Exactamente como nos filmes que realizará mais tarde, em que a rapidez e a brutalidade de uma acção produzem a súbita inversão de uma situação ou de um medir de forças, a vida e a carreira de Budd Boetticher foram marcadas por duas reviravoltas. No México, o futuro cineasta assistiu na sua juventude a uma tourada que o impressiona de tal forma que decidiu tentar ser toureiro. Treinado pelo matador Lorenzo Garza, Boetticher começou uma actividade de novillero, que acabará de forma violenta e definitiva com a gravíssima ferida que sofreu ao defrontar um novillo – cogida-reviravolta da qual se lembrarão as diversas personagens de aleijados e invalidos da sua cinematografia.
Pode dizer-se que foi de certa forma a tourada que lhe abriu as portas do cinema. Os seus conhecimentos tauromáquicos permitiram-lhe participar em diversas produções importantes ligadas de perto ou de longe ao mundillo das corridas de toros – entre os quais na versão realizada em 1941 por Rouben Mamoulian do clássico “hispanisante” e folclórico Blood And Sand (Sangue e Arena, 1941), versão para a qual Boetticher ensinou movimentos de capa a Tyrone Power e concebeu a ardente e tauromáquica sequência de dança entre Anthony Quinn e Rita Hayworth.
Vários fragmentos tauromáquicos aparecem nos westerns e mostram que para Boetticher o mundillo das corridas de toros e o mundo do Wild West devem ser considerados juntamente.
De 1951 a 1972, nos filmes que assinou “Budd Boetticher” (e não “Oscar Boetticher Jr.”, nome que lhe deram os seus pais adoptivos e com o qual firmou as suas primeiras realizações), o cineasta fez três filmes sobre a tauromaquia – Bullfighter And The Lady (Homens na Arena, 1951), parcialmente autobiográfico, The Magnificent Matador (O Magnífico Matador, 1955), ficção com Anthony Quinn e Maureen O’Hara, e o documentário Arruza (1972) sobre o antigo matador mexicano e amigo de Boetticher Carlos Arruza – assim como inúmeros westerns, os mais importantes sendo aqueles pertencendo ao ciclo em que Randolph Scott interpreta a figura central, ciclo habitualmente designado como ciclo “Ranown” [1]: 7 Men From Now (7 Homens Para Matar, 1956), The Tall T (A Marca do Terror, 1957), Decision at Sundown (Entardecer Sangrento, 1957), Buchanan Rides Alone (Têmpera de Herói, 1958), Westbound (Luta sem Tréguas, 1959), Ride Lonesome (O Homem que Luta Só, 1959) e Comanche Station (Emboscada Fatal, 1960).
Vários fragmentos tauromáquicos aparecem nos westerns e mostram que para Boetticher o mundillo das corridas de toros e o mundo do Wild West devem ser considerados juntamente. Um quadro cubista representando uma tourada (eco, perhaps, das obras de Picasso) aparece, por exemplo, num bar atrás das personagens de The Cimarron Kid (O Último Bandoleiro, 1952), os saloons são frequentemente decorados com chifres de touros, Randolph Scott recorre muitas vezes a subterfúgios para enganar os seus adversários (quando finge estar a dormir ou inconsciente) como um toureiro procuraria distrair o seu adversário animal com a sua muleta, as lanças índias plantadas com violência e que laceram o plano em Seminole (Massacre, 1953) ou Comanche Station lembram as lanças dos picadores ou ainda o lenço branco que a figura central de Buchanan Rides Alone leva no bolso os lenços que os aficionados utilizam nas praças de touro para reclamar troféus. De todos os westerns do cineasta, The Tall T concentra o maior número de referências tauromáquicas – o que levaria a pensar que o título signifique talvez secretamente “The Tall Torero”. Não só uma das primeiras sequências mostra um rodeo improvisado, em que o bullride americano dialoga com o bullfight espanhol e mexicano, mas o filme acaba com dois confrontos reminiscentes da tourada. Randolph Scott comporta-se primeiro como toureiro ao utilizar a sua ingeniosidade para manipular aquele a quem chamam “Chink” (em referência certamente às suas origens mexicanas) e obrigá-lo a sair de uma cabana de madeira que se parece com o toril do qual saem os touros para entrar na arena, e comporta-se minutos mais tarde como animal de combate que recusa a sua morte programada, ao matar a personagem interpretada por Richard Boone que avança na sua direcção a cavalo como faria um cavaleiro tauromáquico.
Não é simplesmente por acaso que Buchanan Rides Alone decorre na fronteira entre os Estados Unidos e o México – delimitação entre os dois países materializada fisicamente nos primeiros planos por uma placa de madeira em que aparece escrito “USA/Mexico”. Mais do que qualquer outro cineasta americano, mais até do que Welles, grande aficionado e cujo Touch Of Evil (A Sede do Mal, 1958) passa-se também na zona de contacto entre os dois países, Budd Boetticher construiu uma obra cinematográfica estruturada em torno da fronteira territorial, histórica e genérica entre os Estados Unidos e o México, fronteira a partir da qual se espelham e confrontam duas figuras, o cowboy e o torero, o gunfighter e o bullfighter, dois universos igualmente marcados pela dramaturgia trágica, o western e a tauromaquia, e fronteira à volta da qual dançam os homens e animais encarregados de prolongar e salvaguardar os mitos e as mitologias perdidas.
O espectador percebe que o animal não é literalmente a morte, mas simplesmente um agente ou uma representação da morte, um analogon, ou seja, uma imagem da morte.
Apesar do seu título extremamente cliché, a primeira longa-metragem assinada “Budd Boetticher”, Bullfighter And The Lady, é pensada em grande parte contra a utilização tradicional da tauromaquia nos filmes hollywoodianos – em que como no Blood And Sand de Mamoulian a prática não passa de uma tela de fundo para catalisar a intriga melodramática. O filme inspira-se na juventude do realizador e segue o percurso de um turista americano no México, que após ter assistido a uma tourada do matador ficcional Manolo Estrada tenta lançar-se numa carreira de toureiro. Como o bullfighter de Mamoulian, a figura central apaixonar-se-á por uma “Lady”, mas neste caso é o melodrama que funciona como mero catalisador da narrativa tauromáquica. Considerado como um semi-documentário, Bullfighter And The Lady obedece a um dispositivo singular pois mistura nas sequências de corridas de toros imagens ficcionais e imagens documentais de autênticas touradas filmadas por Boetticher no México – num ballet de raccords e não-raccords, em particular quando um dos toreros aparece nas imagens de arquivo com uma peruca loira para dar a sensação que é o actor principal Robert Stack quem está a torear.
No seu magnífico artigo «Mort tous les après-midis», acerca do filme La Course de taureaux (1951) de Pierre Braunberger, André Bazin faz da questão da visibilidade considerada do ponto de vista ético a questão central da obra tauromáquica de Braunberger. Bazin analisa a obscenidade especificamente cinematográfica consequente da possibilidade de mostrar à imagem a morte de um toureiro, e até de mostrá-la várias vezes. Apesar da sua montagem muito pouco baziniana, Bullfighter And The Lady trabalha o tecido fílmico no sentido de permitir a visibilidade máxima e de evitar ao mesmo tempo a obscenidade. Por um lado, entre a ficção e o documentário que dançam e alternam para tentar recriar touradas da maneira mais autêntica e não falsificada possível, uma imagem permanece fora de campo: a morte do torero ficcional Manolo Estrada. Por outro lado, quando um toro bravo aparece no plano ao princípio do filme, a voz-off explica que “This is Death.” Claro que o espectador percebe que o animal não é literalmente a morte, mas simplesmente um agente ou uma representação da morte, um analogon, ou seja, uma imagem da morte. O que leva a considerar que se para Boetticher, como para La Rochefoucauld, a morte não pode e não deve ser contemplada directamente (a não ser, talvez, por aqueles que praticam a arte da tauromaquia), o espaço da arena em que decorrem as corridas, destinado à contemplação dos aficionados, representa o espaço em que a morte, e com ela as provas de coragem e os triunfos ilustres, podem ser contemplados na sua forma mais potente e brutal, na forma mais pura a que um espectador de cinema pode pretender.
O cinema de Boetticher nasce da identificação de um espaço de máxima visibilidade onde a morte é figurada, a coragem é provada e onde as contas entre adversários são ajustadas – um espaço a partir do qual se define a potência do próprio cinema. A maioria dos filmes do realizador apoia-se na vontade de encontar ou reencontrar esse território de figuração e de visibilidade, mas que por vezes parece afastar-se ou parece difícil de encontrar. Versão empobrecida de Bullfighter And The Lady, The Magnificent Matador demora muito tempo e sacrifica muito as peripécias melodramáticas antes de oferecer na sequência final a pista da Plaza de Toros Monumental da Cidade do México à figura central. Do western pro-índio Seminole a The Man From Alamo (Invasores, 1953), o mesmo espaço de um forte militar, Fort King no primeiro caso, Fort Alamo no segundo, passa de território de revelação do sentido da Justiça e de honra da personagem interpretada por Rock Hudson ao cenário de um massacre sangrento e desprezível – não é por nada que o massacre decorrerá fora de campo.
As sequências de chuva nocturna em que a esperança parece destinada a desaparecer acabam sistematicamente por serem compensadas por uma cena final em pleno sol de demonstração do valor da personagem principal.
Neste aspecto, são principalmente as obras de Boetticher com Randolph Scott que assentam no reencontro com um espaço primitivo de visibilidade. A maioria dos westerns “Ranown” foi filmada na Califórnia, na zona de Lone Pine e das Alabama Hills, com as suas rochas arredondadas semelhantes aos contornos de uma praça de touros. Equivalente na carreira de Boetticher a Monument Valley na carreira de Ford, a arena natural de Lone Pine garante um face off tauromáquico e resplandescente aos westerns cujo desfecho acolhe (7 Men From Now, The Tall T, Comanche Station). Por oposição, os westerns que escolhem um cenário urbano encontram-se privados desse tipo de visibilidade e condenados a desfechos imperfeitos: Decision at Sundown acaba com um duelo interrompido pela intervenção de uma figura feminina, que alveja o adversário de Scott para lhe salvar a vida, ou Buchanan Rides Alone com um grotesco tiroteio em que, após terem eliminado praticamente uma família inteira de malfeitores, as figuras centrais fazem as pazes e decretam um statu quo ponderado em termos quase económicos.
Uma chuva diluviana cai nos momentos mais dramáticos de diversos filmes de Boetticher, a maioria do tempo em sequências nocturnas: após o orgulho e a inconsciência da personagem principal central serem responsáveis da morte na arena de Manolo Estrada, o toureiro que o ajudou e formou em Bullfighter And The Lady; quando um vil traidor entra no forte enquanto todos dormem para assassinar em segredo o corajoso chefe índio Osceola de Seminole; quando tudo indica que a carreira da figura central foi definitivamente destruída em The Magnificent Matador ou ainda durante a noite de 7 Men From Now, em que se percebe que aquele que interpreta Lee Marvin fará tudo para se opor a Randolph Scott. As sequências de chuva nocturna em que a esperança parece destinada a desaparecer acabam sistematicamente por serem compensadas por uma cena final em pleno sol de demonstração do valor à personagem principal, cena que decorre ou directamente no espaço da plaza de toros ou nos outros espaços de equivalente visibilidade (Fort King em Seminole, Lone Pine em 7 Men From Now).
Muitos filmes do cineasta obedecem assim a uma dicotomia sol/chuva, que inclui e retrabalha essa dicotomia tauromáquica “sol y sombra” e remete implicitamente para uma dicotomia entre coragem e cobardia. Mas a originalidade e a força das obras de Boetticher vêm do facto de recusar o maniqueísmo da dicotomia que instalam – pensando a complementaridade entre os conceitos. Não só os cowboys e toureiros dos seus filmes confessam sempre o medo que sentem antes de um combate, como um passage obligé que produz um contraponto ao falso heroísmo cliché de certas obras hollywoodianas, mas a filmografia de Boetticher oferece uma rica e complexa galeria de cobardes. Ao lado de figuras tradicionais, que nunca conseguirão manifestar qualquer sentido de honra (o marido de Tall T, que abandona a mulher e tenta vendê-la para sobreviver, Billy John em Ride Lonsome, cujas vítimas são encontradas shot in the back ou o seu irmão Frank que enforcou a esposa de Randolph Scott), várias personagens que pareciam fracas revelam-se capazes de coragem (como o condutor de um covered wagon que, após ter colaborado com o gang de vilões, desafia o grupo e acaba por morrer em Seven Men From Now) ou aceitam serem consideradas como cobardes para poderem tentar salvar os seus familiares.
Nas obras do cineasta, a coragem não é medida pelos vivos, mas sim pelos fantasmas que assombram e percorrem as plazas de toros mexicanas e o Oeste americano.
É sobretudo o caso das figuras centrais de The Man From Alamo e The Magnificent Matador. De acordo com uma decisão tomada entre vários soldados, o primeiro abandona o forte Alamo antes do massacre final para tentar cuidar da sua família e das famílias dos outros soldados – condenado a ser visto unicamente como “the man from the Alamo”, como o último sobrevivente do forte, ou seja, aquele que supostamente teve medo e não ficou para lutar ao lado dos seus companheiros. Em consequência de um sonho em que viu um sinal funesto, sinal que interpretou como a previsão da morte do jovem toureiro que o iria acompanhar na sua próxima tourada, o segundo foge da Cidade do México, sacrificando a sua reputação para salvar aquele que se revelará ser o seu próprio filho. Questões semelhantes aparecem em Comanche Station, durante o qual os cowboys não param de perguntar à figura feminina, que foi resgatada aos índios na sequência inicial, por que é que o marido dela não foi ele próprio à sua procura e prefere oferecer uma recompensa a quem a encontre – suspeita de cobardia que só é dissipada nos momentos finais quando Randolph Scott e o espectador descobrem que o marido é cego.
O território cinematográfico de Budd Boetticher é um território de memento mori em que toureiros e cowboys agem para honrar a memória dos desaparecidos – Manolo Estrada em Bullfighter And The Lady, e com ele o famoso Manolete que aparece representado num quadro integrado a um altar, os defuntos de Fort Alamo em The Man From The Alamo, ou uma esposa, elemento central do ciclo “Ranown”, em que a personagem interpretada por Randolph Scott procura quase sempre vingar a morte da sua mulher. Nas obras do cineasta, a coragem não é medida pelos vivos, que muitas vezes enganam-se nos critérios que aplicam e sofrem de uma dramática estreiteza de espírito, mas sim pelos fantasmas que assombram e percorrem as plazas de toros mexicanas e o Oeste americano.
Como mostra o último filme do cineasta, Arruza, a tauromaquia parece interessar Boetticher sobretudo pela sua repetitividade e pela sua abstracção formal. Dos filmes sobre a tourada aos westerns, não só as mesmas cores circulam – o encarnado do sangue, o amarelo da areia, ou ainda o verde, cor das árvores westernianas mas também da maldição entrevista pela figura central em The Magnificent Matador e cor que levam vestidas inúmeras personagens de Boetticher – mas os dois tipos de filmes obedecem a um trabalho formal semelhante. Ponto de chegada e cristalização de toda a carreira do cineasta, o ciclo “Ranown” obedece a uma dupla lógica de redução crescente do western aos seus elementos mais icónicos e de variações em série a partir desses elementos. Todas de uma duração similar, as obras do ciclo aceitam e reivindicam uma certa repetitividade e tendem progressivamente a oferecer uma pura abstracção de formas e cores em movimento – os dois últimos, Ride Lonesome e Comanche Station, não são senão réplicas em série do primeiro, 7 Men From Here, cujos motivos, figuras e elementos cromáticos encontram novos quadros e novas disposições.
É à luz do sobrero tauromáquico que a filmografia de Boeticcher deve ser modelada, na sua utilização de estruturas semelhantes e abstractas de um filme a outro.
Em paralelo, uma obsessão pelo número sete atravessa a filmografia de Boetticher. É defrontando o sétimo touro da tarde que a personagem principal de Bullfighter And The Lady honra a memória de Manolo Estrada no fim do filme. O ciclo com Randolph Scott conta sete obras, começa com um filme chamado 7 Men From Now e a personagem de Chink encontra-se duplamente associada em Tall T ao número sete. Quando aquele que interpreta Scott pergunta-lhe quantos homens matou naquele dia, Chink responde que matou sete e é um estratagema consistindo em fazer acreditar, com a ajuda da figura feminina, que a personagem principal utilizou as seis balas do seu revólver que permite matar o vilão com uma sétima bala – é exactamente o mesmo estratagema que é usado na penúltima sequência de Comanche Station.
Uma corrida de toros conta habitualmente seis toros. O sétimo touro é aquele a quem chamam o “sobrero” e é pedido pelo torero quando não está satisfeito com a sua prestação. O sétimo touro representa, assim, o animal que vai perturbar o funcionamento regulado do espéctáculo tauromáquico, abrindo-o ao excepcional, ao imprevisto, ou seja, trata-se de um elemento que ao mesmo tempo pertence à mecânica da tourada e excede essa mecânica. É à luz do sobrero tauromáquico que a filmografia de Boeticcher deve ser modelada, na sua utilização de estruturas semelhantes e abstractas de um filme a outro, mas pelo prazer de perturbar e exceder o mecanismo que constrói, graças a essas magníficas sequências finais em que os revólveres ou as muletas se calam e em que só fala a emoção. Surge um diálogo em forma de promessa de amor (7 Men From Now), um beijo fulgente (Bullfighter And The Lady), um gesto de amizade à volta de uma árvore a arder (Ride Lonesome), a frágil imagem de uma família que ainda acredita na felicidade (Comanche Station).
Com esses fragmentos finais percebe-se a humilde e extraordinária força plástica e emocional do cinema de Budd Boetticher.
Guillaume Bourgois
Professor de Estudos Fílmicos na Université Grenoble Alpe
[1] “Ranown” é o nome da pequena companhia criada por Harry Joe Brown e Randolph Scott que produziu a maioria dos westerns do ciclo.