O derradeiro amor, se pensarmos sobre isso, é apenas um capricho egoísta e cruel. Mas, assim como pode haver beleza na folhagem e nas flores caídas, o amor pode brilhar ao ponto de rumar em direcção à destruição.
Takeshi Kitano (apud Gerow 2007, p. 201)
Claro que as narrativas dos filmes de Takeshi Kitano sempre foram permeadas pela simplicidade do «toda a gente morre» e «nada muda». Todavia, a totalidade delas é composta pelos movimentos precipitados dos seus detalhes que lhes concedem uma luminosidade complexa.
Casio Abe (2004, p. 261)
Festival de Veneza, Setembro de 2002. Takeshi Kitano apresentava às audiências internacionais o seu novo filme. A unanimidade conquistada com Hana-bi (Fogo de Artifício, 1997), que lhe tinha valido o Leão de Ouro, ou Kikujirô no natsu (O Verão de Kikujiro, 1999) começava já a desvanecer lentamente. A experiência americana de Brother (Irmão, 2000) mostrava, para alguns, sinais de reciclagem alarmantes, como se o cineasta tivesse simplesmente trasladado a Okinawa misteriosa e poética de Sonatine (Sonatina, 1993) para a ruidosa, asneirenta e suja Califórnia, colocando em marcha, como mero obreiro de uma imagem de marca, o mesmo jogo vão e automático de brutalidade que ceifaria a vida de todos os yakuza residentes em Los Angeles. Ora, quando a última bobina de Dolls (2002) chegou ao fim em Veneza, a ovação prolongada, pró-forma habitual da cerimónia, não deixava adivinhar a recepção algo fria que iria receber junto da crítica.
Como nos descreve Casio Abe em Beat Takeshi vs.Takeshi Kitano, existem diversos sinais de um sentimento “anti-kitanesco” ao longo da película: uma câmara mais agressiva, passível de conferir intenções e dramaticidade através de movimentos bruscos e zooms; uma obsessão japonesista, comprovada tanto pelas cores vibrantes e nacionais, capturando incessantemente o tradicionalista “mundo de «neve, lua e flores»” (2004) como pela colecção de citações culturais que vão do mais respeitado género teatral (o bunraku, teatro de marionetas) à mais corriqueira crença folclórica (akai ito, o mito da corda vermelha do amor predestinado), etc. Parecia que a estética da auto-contenção se tinha virado contra si mesma na procura por espectacularizar a fatalidade pessimista, maior do que a vida, do amor. Portanto, se tudo em Kitano até à data se tinha jogado entre a sonata e a sinfonia, eram as novas pretensões operáticas que escandalizavam em Dolls. Permanecendo ainda no campo musical, é necessário relembrar que até mesmo Joe Hisaishi, alma melódica da discrição do estilo kitanesco, se desorientou com tanta magnanimidade inusitada. Compositor e realizador desentenderam-se, alegadamente devido às críticas desiludidas do primeiro em relação ao argumento do segundo, o que explica o uso lacónico, reincidente, de uma ou duas faixas no decurso do filme. Desde esse desaguisado, os dois nunca mais colaboraram juntos. Por cá, Vasco Câmara falava ainda de um filme-adereço de alguém enamorado com uma imagem manufacturada por críticos e não será exagerado dizer que a reputação (bem como a distribuição comercial) de Kitano nunca mais seria a mesma a partir daqui. Para além das várias mortes com cordelinhos de marioneta, Dolls escondia, na verdade, a morte anunciada da carreira de um tremendo cineasta.
Se qualquer juízo transcendental, portanto, está assente numa recondução do múltiplo ao uno, também Kitano teve de inventar variedade desinteressante, enfiar algodão nos espantalhos para melhor deduzir daí a metafísica que a todos anula.
Mas, foi essa morte realmente justa? Pensamos que não. Até porque Dolls pode ser considerado, noutra leitura, como a obra em que o estilo particular de Kitano mais se universalizou ao ponto de se tornar transcendental – ou seja, um modo que acompanha tudo o que é, sem excepção. Foi isto que as flechas apontadas ao academismo formalista esqueceram, que há uma nostalgia de essencialidade no automatismo, que o seu esforço encerra uma depuração retorcida do real e não meramente uma simplificação ingénua. Não nos enganemos: este é um mundo de um só vislumbre, a despeito da tripartição narrativa e da pluralidade de personagens. Se qualquer juízo transcendental, portanto, está assente numa recondução do múltiplo ao uno, também Kitano teve de inventar variedade desinteressante, enfiar algodão nos espantalhos para melhor deduzir daí a metafísica que a todos anula. Afinal, trata-se de um exercício onde são os ningyô (marionetas) a olhar para os ningen (humanos), inversão da relação de poder existente no bunraku e que, no limite, restitui a tal compreensão de um mundo sensível e vivo subordinado à imobilidade passiva de um em que todas as regras estão já dadas.
No dramaturgo Monzaemon Chikamatsu e no teatro de marionetas do período Edo, Kitano redescobriu, então, o fatalismo que sempre andou à espreita no seu cinema. Uma interpretação do segundo (e último) acto da peça Meido no hikyaku de 1711 (em português, “O Mensageiro do Inferno”) abre o pano de Dolls, como para assinalar um diálogo entre diferentes universos artísticos. É uma estória típica do dramaturgo onde se conta o amor impossível entre uma prostituta e um homem de classe superior que, querendo salvá-la da ruína saldando a dívida do seu contrato, condena-se ele mesmo a semelhante sorte. Para Chikamatsu, que baseou muitas das suas peças em acontecimentos verídicos da Osaka do seu tempo, o mundo dos afectos, em certo sentido, da humanidade colide necessariamente com um social, de regras inflexíveis e honras assoberbadas. Na estética e no pensamento japonês, fala-se de ninjô (sentimentos) contra giri (obrigação), par antitético, ubíquo e em tensão contaste que frequentemente só pode ser resolvido através da morte, própria ou de outrem. Assim, é através do shinjû (duplo suicídio), activo ou passivo (no caso de Meido no hikyaku o casal deixa-se engolir por uma tempestade de neve) que os amantes proibidos se redimem, aprovando-se no além, mas confessando a incapacidade de pertencer ao aquém.
Regressemos à cena inicial, composta por travellings, cortes sucessivos na montagem, enfim, uma sensação de movimento tão rara em Kitano que não pode funcionar apenas como intróito ou menção exótica para impressionar espectadores ocidentais. A expressividade, quer da poesia do recitador (tayû), quer dos gestos (manipulados) das marionetas são também contrárias ao endurecimento das faces e fisionomias que povoarão o drama dos humanos imediatamente a seguir. Se é verdade que a estética do bunraku consiste em animar o inanimado, conferindo vida e realidade ao que, por natureza, não a possui, Kitano preferirá imobilizar o real, representando-o através de uma escassez ou mesmo esvaziamento de interioridade. Os ningyô de Chikamatsu têm mais alma do que os ningen de Kitano. A relação com o dispositivo teatral, contrariamente ao que muitos críticos escreveram, tão pouco é meramente ilustrativa nem reivindica grande fidelidade à fonte literária. A transposição dos périplos da humanidade feita ningyô do universo kitanesco não se efectua sem uma transfiguração, presente na assinatura do próprio realizador. Masahiro Shinoda, ao adaptar outro clássico de Chikamatsu, foi muito mais radical em Shinjû: Ten no amijima (Double Suicide, 1969) quando isolou os kuroko (figuras vestidas de negro que auxiliam o bom desempenho da peça) e tornou-os visíveis perante as câmaras, controlando os personagens humanos, alheios a tal furtiva presença, como se fossem determinados a agir de acordo com forças que os ultrapassam. Kitano pode não ter adoptado semelhante estratégia vanguardista de distanciamento, mas tão pouco resolveu reconstruir, com rigor histórico, o universo do dramaturgo como fez Kenji Mizoguchi em Chikamatsu monogatari (Os Amantes Crucificados, 1954) ou Tomu Uchida no parcialmente biográfico Naniwa no koi no monogatari (Chikamatsu’s Love in Osaka, 1959).
Das três estórias fatais em Dolls, podemos destrinçar, então, três dimensões que robustecem a imagem inexorável do amor kitanesco: o amor como “loucura a dois”, como “privação sensorial” e, finalmente, como “frustração de uma promessa de felicidade”. Todas são antecâmara da morte, como se só amasse aquele que está pronto para se extinguir em nome do seu amor.
Fora o prelúdio, Dolls só tem de Chikamatsu aquilo que pertencia de antemão a Kitano. Por exemplo, a fuga dos amantes, consubstanciada naquilo que na estética dramática japonesa se chamou michiyuki, sequência da viagem (no caso específico do bunraku relegada sempre para o final e entendida como preparação para o shinjû climáctico) é transportada para o início, naquele passeio mudo e primaveril debaixo das sakura e dos julgamentos alheios. De facto, o primeiro conto dos vagabundos ligados por uma corda (no Japão acredita-se que o amor predestinado aparece sob a forma de um cordel vermelho atado aos dedos) pode ser encarado como um michiyuki expandido, metafísico, e mesmo sendo contextualizado por flashbacks pontuais (todo o filme está), distancia-se da simbologia do arquétipo teatral em que a deslocação física dos personagens permitia avançar a trama, apresentando, por contraste, um carácter elíptico e repetitivo, descarnado, insondável, distante de qualquer experiência comum. Também a concepção do amor difere bastante da do dramaturgo que amiúde intelectualizava o quão incomportável a sede de paixão se tornava para os amantes. Aqui, Kitano teve a oportunidade de ir às profundezas daquilo que aparecia quase sempre pontualmente na sua filmografia. Houve nela constantemente um pudor, uma incapacidade, não só em exacerbar sentimentos e atracções através da linguagem, mas também em demonstrar directamente qualquer espécie de afecto. Uma negação peremptória do beijo como cúmulo do desejo – um escondimento ou desprezo por esse império dos sentidos -, enfim, um nojo meio ascético, meio infantil, pelo contacto físico que aproxima e afirma dois corpos. Para ele, qualquer aproximação só podia ser concebida se ferisse, destruísse ou recusasse outrem; consequentemente o amor apenas poderia ter lugar no silêncio de uma presença impassível de toque. Das três estórias fatais em Dolls, podemos destrinçar, então, três dimensões que robustecem a imagem inexorável do amor kitanesco: o amor como “loucura a dois”, como “privação sensorial” e, finalmente, como “frustração de uma promessa de felicidade”. Todas são antecâmara da morte, como se só amasse aquele que está pronto para se extinguir em nome do seu amor.
No primeiro segmento, correspondente ao casal de vagabundos, a loucura de Sawako, noiva traída por Matsumoto que a abandona para casar com a filha do patrão da empresa (optando pelo giri colectivo em detrimento do ninjô individual), reforça a imagem misteriosa das mulheres na obra de Kitano. Com efeito, não é a primeira vez que elas enlouquecem no seu cinema, veja-se a irmã do protagonista de Sono otoko, kyôbô ni tsuki (Violent Cop, 1989), ou adoecem gravemente, como sucede com a esposa acriançada de Hana-bi. A sua extrema fragilidade apela frequentemente a uma morte piedosa fora de campo. Mas neste caso, o desvanecimento simbólico da razão acontece dentro de campo e é contagiantemente conjugal. Matsumoto perde a sanidade no momento em que, tendo plena consciência do sacrifício da sua amada, desfaz a contradição entre sentimentos e obrigações sociais, escolhendo somente os primeiros contra todas as pressões, num abraço cerimonial que marcará a penúltima vez em que o casal se toca. A partir desse momento, observaremos espectros que vivem exclusivamente para cuidar do espaço preenchido por ambos, participando numa viagem interminável, resistindo teimosamente contra a mutabilidade do mundo figurada na passagem das estações. No segundo conto, a cegueira auto-impingida de um fã, procurando aceder à dor da cantora pela qual está apaixonado e que perdera um olho num acidente, rememora a terceira longa-metragem do cineasta – aliás, também citada num pequeno gague envolvendo uma prancha de surfe -, Ano natsu, ichiban shizukana umi (Um Lugar à Beira Mar, 1991), a única até Dolls em que Kitano se dignou a filmar o quotidiano de um casal jovem. Ambos surdos-mudos, incapazes de exprimir sentimentos sem ser por via de acções discretas, portanto mais próximos de uma pureza decorrente da sua privação sensorial. Ora, é exactamente isso que Nukui, o obsessivo, procura ao agarrar no x-acto: anular a visão para espiritualizar um amor que nasceu por excesso dela, entre pósteres, telediscos e idolatria imberbe. Finalmente, a terceira parcela reitera o papel cruel de forças externas na obliteração de um amor idílico. Um velho chefe yakuza reencontra a sua primeira paixão num parque. Ela aguarda o regresso dele há décadas com uma marmita ao colo, na esperança de lhe poder voltar a oferecer almoço. Também no final de Sonatine, a promessa de felicidade com a airosa habitante de Okinawa era frustrada pelo suicídio do mafioso desesperado. Aqui, semelhante espera e semelhante frustração (por duas vezes seguidas, sendo a segunda irreversível) são consequência de um olhar cósmico que não pode admitir paraísos na terra.
Na verdade, o shinjû distintivo do bunraku, ainda que precipitado pelo fado a uma macro-escala, demonstrava a personalidade e o vigor dos apaixonados, capazes de se antagonizarem perante a injustiça de uma sociedade de classes e códigos rígidos. Em Dolls, o determinismo é total e a passividade idem. Sobre este propósito, Santiago Vila escrevia: “curiosamente, em nenhuma [das estórias vemos] suicídios cometidos directamente pelos protagonistas, como acontece em Hana-bi e na obra de Chikamatsu em geral. Trata-se, de uma aceitação passiva da morte, que lhes surgirá necessariamente como consequência de manter a sua relação” (2010). Para Kitano, que sempre se envergonhou com os caprichos passageiros do coração, o amor só existe para perecer eternamente. E, todavia, é nessa queda de seres resilientes, traídos pelo universo, que encontramos a beleza cruel da evanescência.
Bibliografia citada:
Abe, Casio (2004). Beat Takeshi vs. Takeshi Kitano. Los Angeles: Kaya Press.
Gerow, Aaron (2007). Kitano Takeshi. Londres: British Film Institute.
Vila, Santiago (2010). Takeshi Kitano: Niño Ante El Mar. Madrid: Ediciones Akal.