulcral de Vertigo, em particular durante a sua primeira parte, à qual me venho reportando, na qual Elster e Judy encenam uma narrativa fantástica para Scottie.
Num segundo visionamento, o espectador revê toda esta primeira parte com o conhecimento apriorístico de estar a assistir a uma representação, o que lhe permite então reconhecer, com o característico entusiasmo do analista que compreende perfeitamente o que está diante de si, que a própria forma do filme já estava desde o início, ao insistir nesse recurso formal, a chamar a atenção para a qualidade representativa daquilo que oferecia a ver. Numa primeira análise, estes quadros tornam-se assim, no fim de contas, um meio visual, de mise en scène, que imprime significado ao filme, operando numa lógica simples da descodificação da narrativa pelo trabalho da forma.
5.
O quadro de Carlotta inscreve no filme, também, o princípio da repetição, o qual, em termos muito simples, se associa, desde logo, ao da imitação, que mencionei antes. Imitando Carlotta (usando o mesmo bouquete um penteado semelhante), Madeleine repete elementos da pintura, duplicando-os. O filme articula assim diversas noções que, não obstante congéneres, têm implicações concretas ligeiramente diferentes: imitação, repetição, variação, duplicação. Em suma, neste filme sobre imitações, é importante estarmos atentos às variantes que especificam esses processos. A imitação é um processo material que envolve repetições, variações, multiplicações, que a modalizam necessariamente. Ou seja, enquanto possível ensaio sobre o estatuto da imitação, Vertigo resiste à desmontagem fácil.
6.
O trabalho de Hitchcock sobre a repetição é, ao nível da macroestrutura do filme, particularmente explícito, do que é exemplo mais notório o facto de Vertigo iniciar com uma morte por queda (o polícia), ter como ponto medial um suicídio realizado em termos aproximados (Madeleine), e terminar com uma última morte semelhante às anteriores (Judy). Gostaria, no entanto, a propósito do motivo da repetição, de chamar a atenção para uma sequência que tem lugar após a segunda morte, isto é, o falso suicídio da falsa Madeleine.
Depois de sair do sanatório, Scottie visita a propriedade dos Elster e vê o carro verde de Madeleine estacionado no exterior, para o qual se dirige uma mulher loira que, num primeiro olhar, parece a morta – uma percepção que ele rapidamente pode desmentir, ao aproximar-se dela. Na cena imediamente seguinte, Scottie visita Ernie’s, o restaurante onde vira Madeleine pela primeira vez. Senta-se no mesmo lugar de outrora e olha para a sala adjacente, onde vê uma mulher, extremamente parecida com Madeleine, a levantar-se da mesa e a caminhar na sua direcção, tal como acontecera no primeiro encontro. Ao aproximar-se, porém, ele percebe novamente que também esta mulher não é Madeleine. Logo depois, vemo-lo no museu, espiando uma jovem que, sentada no mesmo banco em que se sentara Madeleine outrora, encara o retrato de Carlotta. Por fim, num novo plano, Scottie olha para a montra da florista, onde está exposto um bouquet igual àquele que Madeleine usara na sua visita ao museu.
Ao virar a sua atenção da montra da florista para a rua, ele vê uma jovem que pára à sua frente, conversando com amigas. Ao contrário das anteriores, esta é muito diferente de Madeleine (uma era loira, esta é morena; uma maquilhava-se discretamente, esta maquilha-se abundantemente; uma tinha uma presença distinta, esta tem um aspecto vulgar), e, contudo, Scottie vê nela algo de Madeleine, o que o filme concretiza, formalmente, dando-a a ver de perfil, tal como a primeira fora inicialmente apresentada.
Se a imitação constituíra, como vimos, um elemento estruturante de toda a primeira parte do filme a nível narrativo, em toda esta sequência o filme imita-se a si mesmo, repetindo cenas, figuras e planos da primeira perseguição de Scottie a Madeleine. A primeira parte da sequência, junto à casa dos Elster, bem como toda a cena no restaurante e a cena no museu, são filmadas de forma muito semelhante àquelas como tinham sido filmadas as cenas anteriores para as quais estas evidentemente remetem. Estamos na lógica da duplicação formal. Contudo, se estas cenas são formalmente iguais às anteriores, há uma diferença fundamental: a mulher que figura nestes novos planos não é a mesma, o que é de extrema importância, porque é ela que Scottie procura ao visitar os mesmos lugares.
É este trabalho de figuração, que nos mostra consecutivamente cenas iguais com mulheres/seres diferentes, que torna tão interessante a aparição súbita de Judy, uma vez que, nesse momento, estamos perante algo de outra ordem: ao contrário das mulheres anteriores, que, sem serem Madeleine, se assemelhavam a ela, esta não se parece com Madeleine; e, no entanto, ela é efectivamente a mulher que interpretou a outra na primeira parte do filme. Em termos simples, Vertigo diz-nos, nesta sequência, que o igual é diferente, e que o diferente é igual, chamando a nossa atenção para as relações complexas que se podem estabelecer entre essência e aparência.
7.
No desenvolvimento desta análise, torna-se particularmente interessante verificar que Scottie procura, na segunda parte do filme, tornar Judy uma mulher igual a Madeleine. De alguma forma, ele não é uma mera vítima das aparências, pois, se o fosse, ter-se-ia satisfeito com qualquer uma das mulheres que o filme põe à sua frente ao longo desta sequência, uma vez que todas se assemelham a Madeleine. Ele escolhe, no entanto, aquela que diverge mais radicalmente da original, o que só se pode explicar do seguinte modo: por uma espécie de efeito anamórfico (ao qual a apresentação de Judy em perfil não é alheio – o perfil desta mulher é o ponto de perspectiva através do qual esta anamorfose se constrói), Scottie vê Judy como aquela que ela é realmente no seu filme (e convém lembrar que, num filme, essência e aparência não são desvinculáveis, pois nele os seres existem unicamente enquanto imagem): Madeleine.
Scottie persegue Judy até um hotel, tal como perseguira Madeleine no início, e, tal como da primeira vez, a nova mulher volta a ser enquadrada na janela. Scottie volta, presumidamente, a perguntar pela mulher na recepção, e visita-a no quarto. É aqui que se dá a primeira alteração relativamente à perseguição do início: se, na primeira cena de hotel, Madeleine não estava, afinal, no quarto, tendo desaparecido milagrosamente, agora Judy está no quarto e abre a porta a Scottie. Ao contrário de Madeleine, que, enquanto figura fantasmagórica (em diversos sentidos, enquanto protagonista de uma falsa ghost story e enquanto personagem criada por uma mulher e imposta à realidade de um homem, que, assim, se apaixona por uma ficção), encena a sua ausência, Judy parece estar definitivamente presente, afirmando a sua imanência.
8.
No seguimento desta mesma sequência do encontro entre Scottie e Judy, o espectador fica a saber, através de um flashback, que Judy é realmente a mulher que desempenhou o papel de Madeleine, tomando também conhecimento de que ela se apaixonou por Scottie no processo. Assim, ela aceita um convite para jantar, que Scottie lhe lança unicamente porque ela lhe faz lembrar Madeleine, porque espera poder levá-lo a esquecer a outra mulher (“forget the other and forget the past”), fazendo-o amá-la tal como ela é realmente (“as I am for myself”): Judy, a mulher morena, abundantemente maquilhada, simples empregada de loja, e com um tanto quanto de vulgaridade no trato.
O plano de Judy é gorado rapidamente. Scottie não se interessa pela sua individualidade, vendo nela apenas um corpo que, em tudo semelhante ao de Madeleine, pode levá-lo a concretizar a ilusão de voltar a ter a morta junto de si. Para tal, no entanto, a aparência de Judy tem de coincidir com a de Madeleine, e é por essa razão que Scottie a persuade a pintar o cabelo de loiro, a usar uma maquilhagem diferente e a envergar o fato cinzento da outra.
O desenvolvimento do filme é sobejamente conhecido. Scottie consegue transformar Judy em Madeleine, e, depois de se envolverem fisicamente pela primeira vez, e antes de saírem para jantar (ao Ernie’s, é evidente), ela pede-lhe que a ajude a pôr um colar ao pescoço. Ao vislumbrar o colar no espelho, ele apercebe-se de que este é semelhante ao de Carlotta, o qual, tinha-lhe dito Elster, fora legado à verdadeira Madeleine. E, assim, Scottie apercebe-se da intriga de Vertigo, como se assistisse então, em poucos segundos, e no ecrã da sua mente, ao filme que o espectador vira durante as quase duas horas precedentes.
Portanto, a cena de reconhecimento de Scottie acontece no momento em que um espelho devolve a verdade (Judy é Madeleine), repetindo no entanto, com a necessária variação, o quadro de Carlotta. Isto é, a cena no espelho apresenta-se como um quadro de museu, percebendo Scottie, aí, que também ele fora tornado inadvertidamente uma figura num quadro, uma personagem num romance, um actor numa peça. E ele percebe que a história em que participara não continha, em si, nada de sobrenatural ou de bigger than life, mas era, pelo contrário, e como referi antes, uma história de crime ordinária, com muito de abjecto – especialmente porque dos escombros desta encenação nasceu algo de verdadeiro, com sérias implicações na experiência e na própria constituição do ser: um inescapável amour fou. Consequentemente, a verdade deste amor, que o levara à loucura e abalara a sua noção da realidade, conduzindo-o a procurar criar, na segunda parte do filme, a sua própria história (uma narrativa ultra-romântica sobre um homem incapaz de superar a morte da amada, com tanto de Orfeu [Boileau-Narcejac 2014] como de Pigmalião [Stoichita 2011]), torna-se escandalosamente patética num contexto de vulgares mentiras e decepções.
Scottie conduz Judy à torre onde Madeleine se suicidara, confronta-a, e ela cai da torre, morrendo a morte que a falsa Madeleine não morrera, no momento em que se assusta com a aparição súbita de uma freira.
9.
Afinal, tudo fora representação, aparência, jogo. E, contudo, os efeitos deste “jogo” foram bem reais para as personagens envolvidas. Scottie enlouqueceu de amor, e Judy morreu a mesma morte que vitimara a personagem cujo papel desempenhara no passado.
Se Vertigo põe em cena – de diversas formas, como vimos – conceitos como os de representação, imitação ou emulação, nele parece contemplar-se também elementos da ordem do estritamente ontológico. Pois talvez o filme de Hitchcock não se trate, afinal, de um mero jogo de espelhos.
Comecemos pelos quadros dentro do quadro. Escrevi antes que a figuração do quadro chama a atenção para a qualidade representativa do objecto, e para a cisão entre um além e um aquém dos limites do quadro, que, em termos simples, poderia dizer-se corresponderem à realidade e à representação.
Se alguns quadros de Vertigo parecem apontar para este entendimento simples da problemática, outros parecem questionar decisivamente esta mesma concepção. Por exemplo, na primeira cena do museu, vemos Madeleine claramente enquadrada entre as colunas, mas devemos ter em atenção, também, o posicionamento de Scottie em campo. Ao nível da composição da imagem, é forçoso notar que ele perturba o limite direito do quadro, rasgando-o, pertencendo simultaneamente ao seu interior e ao seu exterior. Isto explica-se pelo facto de ele não ser uma personagem que pertence absolutamente ao domínio da representação, como Madeleine, mas que é chamado por esta para esse mesmo domínio. No entanto, aquilo para que um efeito de figuração como este chama a atenção é a possibilidade de se estar simultaneamente dentro e fora do quadro, dentro e fora da representação. E, deste modo, os limites do quadro não promovem apenas a cisão ou a disjunção entre níveis diferentes de realidade, mas permitem junção e, acima de tudo, atravessamentos. Eles são, antes, fronteiras ou limiares que podem ser atravessados. Ora, a partir do momento em que os limites que dividem o real da representação se revelam porosos, os estatutos do real e da representação são de imediato questionados, pois se há coisas que migram do real para o representado, e vice-versa, cada um dos domínios será contaminado pelo outro, tornando impossível associar-lhes uma ideia de pureza.
10.
Desta instabilidade ontológica é sinal a cena no restaurante, que atrás referi, ocorrida logo depois da morte de Madeleine. Scottie entra e senta-se ao balcão, tal como fizera no início do filme, e olha para o salão adjacente, onde vê (e nós com ele, pois trata-se de um plano subjectivo) Madeleine, duplamente enquadrada, tal como acontecera na primeira configuração desta mesma cena. Ela levanta-se e caminha em direcção a Scottie. No final da sequência, como referi antes, saber-se-á que esta mulher não era, afinal, Madeleine. Contudo, a actriz que estamos a ver, neste momento, é efectivamente Kim Novak, a mesma que interpreta Judy a interpretar Madeleine. Novak levanta-se e caminha na nossa direcção. Ao aproximar-se da porta que separa as salas, contudo, há um corte para o rosto de Scottie, e um novo corte volta a mostrá-la. Neste momento, ela está precisamente no limiar da porta, e a actriz que a interpreta já não é Kim Novak, mas outra. Scottie percebe então, e nós com ele, que aquela não era Madeleine. E, contudo, todos vimos efectivamente a figura de Kim Novak, até ao momento em que o atravessamento do limiar do quadro revelou uma outra mulher.
É evidente que este truque técnico tem uma explicação elementar. Scottie regressa ao sítio onde viu pela primeira vez a mulher que acabaria por perder, e, ao ver alguém ao longe, no mesmo lugar onde vira a primeira, e caracterizada da mesma forma, acaba por, sugestionado pela sua própria obsessão, vê-la mal, como aquela que ela não é realmente. Ele apenas a vê correctamente quando ela se aproxima dele, e os traços do rosto se tornam claros. Assumindo o filme a percepção do seu protagonista através do plano subjectivo, e vendo esta personagem de forma errada, o filme não pode senão dar a ver a forma errada segundo a qual o homem vê (num prolongamento desta ideia, refira-se que Scottie é, desde o início, e como bom acrofóbico, uma personagem míope, e é justamente a sua falta de acutilância ou penetração que o torna a vítima perfeita de Elster).
Contudo, é forçoso compreender que o mesmo filme que usa os enquadramentos como forma de problematizar os limites da representação faz coincidir o momento em que Scottie passa a ver bem com o momento em que a mulher atravessa a porta, isto é, rompe o quadro dentro do quadro. Em termos simples, estamos perante uma transição entre a alucinação (Kim Novak) e a realidade (a verdadeira mulher), vencendo esta última no final da cena. Porém, devemos não esquecer que, na primeira encenação deste mesmo movimento, no início do filme, não se assistira a transição alguma: aí, Madeleine fora sempre interpretada por Kim Novak, e fora sempre uma ficção real – uma ficção que sai do quadro e ingressa no plano do real, sem que se verifique qualquer alteração visível.
Em suma, deve atentar-se nos quadros não apenas enquanto “símbolos” estanques, mas contemplando as dinâmicas concretas que eles estabelecem entre planos de realidade, e, em particular, no modo como as figuras se movem nesses planos (dentro dos quadros, fora dos quadros, ou dentro e fora em simultâneo).
11.
Porque, na verdade, em Vertigo, não é tudo apenas imitação, apenas jogo de faz-de-conta. Através da performance, a ficção adquire efectivamente um grau de realidade. Disto é sinal o aspecto narrativo mais surpreendente do filme de Hitchcock: o facto de Judy morrer, no final, da mesma forma que a Madeleine que interpretou.
Na primeira parte do filme, é pelo processo de imitação de Carlotta que Gavin Elster e Judy sugerem, face a Scottie, que Madeleine poderá sofrer o mesmo destino da sua bisavó, a morte por suicídio. Ora, é exactamente através de um processo de imitação de Carlotta – ao usar o colar desta – que Judy se desmascara perante Scottie, condenando-se, por um lado, ao mesmo destino de Carlotta (a morte), e, por outro – e mais concretamente –, ao mesmo destino da Madeleine, que, supostamente, já replicara o destino de Carlotta. Judy terá a exacta mesma morte da falsa Madeleine (sabemos que à verdadeira é partido o pescoço), caindo da torre.
Partilhar o destino de Madeleine outorga a Judy uma certa parte de Madeleine, o que é problemático, uma vez que a Madeleine que Scottie conheceu nunca existiu efectivamente, ou seja, nunca foi uma mulher de verdade, um ser ou uma essência. Assim sendo, se Judy fica, de alguma forma, contaminada por Madeleine, ela fica contaminada por um grau de irrealidade, e, assim sendo, ela deixa de ser puramente imanente, ao contrário do que possa sugerir uma primeira análise que coloque uma do lado da idealização e a outra do lado do concreto.
Numa cena paradigmática do filme, vemos Judy de perfil, na escuridão do seu quarto, em contra-luz, envolvida por uma luz verde. Para além de o facto de ela estar de perfil significar, na economia visual do filme, estar “no lugar de Madeleine”, também o verde que tinta a cena remete para Madeleine, uma vez que essa cor fora associada a esta desde o início. De Judy, o que temos? Para além do discurso (um aspecto que mereceria um estudo particular), apenas a linha do perfil, que ela partilha com Madeleine. Neste plano, Kim Novak é apresentada num contra-luz quase perfeito, que a transforma numa sombra. Numa primeira análise, num filme que é, também, sobre a pulsão escópica do cinema (do genérico retém-se o grande plano sobre um olho), a sombra remete para a condição das imagens de cinema, que, em termos quase platónicos, não passam de símiles deturpados do real (o “reino de sombras” de Górki).
Estas mesmas interpretações podem ligar-se, na verdade, com a dimensão narrativa, e também psicológica, do filme: esta figura, entre Judy e Madeleine, é apresentada como sendo simultaneamente ambas e nenhuma, uma vez que a sua sombra mantém uma relação directa com as duas, e, no entanto, não possui densidade, não é real, tangível, não se pode agarrar: é o negativo do ser, a sua projecção. E, contudo, uma análise pretensamente céptica e racional deste filme de Hitchcock – algo que tenho procurado ensaiar aqui – diz-nos que Judy é a figura imanente, o corpo real, denso, volumétrico, no qual também Madeleine pode existir.
Em suma, um plano como este chama a nossa atenção para o facto de Vertigo lidar de forma complexa com as relações entre essência e aparência, apontando para uma impossibilidade ôntica: esta “mulher” é simultaneamente corpo e sombra, e o “corpo” não está necessariamente para Judy, tal como a “sombra” não está necessariamente para Madeleine, porque ambas partilham o mesmo corpo e a mesma sombra. Ou seja, elas partilham a mesma aparência e, pelo menos, uma parte significativa da essência, sendo que a essência de Madeleine, sendo toda ela aparência, está totalmente contida em Judy, no fim.
É no sentido da revelação desta absoluta coincidência que Scottie trabalha, na parte final, ao obrigar Judy a possuir a mesma aparência de Madeleine. O momento em que Judy sai da casa de banho como Madeleine é o positivo do qual a sequência da sombra é o negativo. Se na sequência anterior ambas coincidem na ausência, aqui, elas coincidem na presença – e note-se que o filme trabalha visualmente esta mesma ideia, materializando progressivamente Madeleine, à medida que ela avança em direcção a Scottie, como se se tornasse carne. Aqui, Madeleine está efectivamente toda em Judy. Ora, neste momento, a primeira é uma personagem póstuma, cujo destino está cumprido. Há, de facto, uma invocação que traz não só uma imagem, como, também, um ser. Pois se Madeleine era unicamente aparência, ser imagem é a sua essência. E, assim, ao ser tomada pela aparência/essência de Madeleine, depois de esta ter morrido, Judy é possuída pela desaparecida. O que em Madeleine/Carlotta fora um jogo, em Judy/Madeleine é real. Ao ser trazida de novo à vida, Madeleine terá de cumprir o mesmo destino que cumprira anteriormente, e, nesse processo, levará Judy – em quem ela existe – com ela.
Referências
Boileau-Narcejac (2014), Sueurs froides (d’entre les morts). Paris: Denöel/folio.
Stoichita, Victor (2011), O Efeito Pigmalião: para uma antropologia histórica dos simulacros (trad. Renata Correio Botelho e Rui Pires Cabral). Lisboa: KKYM.