Monta Bell (1891-1958) não será certamente dos nomes mais ignorados de entre os esquecidos de Hollywood. Desde os anos 1970 que retrospectivas lhe têm sido dedicadas, incluindo uma em 2009 na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. No entanto, é inegável que não é tão conhecido como Erich von Stroheim, Ernst Lubitsch ou Chaplin, com quem é por vezes comparado. Foi, aliás, junto a Chaplin que Bell se estreou no mundo do cinema, com pequenos papéis como actor, tendo sido igualmente montador e consultor de A Woman of Paris (1923). Um ano depois, começou a realizar para a Metro-Goldwyn Mayer, com a qual viria a fazer boa parte dos seus filmes. Também produziu e escreveu argumentos, e trabalhou depois para a Paramount e outras produtoras. Entre os filmes de Monta Bell descortinam-se interessantes retratos que desafiam hierarquias e preconceitos, sobretudo de género, mas também de classe e outros.
Lady of the Night (A Ave Nocturna, 1925) é o mais antigo filme de Monta Bell que sobreviveu até à actualidade, e será talvez a sua obra-prima. Foi um dos vários filmes que rodou com Norma Shearer, com quem teve uma relação amorosa, actriz que tem aqui não um, mas dois papéis: Molly e Florence. O retrato de desigualdade social está no centro do filme e dá-lhe o seu esqueleto desde as sequências de abertura. O contraste é primeiro dado pelo pai preso de Molly e o juiz que o condena, o pai de Florence.
Anos depois, as diferenças persistem nas jovens mulheres, quase sempre apresentadas através de uma montagem alternada que enfatiza o paralelismo entre ambas: Florence graduando-se na “Girls’ Select School” e Molly na “Girls’ Reform School”; Florence passando a noite num baile de alta sociedade e Molly num saloon de “má vida”.
O que unirá as duas mulheres será o homem que ambas ajudam a construir: Dave Page (Malcolm McGregor). Molly abre-lhe as portas do mundo da respeitabilidade, convencendo-o a vender a sua invenção de abrir cofres a banqueiros em vez de a gangsters. Florence é o seu passaporte para a ascensão social. O realizador não esconde de que lado está – como evidencia o intertítulo explicando que Dave se vendeu à família de Florence da mesma forma que vendeu a sua invenção.
Molly, expressivamente caracterizada, rouba a atenção. Está num dos planos mais extraordinários do filme quando, ao sair do reformatório e voltar a casa, vê o rosto distorcido, reflectido na janela de um carro funerário (imagem poderosa da fatalidade do seu destino). É dela também a cena mais icónica, a de pôr a mesa para o jantar. Aí, uma nesga da sua porta rasgada ilumina a foto de uma revista com instruções de como servir o jantar elegante que tanto se esforça por oferecer a Dave, feixe de luz que trai a sua pobreza e a dificuldade de a superar. Igualmente, na sequência posterior da oração, embora possa parecer que ambas são retratadas da mesma forma, temos Florence, distante no seu quarto principesco, e vemos Molly surgir logo perto e mais humanizada, com lágrimas pelo rosto, num daqueles planos que só o cinema mudo soube dar.
Ambas podem surgir ao mesmo nível na cena do carro (em que Joan Crawford dobrou Shearer), mas Lady of the Night tem no centro o sacrifício de Molly, que esconde o amor por Dave e abdica do sonho, abrindo caminho a Florence. Mas não é como vítima rejeitada que Monta Bell a escolhe mostrar, mas como alguém que sabe reinventar-se, acabando por conformar-se aos avanços de Chunky (George K. Arthur), o seu algo patético admirador, e imaginar um futuro “com gargalhadas” ao seu lado.
Um ano depois de Lady of the Night, Monta Bell filmou outra das suas obras mais conhecidas hoje em dia, The Torrent (A Torrente, 1926). A razão da celebridade do filme tem menos a ver com Monta Bell e mais com a protagonista feminina; nada mais, nada menos que Greta Garbo, no seu primeiro papel em Hollywood. Curiosamente, Garbo foi uma segunda escolha, em substituição da actriz Alma Rubens.
Saímos da grande metrópole que é ambiente por excelência dos filmes de Monta Bell e partimos para uma Espanha “pitoresca”. Novamente, a desigualdade social serve de pano de fundo à trama. Leonora (Garbo) é filha dos caseiros pobres e está apaixonada por Don Rafael Brull (Ricardo Cortez), o filho da abastada Doña Bernarda (Martha Mattox) que expulsa a família de Leonora da sua quinta. No seu primeiro encontro no ecrã, é ela quem tem de subir um muro para ir ter com ele. Mas as posições inverter-se-ão.
Leonora parte para Paris e reencarna em La Brunna, diva da canção e objecto de admiração e desejo. Quando reencontra Rafael, que cumpriu a vontade familiar de se tornar deputado, surge confiante e provocadora, a vulnerabilidade da sua posição já não explorável. Numa noite de tempestade – espantosas cenas de chuva, trovões e cheias –, Rafael vai para a “salvar”. Mas encontra-a bastante relaxada e segura de si (sugestivamente, deitada na cama). Leonora mostra-lhe os presentes que outros homens lhe deram, como que para confirmar sua posição superior. E no beijo da sua efémera noite perfeita, é ela quem surge por cima.
Os amantes separam-se e reencontram-se várias vezes ao longo do filme, mas sempre Rafael se prova demasiado fraco para desafiar a vontade e os preconceitos da mãe, Doña Bernarda. Por ela abdica de escolher o próprio caminho. Casa com quem a mãe decidiu e deixa partir Leonora, ficando sempre incompleto. No final é envelhecido e frustrado que surge – perante ela e o espectador –, enquanto o rosto esfíngico de Garbo, a inalcançável, enche o plano final. Se Molly tivera o consolo do companheirismo de gargalhadas, Leonora terá o dos aplausos.
É um momento que pode passar despercebido, mas que sugere um cosmopolitismo escondido noutras obras, e um desafio a outras hierarquias.
Particularmente notável em The Torrent são as cenas musicais, cantos que parecem ouvir-se, apesar de o filme ser mudo. Numa cena crucial, um cantor negro faz La Brunna decidir voltar a Espanha enquanto o ouve entoar “I want to go home”. Comovida, ela levanta-se e vai até ele para expressar a sua admiração, oferecendo-lhe uma das suas jóias, dizendo-lhe que ele já “é um artista” e o que lhe dá poderá ajudá-lo a ser “ainda maior”. A cena pode ser lida de forma mais crítica, mas também pode ser vista como um momento de encontro entre dois seres do espectáculo que por momentos encontraram um vocabulário comum apesar de tudo o que, à época, os poderia separar. Aliás, depressa o acompanhante de La Brunna a vai buscar ao palco e lembrar-lhe a figura que está a fazer, mas ela não se importa com a crítica. É um momento que pode passar despercebido, mas que novamente sugere um cosmopolitismo escondido noutras obras, e um desafio a outras hierarquias. Paris de entre-guerras foi também uma cidade de jazz e de encontros multiculturais, e o filme de Monta Bell está à vontade com isso, numa época em que Hollywood era tão marcada por preconceitos racistas.
A vida artística da personagem de La Brunna está também em sintonia com outros títulos da filmografia de Monta Bell passados em ambientes do espectáculo, como Pretty Ladies (1925) ou Upstage (1926), porventura inspirados na sua própria experiência do sector, que se revelaria tão dramática como um filme de ficção.
Monta Bell é normalmente visto como um cineasta típico do período pré-Código, isto é, da aplicação, em 1934, do rígido código de censura (o chamado “código Hays”) que viria a limitar a representação de uma série de coisas no cinema americano, desde alusões a sexo e a drogas, passando por retratos de emancipação feminina, homossexualidade e nudez. É também um realizador que, embora emergindo no mudo, tem alguns dos mais interessantes filmes de transição dos primeiros tempos do sonoro.
A complexidade das relações de género, que tem sido reconhecida como imagem de marca de Monta Bell.
Young Man of Manhattan (1930) é um exemplo paradigmático desse período de transição. Por um lado, são evidentes os diálogos “parados” típicos das limitações técnicas de captação de som da época. É certo que há um esforço por as contornar, através do uso hábil de elementos de modernidade citadina, como telefones (incluindo um em forma de homem!), máquinas de escrever, e até um taxímetro. Mas é através de outras cenas, onde a imagem continua soberana e que poderiam facilmente ser de um filme mudo, que o filme irradia dinamismo. Isso é particularmente visível nas cenas de desporto, de que há várias no filme. A abrir o filme está precisamente uma delas, uma partida de boxe interrompida por chuva que leva à conversa, no meio na multidão, entre os dois protagonistas, ambos jornalistas desportivos, que ali se conhecem. É uma sequência extremamente atmosférica, com ecos de trabalhos anteriores de Bell, de que a tempestade de The Torrent é talvez o mais icónico.
A complexidade das relações de género, que tem sido reconhecida como imagem de marca de Monta Bell, tem aqui um dos seus melhores exemplos. A trama em torno do romance dos protagonistas coloca em evidência o peso das estruturas patriarcais e o típico medo masculino de mulheres fortes. Claudette Colbert dá vida a Ann Vaughn, uma jornalista mais sénior e bem sucedida do que Toby McLean (Norman Foster), o novato com quem se irá casar pouco depois de o conhecer. A diferença profissional entre ambos é realçada em várias cenas. Por exemplo, Ann tecla imparavelmente na sua máquina de escrever enquanto Toby parece como que bloqueado [algo que seria também sugerido em Up for Murder (1931), por exemplo].
As expectativas de que uma mulher casada deve confinar-se ao serviço doméstico, que Ann está longe de cumprir, começam a afectar a relação conjugal. Toby quer que ela deixe de ser a newspaper girl para ser “apenas a esposa”, e afoga as mágoas em álcool e nas atenções de uma jovem tonta (Ginger Rogers em inícios de carreira). Ann, mais talentosa e profissionalmente mais reconhecida do que ele (inclusive em termos salariais), segue o seu caminho, e até o expulsa de casa. Isto até à reviravolta crucial do filme, em que, por engano, ingere uma bebida contrafeita que ele comprara, o que a deixa cega. Só com Ann incapacitada e dependente terá Toby o caminho livre para emergir profissionalmente e assumir o papel de “ganha-pão” esperado pela sociedade. Embora Ann recupere a visão no final, a opção narrativa que permite o happy ending – a destruição (ainda que temporária) da mulher emancipada – é bastante amarga. Monta Bell testa bem os preconceitos dos espectadores e seria interessante analisar quais as leituras que diferentes audiências fazem do filme, pois tanto se presta a interpretações feministas como a visões mais conservadoras.
Este retrato conjugal tanto se presta a interpretações feministas como a visões mais conservadoras.
Em Young Man of Manhattan encontramos também uma opção estilística que vemos noutros filmes de Monta Bell e que os situam nessa transição entre o mudo e o sonoro: o uso de planos de mensagens que funcionam como subtis intertítulos. Isso é já observável nas suas películas dos anos 1920, mas continua durante nos seus filmes falados. Telegramas, bilhetinhos, jornais, cartazes, páginas dactilografadas, e outros fornecem informação em momentos chave. É particularmente interessante é o uso destes dispositivos para fornecer traduções. Isso está patente no disco de La Brunna em The Torrent, que vemos nas versões espanhola e, logo a seguir, na inglesa, e nos cartazes a pedir recompensa em China’s Little Devils (1945), que surgem nas versões chinesa e inglesa.
Por vezes, as referências entre os períodos mudo e sonoro do cinema de Monta Bell passaram pela auto-citação. Up for Murder é uma versão sonora idêntica ao precedente Man, Woman and Sin (1927). Estamos de novo no mundo do jornalismo – profissão que irradia modernidade urbana – e de novo numa relação desigual. Desta feita, temos um jovem, Robert Marshall (Lew Ayres) que passa de tipógrafo a repórter e se enamora da jornalista que cobre a secção da “vida social”, Myra Deane (Genevieve Tobin). A vida de luxo que ela disfruta (evidente no seu sumptuoso apartamento) advém do facto de ser amante do patrão, e são a sua beleza e sofisticação que o atraem. Mas Myra confronta e subverte as expectativas das figuras (sobretudo masculinas) que a rodeiam e que a tentam moldar ao que pretendem, desde o jovem enamorado, ao patrão, passando pelos conselheiros deste. Aqui, é a agência dela que determina o final feliz: é o seu testemunho que salva o homem condenado e é a falsa devolução do presente que abre caminho à reconciliação. Up for Murder marca também continuidade com outras obras de Bell na figura da mãe, influente mas generosa, contrastando com a severa Doña Bernarda de The Torrent.
Uma curta sequência em Up for Murder evidencia bem a preocupação de Bell com o tema das aparências. Quando é recrutado para acompanhar Myra ao “baile internacional”, o jovem Bob é incumbido de ir alugar um fato de gala. Vemo-lo atravessar a rua e fundir-se num plano sobreposto consigo mesmo voltando do lado oposto, já “apresentável”. Como se de outra pessoa se tratasse, começa aqui a mudança que o leva a trair a placidez da sua vida responsável para perseguir a mulher-fantasia.
A ilusão do querer parecer é central em Downstairs (1932), o filme seguinte de Monta Bell. Downstairs está, sobretudo associado, à figura do actor John Gilbert, aqui argumentista e protagonista. Gilbert queria apresentar um contraponto à imagem de ídolo romântico que o celebrizara nos tempos do mudo. O seu chauffeur sem escrúpulos não poderia ser maior antídoto.
Coloca em evidência a hipocrisia social: não só a do mundo dos ricos, mas a do sistema patriarcal que não tem classe.
Um dos poucos filmes de Bell que não se ambienta num espaço urbano, Downstairs decorre numa Áustria de outrora, nomeadamente numa mansão aristocrática onde o mundo dos “senhores” contrasta e coexiste com o dos “criados” – a dinâmica de upstairs-downstairs que inspirou inúmeras obras e que o exemplo recente mais conhecido é porventura a série britânica Downton Abbey (2010-2015). Gilbert é Karl, o novo motorista que se apresenta ao serviço no dia do casamento do mordomo, Albert (Paul Lukas), com uma das criadas, Anna (Virginia Bruce). Desde logo se delineiam as barreiras que separam os dois “lados” da casa e que Karl se revela capaz de transpor, como é sugerido por um affair passado com uma antiga patroa. Depressa o mulherengo e interesseiro Karl porá o seu charme a render: chantageando a condessa, manipulando os afectos da cozinheira, para lhe extorquir as poupanças, e seduzindo a recém-casada. Gilbert está muito bem a ser detestável. A sua falta de escrúpulos coloca em evidência a hipocrisia social: não só a do mundo dos ricos, mas a do sistema patriarcal que não tem classe. Num dos diálogos mais arrojados, vemos Anna a justificar o seu direito ao prazer sexual, explicando que a noite de paixão adúltera que teve com Karl lhe deu algo que o marido não lhe havia sabido dar (numa cena anterior, o mordomo interrompe a noite de núpcias para ir substituir um empregado incapaz de cumprir as tarefas). Que as deixas venham da personagem porventura mais inatacável do filme só confirmam a complexidade do retrato de género. O cinema de Monta Bell destabilizando hierarquias.
Em Downstairs encontramos alguns exemplos prodigiosos do trabalho de montagem dos filmes de Bell, bem como do uso sugestivo da profundidade de campo para explorar a ambiguidade das relações entre personagens. Um deles é a sequência da “corte” de Karl a Anna, seguida da chegada do marido, com uma sinfonia de gestos e perspectivas que muito dizem: desde a janela de onde o furtivo Karl aparece à porta, a entrada “legítima” de onde surge Albert, passando pelo gesto de ocultação das mãos de Anna atrás das costas. Isto é seguido pela sugestiva alternância do plano da campânula onde Anna guarda uma figurinha do seu casamento com a de uma outra campânula que Karl destapa, contendo um queijo que prontamente fatia. O simbolismo é evidente, mas não menos eficaz. Reencontramos aqui também outra fantástica cena à chuva. E de novo temos os lembretes da modernidade quotidiana, do rádio ao automóvel.
China’s Little Devils (1945) foi a última longa realizada por Monta Bell e a sua atipicidade é normalmente salientada em escritos que lhe fazem menção. Filmado pela produtora de filmes de série B Monogram, China’s Little Devils parece estar muito distante dos anos de ribalta do realizador. Não temos aqui provocadoras protagonistas femininas nem o charme e o vício da vida citadina, nem sequer trama romântica. Ao invés, China’s Little Devils é um filme de propaganda, um tratado de apoio à resistência chinesa contra o Japão na sua longa Segunda Guerra.
No centro do filme estão crianças, em particular um menino órfão, Little Butch Dooley (Ducky L. Louie), adoptado por membros dos “Flying Tigers” (um grupo de pilotos americanos que combateu pela China ainda antes da entrada dos EUA na guerra). Little Butch é mandado para um orfanato gerido por um missionário pacifista, Doc Temple (Harry Carey), mas rapidamente toma a iniciativa de recrutar os seus jovens companheiros para perigosas acções de guerrilha. Quando alguns dos “little devils” são capturados e executados e a sua missão é destruída, Doc é confrontado com a violência dos soldados japoneses e acaba por abandonar a sua neutralidade. Mas Little Butch, a criança que a guerra fez deixar de o ser, é crucial para o mobilizar.
Apesar da falta de nuance em China’s Little Devils, entendível nas circunstâncias em que foi produzido (filmado em 1944, antes do final da guerra), mas que pode ser algo desconfortável visto sem contexto, mantém-se uma obra interessante. Para começar, terá sido certamente dos raros filmes da época que, produzidos nos Estados Unidos, foram protagonizados por actores ásiatico-americanos, não por não-asiáticos maquilhados, como acontecera num antigo filme anterior de Bell com personagens chinesas, East is West (1930). O jovem protagonista tem, aliás, uma prestação memorável, dominando todas as cenas em que aparece.
Ducky Louie não viria, porém, a ter muitos mais papéis no cinema, preferindo prosseguir os estudos e depois exercer a profissão de dentista. O filme marcaria também o final de outras carreiras. O argumentista, Sam Ornitz, foi vítima das purgas anticomunistas que afectaram Hollywood nos anos 1950. E Monta Bell não mais viria a realizar, embora ainda tenha produzido alguns títulos. Morreu em 1958, pobre e esquecido num hospital de artistas.
Décadas depois, seria redescoberto, embora esse reconhecimento público esteja ainda longe do que o seu cinema, em tantas coisas à frente do seu tempo, merece.