Foi um mês com alguns nomes de relativo peso no panorama do cinema europeu. Os walshianos olham para os mais recentes filmes de Laurent Cantet, Miguel Gonçalves Mendes, François Ozon e Michel Hazanavicius. O divisivo último filme de Lucrecia Martel é revisitado – e redimido – pela pena de João Araújo, em modo de resposta ao céptico Ricardo Vieira Lisboa.
L’atelier (O Workshop, 2017) de Laurent Cantet
Parece que Cantet ficou retido no sucesso de Entre les murs (A Turma, 2008), o filme que lhe valeu uma histórica – a primeira de nacionalidade francesa desde Sous le soleil de Satan (Sob o Sol de Satã, 1987) – Palma de Ouro em Cannes. De novo, Cantet fala sobre a relação entre professor e aluno. De novo, a sua câmara perde tempo a deslindar uma certa psicologia de grupo. Não é a sala de aula de um liceu francês, mas um workshop de escrita que, na cidade de La Ciotat, reúne alunos de diferentes proveniências, marcados por um passado escolar algo errático. A professora Olivia Dejazet (interpretação sem brilho, e desorientada, de Marina Fois) é uma escritora célebre, num momento de reavaliação da sua obra, que transforma este projecto pedagógico numa oportunidade: a de se relacionar com o mundo e a de transmitir e receber conhecimentos úteis para o seu trabalho e para o trabalho do grupo. É uma win-win situation para esta professora. Os alunos, uns mais entusiasmados do que outros, têm de escrever um romance em conjunto. Mas a turma é um microcosmos da sociedade francesa, em toda a sua diversidade multicultural, e em todas as tensões que a acompanham. Como principal elemento desestabilizador, destaca-se de entre os alunos Antoine, mais inteligente que todos os outros, mas um adepto de ideologias de extrema-direita.
O filme transforma o exercício pedagógico numa tentativa de comentário social mais alargado, que abrange o mundo das redes sociais e a ameaça “viral” da extrema-direita – como sabemos, uma sombra que paira, hoje, sobre toda a sociedade francesa. É feliz na intenção de atacar assuntos tão quentes – nunca Cantet foi tão óbvio nos seus propósitos. Mas o cinema, como dizia Nicholas Ray, não filma intenções. E de acções, isto é, de acção dramática, L’atelier tem pouco que se resgate, sem ser a presença sibilina, de estranho magnetismo, composta por um actor estreante, Matthieu Lucci, na pele do aluno “problemático” Antoine. Sente-se também aqui, neste filme escrito por Laurent Cantet na companhia de Robin Campillo [o realizador do impressionante 120 battements par minute (120 Batimentos por Minuto, 2017)], uma vontade, a meu ver soçobrada, de produzir uma intriga erótica, com uma certa densidade corporal, “disputada” entre a escritora púdica e o aluno impertinente. Aqui, nesta dinâmica desenrolada entre aluno e professora, L’altelier falha com certo estrondo mercê da falta de química e da ausência de um rumo dramático.
Luís Mendonça
O Labirinto da Saudade (2018) de Miguel Gonçalves Mendes
Miguel Gonçalves Mendes estava habituado ao tempo, à duração. Autografia (2004), retrato íntimo de Mário Cesariny, resultara de um envolvimento de pelo menos três anos, José e Pilar (2010), sobre Saramago e sua esposa, tomara outros quatro anos de rodagem. Agora O Labirinto da Saudade (2018) foi feito em cerca de duas semanas. Este câmbio resulta de uma série de condicionantes que se prendem com a natureza da encomenda que impunha uma certa urgência na construção deste tributo – em vida – ao ensaísta Eduardo Lourenço. Assim, o convite a Gonçalves Mendes pressupunha já uma nota de intenções: o realizador, habituado a filmar artistas em fim de vida – Cesariny e Saramago morreriam pouco antes, ou aquando da estreia dos respectivos documentários –, seria o retratista ideal de um filósofo que nunca antes conhecera uma dimensão pública e íntima que o inscrevesse no universo mitológico dos grandes nomes da portugalidade. Mas a Gonçalves Mendes faltava o tempo da convivência – como tivera nos outros filmes – e, desse modo, optou pela solução do dispositivo ficcional. Isto é, se em Autografia e José e Pilar já se entreviam momentos de encenação, onde os artistas compunham para a câmara a sua própria persona mítica, qual performance de si mesmos, em O Labirinto isso literaliza-se pela incursão desabrida num onirismo de pacotilha. Tudo se “passa” no dia do aniversário de Eduardo Lourenço e este, aborrecido com os festejos, adormece. O labirinto do título (que é o título do livro homónimo de Lourenço, que o filme de certo modo procura adaptar) remete, também, para o “labirinto interior” do autor, para o seu inconsciente – ideia sumariada pela escultura com a forma do seu perfil, composta por múltiplas gavetas dos mais diversos formatos que surge a certo momento do filme e que ilustra o respectivo cartaz.
O Labirinto é portanto um filme com um objectivo duplo: percorrer um dos títulos mais marcantes da obra de Lourenço e, simultaneamente, percorrer a vida do próprio ensaísta. O que resulta é um filme de sketchs – apetece dizer “à Monty Python”, não só, mas principalmente, pela a animação de Abi Feijó fazer lembrar as de Terry Guilliam – que se fragmenta numa correnteza de encontros entre Lourenço e uma série de figuras públicas. Cada qual a interpretar-se a si e a uma caricatura estereotipada: Pilar del Río a fazer da “espanhola tentadora”, Gregório Duvivier a fazer do “brasileiro relaxado”, Gonçalo M. Tavares a fazer de “português sorumbático”, Ricardo Araújo Pereira a fazer de “António de Oliveira Salazar esganiçado”, Álvaro Siza Vieira a fazer de “barman da eternidade”, etc. E nessa dupla função de personagens e figuras públicas, encenam-se pequenas entrevistas de vida ao filósofo – o que dizem os seus olhos, Senhor Professor? Uma sucessão de cameos, aliados a um gosto pelo floreado kitsch que incomoda na exacta medida em que desconsidera o próprio Lourenço e esquece a obra que adapta. A debilidade física de Lourenço – que pedia uma protecção e uma deferência especiais – aliada a uma desejo pelo excesso barroco dos meios de produção (filmes de época, animação, ficção-científica, filme histórico, com drones e nevoeiro CGI) fazem do filme um chocante exercício de estilo e uma ode ao mau gosto. Compreendo o desejo de tornar “acessível” – ou melhor, televisivo – o pensamento do filósofo, e as motivações pedagógicas do título, mas O Labirinto segue a via didáctica para acabar atolado num espectáculo confrangedoramente desconexo – e vagamente mórbido, como tem sido sempre o cinema de Gonçalves Mendes, aqui mais do que nunca… – que não faz jus nem ao homem nem à sua obra (que eram, no fundo, os requisitos da encomenda e os serviços mínimos de qualquer homenagem).
Ricardo Vieira Lisboa
Frantz (2016) de François Ozon
O que surpreende mais em Frantz é a sua afinadíssima combinação de melodrama com o thriller clássicos, seguindo o receituário dos mestres mais antigos e da sua (re)interpretação mais moderna. É verdade que o filme se inspira levemente num filme pouco visto de Lubitsch, mas não é a Lubitsch que Ozon vai buscar as suas referências. Diria que é algures entre John M. Stahl e Fassbinder, entre Hitchcock e Brian De Palma, que Frantz ganha corpo. Na realidade, ganha corpos. Dois, para ser mais exacto. A divisão, estrutural, é nítida: há um antes e depois da partida do misterioso Adrien Rivoire (notável presença de Pierre Niney). A partir dessa partida o filme refaz-se por dentro, alterando estrategicamente a posição das personagens entre si, insinuando mesmo um precipício dramático, tão vertiginoso quanto pungente, que faz gritar de susto – com medo do que se vai encontrar – ou que faz soltar uma lágrima – a intensidade melodramática nunca cai, é ela que sustém e eleva as personagens para lá do divertido jogo narrativo.
Portanto, Ozon está em território familiar. Na realidade, diria que Frantz reúne o melhor dos dois Ozons: o do olhar profundo sobre a psique feminina e aquele que dá uma atenção especial à composição de paisagens sentimentais – o seu melhor filme continua a ser Sous le sable (Sob a Areia, 2000)? -, bem como o que se caracteriza pelo divertimento lúdico que municia a intriga à antiga, repleta de momentos de espanto e orgulhosa das suas múltiplas reviravoltas – o anterior, e muito divertido e de palmaniano, Une nouvelle amie (Uma Nova Amiga, 2014) ou, para citar outro título com a magnífica Charlotte Rampling para lá de Sous le sable, Swimming Pool (2003). Frantz será o filme da maturidade de Ozon? Não, nada disso. Não queremos que Ozon ganhe essa tão desejada maturidade fílmica. O seu cinema vive mais intensamente em nós quando há jogo, um certo prazer lúdico quase infantil, uma vontade pugnaz de provocar o espectador. Portanto, deixe-se comover. Portanto, deixe-se espantar. Portanto, deixe-se ludibriar. Entre no jogo deste balancé paraclássico de emoções.
Luís Mendonça
Le Redoutable (Godard o Temível, 2017) de Michel Hazanavicius
“Godard é um produto de consumo, sintoma do sistema dominante como o Mickey Mouse ou a Coca-Cola”, vocifera o empolgado jovem aluno interrompendo o discurso a Jean-Luc, num fórum improvisado numa universidade francesa barricada pelas revoltas do Maio de 68. É um Godard saído da desilusão provocada pela incompreensão geral da crítica, do público e dos próprios maoistas face a La chinoise (O Maoísta, 1967) que nos é retratado por Hazanavicius, na sua entrega às agitações do mais libertador mês de Maio, pregnante de todos os possíveis. Comprometido com os objectivos da revolução cultural chinesa, torna-se no maior crítico de si próprio e das formas com que ainda há pouco reescrevia o cinema europeu mas que agora já não servem ao internacionalismo da luta política. É com um olhar satírico que Le Redoutable (Godard, o Temível, 2017) cruza contradições para efeitos cómicos: Godard é um burguês que não o quer ser, à procura de modelos colectivos de participação mas demasiado agarrado à persona em que se apresenta para que possa chegar a alinhar-se. E se, polarizada por antagonismos internos, a margem Cahiers-Cinemateca não deixa de adicionar voz viva às promessas reorganizadoras de Maio, é classe a abater pelas novíssimas gerações que, mais jovens ainda, inauguram e incendeiam todos e quaisquer passados.
Não se poupando a auto-críticas, Godard diagnostica um complô alimentado entre o público e os cineastas franceses que dá preferência aos filmes românticos que impedem a emergência das formas revolucionárias e, por isso, renega as insígnias que o popularizaram, entre as quais À bout de souffle (O Acossado, 1960), Le mépris (O Desprezo, 1963) ou Masculin féminin (Masculino Feminino, 1966). Apesar das sucessivas reformulações desta declaração de intentos que, a cada momento, reconceptualiza a ideia de cinema enquanto missão face às urgências do presente, o protagonista de Le Redoutable não passa ao lado de ser um Godard-Garrel: é ele próprio quem, em relance meta-crítico, sai de si para dizer: “Godard é apenas um personagem e eu sou apenas um actor a interpretar Godard – e um actor que, por sinal, nem é assim tão bom”. Dentro da mesma pele, Jean-Luc disputa com Louis uma descaracterização impossível porque – emparelhado com Stacy Martin em pele de Wiazemsky de 19 anos – empresta o corpo inteiro a esta meditação filmada à la Nouvelle Vague, pulsante das sensualidades que só os corpos libertos pelos anos 60 irradiaram. Se Godard Mon Amour é o título internacional de um filme que às nossas salas chega com o nome de Godard, o Temível, a intenção laudatória de Hazanavicius defronte do inconfundível mestre europeu do cinema, investe nos sublinhados: a cada frame, o manifesto estilo ultra-Godard enfatiza a qualidade iconográfica do seu cinema, em suma, apresentando-o como “gesto crítico com branding”. Se o capitalismo se ostenta em ininterrupta explosão de signos, a maquinação interventiva de Godard dinamita por dentro a engrenagem massificada. E o que Hazanavicius constrói, num filme sobre JLG feito à JLG, é uma homenagem em forma de placa de direcção: hoje, reinvente-se o cinema recordando as formas maiores da sua inventividade. E porque não é possível rever Godard em demasia recordamos, pelas suas próprias palavras, a mesma juventude com que, em 2018 e com 87 anos, se recria: “A traço geral, eu estou sempre a dizer: façamos o que nunca foi feito.”
Sabrina D. Marques
Zama (2017) de Lucrecia Martel
Esta adaptação de uma drama histórico, de um filme de época, pode parecer estranha quando consideramos a obra de Lucrecia Martel, e a forma como uma inquietude silenciosa e um tédio existencialista parecem resultar de um olhar sobre a contemporaneidade, sobre os tempos modernos. Porém, a verdade é que esses sentimentos, que assolam de modo transversal as personagens dos seus filmes anteriores, encontram nesta colónia desoladora um cenário perfeito para uma ampliação do seu efeito, e ao mesmo tempo, afirmar que foi sempre assim. Mas não é só a localização temporal que mudou, no primeiro filme de Martel em quase dez anos. Pela primeira vez, a claustrofobia emocional manifesta-se agora de forma mais acentuada, por oposição a uma sugestão subtil em obras anteriores como La Ciénaga (O Pântano, 2001) ou La mujer sin cabeza (A Mulher sem Cabeça, 2008): atente-se na recorrente repetição de frases que ecoam como um alarme para o estado mental do protagonista e até uma desorientação física evidente. Outra novidade é a forma como Martel recorre ao humor, mesmo que negro, derivado de uma desventura de contornos kafkianos a que essa personagem é sujeita, como que rendida ao absurdo da vida.
O filme segue a história de Don Diego de Zama, corregedor com importante papel na hierarquia da colónia, mas é um poder vazio, que não é respeitado por ninguém, nem sequer pelo seu assistente. Zama começa mesmo o filme a ser perseguido por uma mulher, ou seja, até na suas fantasias acaba humilhado, e no resto do filme assemelha-se a uma espécie de Dom Quixote, um justiceiro à procura de alguma recompensa, que lhe continua a escapar. Cansado do calor, das condições de vida, da doença à sua volta e da forma como é tratado, Zama pede para ser transferido. Para isso depende de uma carta de recomendação, que depende de um relatório, que depende de um livro, que afinal é apenas uma primeira carta de duas – uma encruzilhada sem fim adequada ao fim do mundo, que parece ter apenas o propósito de esvaziar a esperança de Zama. Sobre o filme, o Ricardo Vieira Lisboa escreveu que “Mas talvez o melhor de Zama se prenda com o desprendimento do seu tomo final, quando o filme se esquece (ou deixa de dar tanta importância) ao pensamento da história e se afunda na decadência nauseabunda de um colono caído em desgraça. (…) Pena que Zama só consiga isso a espaços, largos”. Esta “falha” que o Ricardo sublinha é precisamente para mim o maior encanto do filme, à medida que caminha para o fim: é a resignação da leitura histórica perante a impossibilidade de uma conclusão, é a rendição a partir de certo momento a uma não-resolução do marasmo numa espécie de teimosia assumida, como se a desgraça fosse inescapável, como se aquele estado de espírito fosse afinal intemporal.
João Araújo