O film noir vai atravessar o caminho de muitos realizadores que andaram pelas margens com numerosas produções B e meios escassos de produção de que resultaram filmes pouco vistos, pouco falados, e por vezes esquecidos. O próprio conceito corrente de film noir abre-se a diferentes estilos e formas, aproveitando também para se esconder dos códigos da bela conduta, desenvolvendo-se numa impureza derivativa e, logo, muito aliciante para cruzamentos de género.
Theodore Tetzlaff, mais conhecido por Ted Tetzlaff (1903-1995), pertence a este prolífico território e é um nome a re-olhar do período clássico americano que ficou fora da galeria dos sonantes. Somou qualidades à sua carreira: foi actor, director de fotografia, e por fim, realizador, numa época em que emergiam muitos talentos na mesma medida em que se apagavam. Tetzlaff começou por ser conhecido em Hollywood como director de fotografia de prestígio, profissão na qual trabalhou cerca de 20 anos (entre os anos 20 e 40), associando-se a muitos realizadores importantes como Alfred Hitchcock, Frank Capra, Roy William Neill, Wesley Ruggles, Gregory La Cava, Mitchell Leisen, René Clair, entre outros.
Nos anos 30 Tetzlaff atinge o apogeu da sua carreira enquanto operador de imagem, na Columbia e na Paramount, e foi um dos fotógrafos favoritos da actriz Carole Lombard. Foi reconhecido por um filme que se destacou na sua filmografia The Window (O Que Viram os Meus Olhos, 1949), obra marcante, merecedora de rasgados elogios, que põe no centro uma criança que testemunha um crime (a aprofundar mais à frente).
Pode logo falar-se da “grande mão” de Tetzlaff, enquanto realizador, para a mise en scène e de um gosto para o film noir, que acaba por ser a sua maior linha de expressão, numa curta e concentrada filmografia. É notado o grande cuidado e alta sensibilidade na iluminação de um plano, mais que natural para um ‘’olhar’’ já tão bem treinado para a tarefa, e a atenção e indicações meticulosas dos movimentos dadas ao actor no décor. O seu maior trabalho, em quantidade, foi feito enquanto director de fotografia (foi creditado em 115 filmes), e como a realização veio depois com algumas produções “médias”, não ficou na história com tanto relevo, como muitos dos seus colegas, tendo assim uma parca filmografia (creditado em 17 realizações).
Riff-Raff (1947) é exactamente o exemplo dum filme com produção “média” que não atingiu os números orçamentais estimados para pertencer à categoria de produção A, e estava acima dos valores da categoria B. Riff-Raff marca a entrada formal de Tetzlaff na realização. Tendo feito anteriormente tragicomédias e comédias, este é o arranque duma carreira com acentuada tendência para universos de suspense e film noir, como já foi dito. Rif-Raf tem uma entrada brilhante e pode dizer-se valer o filme inteiro. Esta força inicial fica como nota preambular obscura e sintomática, dum universo que abre carregado e depois se articula mais arrumado, ou mais reconhecível, nos códigos do policial.
O genérico é logo muito atmosférico: atravessado por nuvens, seguido de chuva torrencial. Depois, em terra e solo húmido, vemos, de perto, um soberbo lagarto que ronda uma gare onde se encontra um avião de carga. Um homem da tripulação observa a chuva, cruza com outro, um dos passageiros fica em grande plano, e descobre-se um pequeno espaço interior de atendimento onde se espera. Os movimentos de câmara são perfeitos e fazem-nos exactamente “descobrir” décors e personagens num irrepreensível movimento articulado, coreografado num andamento bem medido, reflexo dum trabalho de mise en scène de qualidade superior. Outro passageiro chega de carro e, como ninguém fala, ficamos presos à precisão dos gestos, à troca de olhares, ao papel escrito ‘’2 passageiros’’; a uma maleta agarrada ao peito, ao brilho da chuva no pavimento, à asa gigante do avião…
Tudo o que vemos capta-se, o que ouvimos também, o som da chuva, o ribombar dos trovões. O que não há é palavras e são desnecessárias porque a imagem já as tem na sua elevada capacidade narrativa. No interior do avião, que sai do Peru para o Panamá, há galinhas, e pintainhos ruidosos que se acrescentam ao ambiente sonoro, mais grandes planos de cada um dos passageiros que ficam mais próximos um do outro, e do espectador. Um pintainho perdido no chão é recolhido, o silêncio, de palavras, continua, para ficar mais presente todo o volume sonoro das coisas. Quando a câmara deixa os passageiros e se desloca à cabine do piloto, irrompe um alarme: um dos homens saltou do avião. Foram cerca de 5.30 minutos sem falas, a partir daqui o filme segue o seu caminho natural de meio policial, bem apetrechado de componentes que se apoiam num sistema que se vai prendendo com os ganchos próprios de uma teia policial-noir.
No Panamá, o caso do homem desaparecido durante o voo interessa à polícia secreta, num primeiro tempo, e passa a interessar depois a muita gente, não o homem, propriamente, mas um mapa que ele transportava. Dan Hammer, (Pat O’Brien), detective na Zenith Services, ver-se-á duplamente contratado pelo ‘’outro’’ passageiro, Charles Hasso (Marc Krah), para seu guarda-costas, e por um executivo ganancioso de uma companhia petrolífera Walter Gredson (Jerome Cowan), que por sua vez tem uma namorada cantora, Maxine (Anne Jeffreys), que foi incumbida de vigiar Hammer e vai cair de amores por ele. Um falso turista, o volumoso Eric Molinar (o fabuloso actor “mauzão” Walter Slezak), e o seu gangue juntam-se a este grupo de interesses. A procura do mapa precioso que tem a localização de poços de petróleo vai ser o leitmotiv central da intriga.
Ressurgem aqui temas importantes como o crescente intervencionismo político-económico norte-americano, na América Latina, para controlar os seus recursos naturais, num mundo onde se moviam altos interesses estatais e muitos agentes de espionagem.
Hammer torna-se central neste magnífico jogo de objectivos únicos, e faz a ligação entre a motivação das personagens, coordenando as forças e contra forças de um mundo focado no seu alvo. Tudo tem um preço para Hammer, ele faz-se sempre pagar pelos seus serviços: “O dinheiro é a fonte de todo o mal” é o refrão que canta Maxine, com as companheiras no bar, como se a ideia do dinheiro – e ouvimos “petróleo” – fosse a sentença.
A mão de Tetzlaff é hábil na forma como articula todos os dados e joga cuidadosamente com pormenores que se vão captando à medida que o filme avança. Vamos vê-los nas gotas de água que caem no livro de clientes na recepção do hotel, ficando mais escuras para dizer que é sangue – a morte fica assim exposta, contada. A ver, ainda, o humor aliado à amizade entre Pop (fantástico actor, Percy Kilbride), o velho taxista fiel de Hammer, a circular pela cidade no seu carro-táxi que custa a arrancar – outro pormenor, outra personagem secundária, rica e habitual no género. Encontram-se características de mestre na forma como são trabalhados os grandes planos em momentos de tensão, que pela composição e pela escala criam um clima de dominação e confronto.
A coragem de Hammer frente ao gangue é admiravelmente posta em imagens: enquadram-se janelas, como se o enquadramento duplicasse (plano-janela) – a “janela” é um elemento que parece interessar muito a Tetzlaff -, a luz é sombria, os corpos deslocam-se no espaço, pesados e ameaçadores, movimentam-se no plano, e a audácia é posta de fora. Hammer, questionado e ameaçado sobre o mapa, brinca: “Era uma vez um mapa, um mapa pequenino…”. Não há espaço para medos, Hammer é arrojado, graceja, eles são 3 contra 1, e o detective não pode abrir mão do que não sabe. O mapa está, ironicamente, tão visível, mas é para nós espectadores.
Molinar, sinuoso, dirá: “eu nunca uso violência, uso palavras’’ – mais ironia em grau elevado. Hammer recebe uma valente tareia dos capangas de Molinar, enquanto este desenha à janela para que o tempo passe e apresse a confissão que não vem.
Se vimos um estranho lagarto no início, vemos depois um cão muito querido, animal de estimação de Hammer que lhe guarda a porta (há ainda um papagaio, e lembramo-nos dos pintainhos no avião). O cão será sempre um cão, mas Tetzlaff filma-o com tal cumplicidade que o coloca próximo, sensível – o cão “olha” pela fechadura da porta. Esta imagem vai ficar no final a bailar: é um olhar de animal a ligar-se ao lagarto que também ‘’olhava’’ no início. A questão do olhar num sistema mais simbólico fica resolvida. O mal foi vencido e o olhar restituído é “bom” – simplista?! Talvez, mas às vezes é mesmo assim.
Johnny Allegro (1949) começa em LA, nas galerias dum grande hotel, numa loja de flores, onde se encontra o dono, Johnny Allegro (George Raft), nome afixado na montra da florista. A montra presta-se logo a um jogo de câmara e de transparência, que mostra Allegro pela primeira vez através do vidro, enquadrando-o com as letras que desenham o seu nome. A ideia de identidade fica em relevo, sendo uma questão importante da personagem aqui bem sublinhada. Uma mulher elegante sai do elevador, e depois duma hesitação ao reparar num homem no hall, que observa sub-repticiamente, dirige-se a Johnny e beija-o como se fossem íntimos. A mulher misteriosa, Glenda Chapman (Nina Foch), confessa a Allegro estar a ser perseguida e pede-lhe auxílio.
A partir daqui, está lançada uma história de suspense, com alguma tensão e atmosfera noir. Glenda afirma-se na sedução e quer tornar o florista seu cúmplice. Mas há mais a saber deste homem que se atravessou, ou ficou atravessado, no caminho da bela e misteriosa mulher. Na mesma pessoa há “Johnny Allegro, o tipo certinho, e Johnny Rock, o tipo mauzinho”, informa Schultzy (Will Geer), que vem direitinho do Ministério das Finanças clarificar coisas. O passado de Allegro, que vive sob falsa identidade, vem ao de cima, foi outrora um gangster evadido de Sing Sing, e vai ter agora o Estado, e a polícia, a chantagear a sua liberdade. Passa a informador deles e segue Glenda, ajudando-a a sair do hotel pelas traseiras. Ela, imaculadamente vestida de branco, marca a beleza do contraste com a escuridão nocturna e impõe no espaço uma bela geometria noir, projectando o efeito de femme fatale a atravessar a noite, numa perfeita e sombria limpidez.
Allegro cola-se a ela e impõe-se no seu destino, uma ilha ao largo da Flórida. Numa luxuosa villa, espera-os o anfitrião Morgan Vallin (George Macready, outro veterano de papéis de “mau”), cabecilha de um grupo importante de falsificadores de notas. Há mais descobertas neste encontro tenso. Vallin é, na verdade, marido de Glenda. O confronto entre os actores Raf e Macready, Allegro/Vallin, é de assinalar: um em rigidez, outro em perversão, cumprem o seu papel. O foco do mal está em Vallin, o ex-gangster Johnny Rock é um infiltrado, colocando-se automaticamente do lado de quem deve vencer esta luta. Vão medir forças, há uma mulher pelo meio, e uma missão a desvendar de avultadas quantidades de dinheiro falso. Allegro, entregue a si próprio sem geografia para se guiar, consegue ainda ardilosamente estabelecer contactos para cumprir o papel de informador.
Notorious (Difamação, 1946), de Hitchcock, é referido com alguns pontos em comum, como o papel do infiltrado, apaixonado pela mulher casada, a natural triangulação e a rede perigosa dos cúmplices do falsificador com esquemas políticos pelo meio. De resto, é igualmente perigoso aproximar muito os dois filmes, Notorious joga claramente com maior complexidade e tem na construção dramática um fulgor mais fundo e inquietante. Outro valor de proximidade é lembrar que a fotografia de Notorious foi elaborada por Tetzlaff, que fez a proeza de incarnar a imagem na mais profunda intenção das personagens, aliando-se o suspense à angústia, o movimento à desfocagem, o ângulo à motivação, numa poderosa dominação noir. Não terá sido por acaso que após esta incrível colaboração, Tetzlaff passe para o papel de realizador, imagina-se o enorme estímulo da experiência visual vivida com Notorious.
Não há em Johnny Allegro grandes surpresas. O filme desenvolve-se mais à superfície, preso numa rede mais simplificada de meios que caminham para os fins. Interessa em Johnny Allegro o refinamento de Tetzlaff, a olhar, a enquadrar, a criar profundidades de campo, importantes para considerar no plano quem espia, quem vigia de longe; a fazer deslocar a câmara, e a sua faculdade na criação dum inegável clima noir. Seja de noite, quando Allegro no quarto da villa espera o caçador, depois de preparar um ardiloso aviso para não ser apanhado de surpresa, seja na incrível caçada empreendida pelo implacável e competitivo Vallin, em plena luz do dia, em perseguição feroz a Allegro, qual animal em fuga por entre o emaranhado de vegetação, resta uma flecha de prata ao caçador com a qual diz nunca falhar.
Há uma onda de mistério apelativa em Johnny Allegro, não por ter uma história extraordinária, mas porque é visualmente sedutor e produz-se numa espécie de “brilho” noir que ressurge nos décors, nos enquadramentos, no requinte de alguns planos, no exotismo do espaço, e na perversão terrível e elegante das personagens, tudo junto acaba por se valer bem.
Assinala-se também o film noir A Dangerous Profession (Uma Profissão Perigosa, 1949), com o actor George Raft, num outro universo de crime que faz um ex-polícia reencontrar-se com uma ex-companheira, agora mulher do suspeito. Under the Gun (1950) é outro Tetzlaff esquecido, um filme de crime noir que põe um gangster na cadeia durante 20 anos, onde terá um encontro importante e prometedor para a sua libertação. Time Bomb (Bomba Relógio, 1953) desenvolve-se num universo de acção terrorista com Glenn Ford e Anne Vernon.
Gambling House (O Palácio da Perdição, 1950) começa como podem começar muitos filmes noirs com uma situação limite, dramaticamente no ponto culminante: um homem ferido caminha à noite com dificuldade pela rua, entra num prédio, manchas de sangue ficam no chão à sua passagem. Trata-se de Marc Fury (o sólido Victor Mature), que foi atingido num confronto. O título é enganador, esta casa de jogo que anuncia não tem expressão no filme, nem condensa nenhuma ideia importante à volta do tema, é portanto acessória: a ligação vem de negócios de jogo, normalmente fora de campo. Fury levou um tiro num jogo e é acusado de ter morto um homem. Na verdade, o real culpado é o patrão, chefe dum gangue de criminosos, Joe Farrow (William Bendix, actor tardio especializado em papéis secundários de destaque). Farrow procurará silenciar o empregado oferecendo-lhe uma soma avultada contra o seu silêncio, o pacto é que este assuma a culpa.
Os códigos de film noir e crime fazem parte do grande miolo de Gambling House que vai evoluir de forma singular para outras zonas, no género de análise social, à época pouco exploradas. Depois de ser absolvido, Fury fica sob custódia, a justiça não permite fechar o assunto, abrem-se outras portas, particularmente as portas do serviço de emigração. Marc Fury afinal é Marcus Furioni, nascido em Itália, em situação ilegal (mais outra questão de identidade). Fury tem ordem de prisão, agravada pelos antecedentes pouco limpos das suas actividades ilícitas, e é pedida a sua deportação. O cadastro de Fury é extenso e pouco recomendável, somando-se a ele roubos e prisões – temos perante nós um homem encurralado. Fury luta pela sua cidadania americana que poderia por direito obter por méritos militares, combateu na II Guerra Mundial. O destino bate-lhe em cheio à porta, neste momento delicado, permitindo-lhe um novo encontro com uma assistente social. O romance fica em linha e Tetzlaff vai agarrar a deixa para cruzar duas pessoas que estão nos antípodas uma da outra e criar proximidades. Lynn Warren (interpretada por Terry Moore, protegida e namorada de Howard Hugues, na altura proprietário da RKO, que produziu o filme; há rumores de um casamento secreto entre eles), trabalha na Aliança de Ajuda Social aos Refugiados, onde auxilia emigrantes.
O filme alarga-se tematicamente para além da sua face noir e vira-se para uma dimensão social importante, que toma o tema dos refugiados como centro, para uma reflexão à volta dos direitos dos estrangeiros, abordando o perigo de expulsão e as naturais dificuldades de integração, num país no qual muitas vezes nem falam a língua. Um tema que ecoa em grande nos tempos actuais e que na época era um assunto de destaque não muito dentro do cinema. Tetzlaff está atento a criar alianças entre bem e mal, aproveitando-se de Lynn e da sua espontaneidade para colocar um espelho frente a Marc, reenviando-lhe uma imagem dual, expondo na mesma superfície dureza e autenticidade.
O vigor da imagem de Tetzlaff vê-se nalguns pontos fortes (mais uma vez, são momentos, partes que se revestem de importância), como a carga que Victor Mature imprime a Fury quando espera numa sala, onde muitos emigrantes aguardam a sua sorte e ele é tomado por uma nova consciência e condição. Lá fora, reluz através de grandes janelas a cidade de Nova Iorque. Fury é abordado por um grupo de italianos. Daqui saem personagens ricas que afirmam pertencer a lugar nenhum, que o seu país deixou de existir, que percorreram 5.000 quilómetros para voltar a nascer…
O filme começa a carregar-se de contornos sociais, Fury face ao juiz confronta-o e ao fazê-lo enfrenta-se a si próprio. Farrow quer escapar ao acordo do pagamento e Fury confronta-o, o que lhe vai custar caro. Nestas zonas do filme, voltamos aos códigos de film noir e a cidade nocturna reaparece. Fury é espancado e largado num canto. Logo de seguida, Fury deitado na cama delira, Lynn reaparece tipo anjo, emociona-se com a compaixão que ele nega, apela aos bons sentimentos, mas ele não pode ouvir, a jornada do herói ainda não acabou. Falta-lhe enfrentar o monstro.
Tetzlaff figura uma dinâmica de olhar potente, onde por vezes “espreitar” é condição, testando na cena final o lugar das “janelas” que se apresentam na perspectiva de “ver”; no interior de um carro estão prontos a matar (resta saber quem), e ali se reúne um corpo de cena de alto valor dramático que nos coloca no mesmo ponto onde se anuncia a fatalidade. Um filme a rever, que ganha muito num segundo olhar, perdoando-se algumas fragilidades aqui e ali, nas precipitações do argumento e, essencialmente, no escusado discurso mais patriótico.
The Window (O que viram os meus olhos, 1949) parte da história “The Boy Cried Murder”, de Cornell Woolrich, e tem no título original a sua mais límpida concentração, visto a janela ser o décor e veículo dramático por excelência, que serve útil e estilisticamente o filme. A inspiração temática vem da fábula de Esopo, “O Pedro e o Lobo”, e gira à volta de um menino com a mais fértil imaginação que de tanto efabular deixa de ser credível quando mais é preciso. The Window goza duma larga reputação e vêem-se aproximações aos posteriores Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954), de Hitchcock (história também de Woolrich), ou The Night of the Hunter (A sombra do Caçador, 1955), de Charles Laughton. The Window é o filme mais conhecido de Tetzlaff que teve impacto crítico.
A história concentra-se em 2 dias e 2 noites, e tem um veia minimal à volta de um crime visto pelo pequeno Tommy Woodry (interpretado soberbamente por Bobby Driscoll, actor-fétiche da Disney). O tempo do filme também é curto (cerca de 75’), mas parece mais longo pela sensação de angústia que se pode sentir ao longo do périplo agitado e tenso pela qual a criança vai passar. Após o alerta inicial, que enquadra na abertura a fábula de Esopo, passamos para um bairro em Nova Iorque e entramos logo pela janela (prática de movimento de grua bem conhecida de Tetzlaff). “A janela” começa a funcionar como “caminho” para encontrarmos o herói, em cena, deitado no feno. E temos um menino fantasioso que vive os papéis com a intensidade própria do alimento imaginário.
A câmara não o larga e corre atrás dele, pelo sótão, pelas escadas, o terraço, e mais escadas, é um menino veloz que brinca e projecta muito longe uma imaginação sem freios. A penetração no espaço passa a ser um aspecto formal importante para encontrar as personagens, “descobri-las”, e assim também entramos pela janela no apartamento onde a família Woodry janta – conhecemos o pai Ed (Arthur Kennedy) e a mãe Mary (Barbara Hale). As mentiras de Tommy aparecem, um rancho imaginário e uma mudança de casa levam os pais a mais uma reprimenda. A noite vem espreitar pelas janelas, e o padrão das cortinas, a blusa de riscas de Tommy, as sombras a alinharem-se nas paredes, tudo cabe na imagem que desenha, de forma envolvente, um clima noir plasticamente forte e carregado de presságios.
A atmosfera de film noir em Window está-lhe no sangue e avoluma-se à medida que avança o perigo. Está muito calor e Tommy vai dormir para a escada de incêndios (outro elemento de décor de farta exploração e valor simbólico no film noir), e chega o momento crucial em que o rapaz testemunha o crime por entre a fresta da janela. O acaso veio ter com ele e fê-lo “ver” de verdade o impensável, os vizinhos Kellerson a matarem um homem, ele viu e o espectador também vê, único cúmplice e aliado da criança.
De manhã, enquanto a mãe estende a roupa e os padrões (vestido, avental, roupas, cortinas) enfeitam o ambiente, o bairro acordado aparece neo-realisticamente ameno na pobreza, Tommy insiste na sua história de crime. Começa agora a luta pela verdade, que é lógica e fatalmente aceite como natural mentira (o conto de Esopo volta em cheio); não saber a diferença entre sonho e realidade é o selo de Tommy. Os pais não acreditam nele, a polícia não acredita nele, só nós é que acreditamos. O cerco começa a fechar, os vizinhos assassinos alertados tornam-se cada vez mais próximos e perigosos. A mise en scène é trabalhada nesse sentido, os passos dos Kellerson no piso de cima, precisamente sobre o quarto do rapaz, penetram como lanças no espaço do menino inocente; os apartamentos comunicam, a perversão espacial não dá tréguas. A atmosfera carregada de sombras espalha-se pelas paredes, escadas, no espaço todo, e o medo cresce. O suspense está bem activado, o movimento no interior do prédio não pára, a mãe sai, o pai entra e sai, os Kellerson, em alerta máximo, vigiam como feras prontas a atacar a presa. Tommy, punido, fica fechado, sozinho, o pai trabalha de noite, a mãe foi ver um familiar doente. Tommy está encurralado no seu próprio quarto, com a ameaça a avançar cada vez mais real.
Segundo Elsaesser e Hagener, há três aspectos nos quais “a janela e o enquadramento” se juntam e partilham características comuns. No primeiro, os binómios permitem ao espectador um “acesso especial, ocular [1] a um acontecimento específico que se oferece num primeiro tempo à nossa curiosidade visual. Aqui estamos nós naturalmente a fazê-lo na troca ocular, directa, ligada às imagens pelo impacto que causam. O segundo aspecto liga-se ao fenómeno do “acto visual” que permite transformar o ecrã real (bi-dimensional) num espaço imaginário (tri-dimensional), que parece acontecer para além da superfície material do ecrã de projecção. O terceiro aspecto fala da distância, seja real ou metafórica, dos acontecimentos que se desenvolvem no filme em relação ao olhar do espectador – lugar protegido e confortável na sala escura. O espectador está numa posição distante da acção sem ter que intervir ou contactar fisicamente, nem interpelar activa e moralmente o que vê. Os autores definem estas dimensões como, respectivamente, acto ocular-especular, transitivo e desencarnado.
Nesta perspectiva, Tetzlaff faz-nos entrar num jogo, como cúmplices da “realidade visual” que acontece neste filme de “janelas e enquadramentos”, em que simultaneamente entramos e saímos, de forma activa ou distanciada ao mesmo tempo.
A implicação da visão afirma-se nos binómios: “vemos através de uma janela mas olhamos para um enquadramento” [2]. A “verdade” foi vista por Tommy e por nós (vista e olhada). Pela força dramática exercida pelos antagonistas, esta verdade foi neutralizada, é inexpressiva – os maus ganharam território e estão em campo. Uma tesoura, uma almofada, uma carta, uma chave, uma lanterna entram na imagem como peças que se juntam e mobilizam a engrenagem, Tetzlaff dá-lhes visibilidade. A fuga de Tommy torna-se real, consegue escapar-se, galga a noite escura como breu, a luz escassa torna tudo mais terrível, a cidade esvazia-se, ele fica mais pequeno ainda, consegue libertar-se, foge, é de novo apanhado… O tenebroso Joe Kellerson (Paul Stewart, actor esguio, anguloso, temível e bem encaixado no papel), quer terminar radicalmente com a vida do rapaz, ele escapa de novo e a cumplicidade do espectador continua a segui-lo, o medo volta.
É fácil relembrar a perseguição de Robert Mitchum, o terrível pastor Powell, às pobres crianças inocentes pela noite, rio abaixo, e a coragem delas face à malvadez dele, num universo banhado por uma luz expressionista. Se com Laughton o espaço é terrível e mágico, com Tetzlaff é sombrio e mais realista, o que os aproxima é a dimensão noir e a presença, e a luta, da criança face ao adulto.
Tommy esconde-se no prédio em ruínas, o negro é denso, expressionista, enquanto uns rasgos de luz espreitam para ver o rosto amedrontado da criança – a sombra ganha à luz.
O edifício é perigoso e está pronto a desabar, Tetzlaff estica todos os fios da acção e coloca-os em tensão máxima, a queda é iminente para Kellersen. Ângulos de câmara vertiginosos descobrem Tommy pendurado no alto de uma trave, vai gritar por socorro, e as janelas vão abrir-se desta vez acolhedoras.
Window é para ser visto, e como Metz, diz a sua existência, também depende “desse olhar”, há sempre uma troca bilateral no filme que se exibe (ao mesmo tempo exibicionista e secretista), que não se importa de ser objecto visto pelo voyeur que o torna por sua vez sujeito nesta dialéctica. É nesta dialéctica de olhar que fomos também actores, voyeurs, ao lado de Tommy, levados por uma ordem performativa em que a mise en scène e a disposição imagética agiram em pleno.
Ted Tetzlaff finalmente também deixou marca na realização fruto de um trabalho laborioso, enquanto director de fotografia, com toda a certeza, e toda a assimilação feita ao lado de grandes realizadores ao longo dos anos. Para além dos universos mais inscritos no film noir, assinalam-se ainda os filmes de aventuras The White Tower (A Torre Branca, 1950) e Son of Sinbad (O filho de Sinbad, 1955), e o western The Young Land (1959).
Será neste território, nas margens de Hollywood do período clássico, que há ainda material para descobrir e repescar de um cinema por vezes imperfeito, irregular, com pontos altos e fracos, pleno de assimetrias, mas cheio de uma medida estimulante pronta à exploração temática e estética com a liberdade de se produzir num espaço polimórfico e alargado.
[1] Elsaesser e Hagener, Le cinéma et les sens, Chap. I . Cinéma fenêtre, Cinéma cadre, p. 24.
[2] Idem.