Long-haired preachers come out every night
Try to tell you what’s wrong and what’s right
But when asked how ‘bout something to eat
They will answer with voices so sweet
You will eat, bye and bye
In that glorious land above the sky
Work and Pray, live on hay
You’ll get pie in the sky when you die
And the starvation army they play
And they sing and they clap and they pray
Till they get all your coin on the drum
Then they tell you when you are on the bum
If you fight hard for children and wife
Try to get something good in this life
You’re a sinner and bad man, they tell
When you die you will sure go to hell
Workingmen of all countries unite
Side by side we for freedom will fight
When the world and its wealth we have gained
To the grafters we’ll sing this refrain
You will eat, bye and bye
When you’ve learned how to cook and to fry
Chop some wood, ‘twill do you good
And you’ll eat in the sweet bye and bye
“Long Haired Preachers” (também conhecida como “The Preacher and the Slave” e “Pie in the Sky”), escrita por Joe Hill Written e publicada pela primeira vez na colectânea Little Red Songbook em 1911 (editada pela Industrial Workers of the World). Uma paródia proletária à canção religiosa “In the Sweet by-and-by” e uma reacção sindical à acção da obra de caridade protestante do Salvation Army (apelidado de Starvation Army). A minha versão preferida: “Pie in the Sky” de Pete Seeger do álbum “On Campus” de 1965.
A 21 de Maio de 1993 o Lincoln Center acolhia um ciclo intitulado “Mean Screens: Martin Scorsese at the Movies”. Neste, o realizador homenageado emparelhava cada um dos seus filmes com títulos que o haviam marcado enquanto espectador e cinéfilo. Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973) aparecia numa sessão dupla com Prima della rivoluzione (Antes da Revolução, 1964), Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980) com Rocco e i suoi fratelli (Rocco e os Seus Irmãos, 1960), Shadows (Sombras, 1959) emparelhava com Who’s That Knocking at My Door? (Quem Bate à Minha Porta?, 1967), The Man I Love (1947), do nosso querido Raoul Walsh, juntava-se com New York, New York (1977), Accattone (1961) encarava com The Last Temptation of Christ (A Última Tentação de Cristo, 1988) e The Last Waltz (A Última Valsa, 1978) surgia de mãos dadas com The Tales of Hoffman (Os Contos de Hoffmann, 1951). Portanto, Bertolucci, Visconti, Cassavetes, Walsh, Pasolini e Powell e Pressburger, grandes autores consagrados do cinema clássico e do cinema moderno. Mas Scorsese, no seu eclectismo, convocou outros títulos também, menos óbvios: Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990) com o original Ocean’s Eleven (Os Onze de Oceano, 1960), Station Six-Sahara (Sahara, Posto 6, 1963) emparelhou com The King of Comedy (O Rei da Comédia, 1982), After Hours (Nova Iorque Fora de Horas, 1985) combinava com um filme de Allan Dwan, Getting Gertie’s Garter (O Que Podem Umas Pernas, 1945), e Alice Doesn’t Live Here Anymore (Alice Já Não Mora Aqui, 1974) rimava com o esquecido Take Care of My Little Girl (1951) de Jean Negulesco (que podia muito bem ser um dos autores deste dossier). Pois bem, ficou a faltar um dos filmes mais marcantes da carreira de Martin Scorsese: Taxi Driver (1976). O realizador casou aquela que é talvez a sua obra-prima com Murder by Contract (1958) de um tal de Irving Lerner.
No entanto, esta relação de Scorsese com Lerner já era conhecida doutras paragens. Lerner trabalhara como montador em New York, New York, tendo falecido antes de o filme estar terminado (morreu no dia de natal de 1976, sendo que Scorsese dedicou filme à sua memória). Em entrevista ao New York Times, Scorsese contou que Murder “era surpreendente e seco e tinha um propósito, e não era como nada que nenhum dos meus amigos e eu tivéssemos visto antes. (…) Fiquei espantado com a severidade do estilo, que era determinada pelo orçamento.” Lerner seria também um dos citados autores de mesa de cabeceira de Scorsese no seu A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies (1995) e já antes, em 1988, inquirido pela Film Comment pelos seus guilty pleasures, Scorsese seleccionou esse filme de Lerner dizendo que “este é o filme que mais me influenciou” e acrescentando: “Lerner era um artista que sabia como fazer as coisas com o mínimo, como Bresson ou Godard. O filme envergonha-nos a todos com a sua economia de estilo”. Heresia! Quem é esse fulano?
Se se der ouvidos aos papas do cinema clássico esse fulano é um realizador, na melhor das hipóteses, esquecível. Bertrand Tavernier no seu monumental 50 ans de cinéma américain, em dois volumes, refere-se a Lerner como dono de um estilo frio, meticuloso, preciso, “mas também muito monótono”. Segundo ele, “ainda que todos os seus filmes sejam ambiciosos, quase sempre inteligentes e coerentes, não aguentam a sua duração, (…) [uma] uniformidade dos enquadramentos que passa da sobriedade à indigência.” Terminando com uma adversativa: “mas isto não é nada em comparação ao que viria depois, um calamitoso final de carreia debaixo do mando de Philip Yordan[1] (de facto, numa entrevista a Yordan, o argumentista e produtor explica que “Ele era um amigo. O Irving faria qualquer coisa por mim.”). Já Andrew Sarris, no incontornável The American Cinema, Directors and Directions, 1929-1968, refere-se a Murder by Contract numa pequena nota que de forma sumária esclarece: “um clássico menor de assassínios eufemísticos, e é tudo que precisa ser dito sobre a carreira de Irving Lerner.”
“‘Ouvia todo o diálogo mas não via cabeças, e então eu disse ‘Irving, que raio se passa com o enquadramento? Não tem cabeças!’ Ele respondeu, ‘Toda a gente faz filmes com cabeças falantes, estou farto disso, vou ser diferente.'”
Segundo aqueles que com ele conviveram e trabalharam, a imagem que fica não é igualmente muito boa. Segundo Bernard Gordon, um argumentista blacklisted que teve um papel importante na reescrita de Studs Lonigan (1960), na sua autobiografia Hollywood Exile, or How I Learned to Love the Blacklist (2013), refere-se assim ao seu “good friend”: “baixo, gordinho, e com enormes óculos, (…) [ele] não se parecia nem soava com a ideia que qualquer pessoa tem de um realizador de cinema. De facto, apesar da sua extensa experiência na realização, Irving era um inocente nato. Mas tinha alguns contactos na indústria (…)”. Com bons amigos destes… Philip Yordan e Ben Maddow, entrevistados por Patrick McGilligan em Backstory II: Interviews with Screenwriters of the 1940s and 1950s (1997), falam de Lerner como uma pessoa muito simpática mas que não tinha grande talento para a realização (que aquilo em que ele era bom era a mesa de montagem). Maddow afirma que Lerner não sabia onde colocar a câmara e Yordan conta um episódio que depois viria a ser várias vezes citado como prova dessa falta de talento: “Uma vez ele fez um filme para mim com o Vince Edwards [Murder by Contract] (…). Olhei para as rushes, e estavam quatro gangsters num quarto, de pé, a andar de um lado para o outro e a conversar. Mas não via as cabeças. Ouvia todo o diálogo mas não via cabeças, e então eu disse ‘Irving, que raio se passa com o enquadramento? Não tem cabeças!’ Ele respondeu, ‘Toda a gente faz filmes com cabeças falantes, estou farto disso, vou ser diferente.’ E eu disse-lhe, ‘Jesus Christ, Irving! Há um limite quanto a ser-se diferente, e original, não se pode filmar gajos a andar de um lado para o outro sem cabeças! Toda a gente no cinema vai gritar, ‘Enquadra isso! Enquadra isso!’.’” Mais do que prova de falta de talento, parece-me que aqui, nesta anedota mal intencionada, revela-se uma das marcas características do cinema de Irving Lerner: o gosto pela amputação.
Recentrando-me na questão essencial: quem é esse fulano? A verdade é que é difícil de explicar. Irving Lerner foi muitas coisas, muitas delas muito diferentes entre si. Cada fase da sua carreira aponta para um indivíduo que dificilmente conviveria com uma das outras fases. É complicado encontrar um centro no seu percurso. Aliás, esse é o argumento de Kyle Westphal, num dos melhores textos escritos sobre o realizador, para a Chicago Film Society aquando de uma pequena retrospectiva a ele dedicada. Westphal argumenta que “Procurar por uma continuidade temática ou visual é um esforço perdido — não existe um só ‘Lerner style’ que ligue as suas obras ao longo das décadas. O problema, no fundo, é que Lerner trabalhou, muitas vezes, sob pseudónimos ou não recebeu crédito pelos trabalhos que fez. Aliás, descrever Lerner como um realizador é talvez privilegiar os seus poucos créditos como realizador à custa de outras produções para as quais desempenhou odd jobs.”
“O novelo emaranhado que é a carreira de Lerner não é uma barreira à sua compreensão. Pelo contrário, as voltas e reviravoltas exemplificam os dificuldades e os compromissos de uma geração de artistas de inclinação esquerdista [left-wing] a trabalharem na indústria do cinema”.
De facto, muitos foram os seus odd jobs: foi fotógrafo na seminal Film and Photo League, fazendo parte da Workers Newsreels; co-realizador do primeiro filme improvisado do cinema norte-americano, Pie in the Sky (1934), com o grupo da Nykino, que daria origem à famosa e politizada Frontier Films; assistente e amigo de Fritz Lang em You and Me (1938); montador de vários filmes educacionais e institucionais do documentarista Willard van Dyke; segundo operador de câmara de Robert Flaherty em The Land (1940), produtor de um projecto inacabado de Joris Ivens; produtor e realizador de vários filmes de propaganda durante a Segunda Guerra Mundial para a OWI; responsável pelas sequência de cinema de peças de Orson Welles (Around the World in Eighty Days, das Mercury Productions, em 1945) e Joseph Losey (Galileo de Bertold Brecht, em 1947); montador ou realizador de segunda unidade para cineastas como Robert Stevenson, Anthony Mann, André de Toth, Stanley Kubrick, Robert Siodmak ou Nicholas Ray; realizador de televisão nos anos 1960; produtor de western spaghettis em Espanha nos anos 1960 e 1970; e, claro, realizador de pouco mais que meia dúzia de longas-metragens (e de mais de uma dezena de curtas). Regressando a Westphal: “o novelo emaranhado que é a carreira de Lerner não é uma barreira à sua compreensão. Pelo contrário, as voltas e reviravoltas exemplificam os dificuldades e os compromissos de uma geração de artistas de inclinação esquerdista [left-wing] a trabalharem na indústria do cinema”. Talvez seja por aqui que é melhor começar a desenrolar este novelo bem emaranhado conhecido por Irving Lerner.
A canção que coloquei como epígrafe não é apenas casual, nem o é a referência a Pete Seeger[2]: Workingmen of all countries unite / Side by side we for freedom will fight. Lerner provém de uma grupeta nova-iorquina radical e proto-comunista que incluía, entre outros, Jay Leyda [autor do magnífico A Bronx Morning (1931) e principal responsável pela tradução e divulgação do pensamento de Sergei Eisenstein nos Estrados Unidos da América, com quem estudou e estagiou – Lerner foi responsável pelas ampliações de fotogramas de filmes de Eisenstein na edição traduzida por Leyda de Film Form], Paul Strand [Manhatta (1921) e mais importante no que respeita ao cinema político, Native Land (1937-1941)], Leo Hurwitz [co-realizador de Native Land e Hunger 1932 (1933)], Ralph Steiner [mais lembrado pelo seu cinema de vanguarda, nomeadamente H2O (1929) e Mechanical Principles (1930)], o já referido Willard van Dyke e o imberbe Elia Kazan, que actuaria, pela primeira vez, no já citado filme colaborativo Pie in the Sky.
O que liga todos eles é, para começar, a fotografia e, em particular, a Worker’s Film and Photo League. Esta associação serviu como caldeirão de um grupo vasto de olhares que tanto acolheu os experimentadores das vanguardas como os mais politizados dos realizadores (quando as duas coisas não se encontravam). Tal é o impacto desta associação que ao ler o livro do colega walshiano Luís Mendonça, Fotografia e Cinema Moderno: Os Cineastas Amadores do Pós-Guerra (que versa essencialmente em nomes que não se intersectam com nenhum dos anteriores, como Engel, Orkin, Levitt, Rogosin, Weegee, Burckhardt), apercebo-me que também para ele aquela liga de fotógrafos e realizadores foi seminal na formação e integração dos seus personagens. Como seria de esperar, quase todos, incluindo Lerner, foram blacklisted com a caça às bruxas da House Committee on Un-American Activities. A HUAC faria as suas listas a partir de 1947 daqueles afiliados com o Partido Comunista, sendo que primeiramente seleccionou os conhecidos Hollywood Ten (que incluíam Dalton Trumbo e Edward Dmytryk), nos dois anos seguintes outros tantos e depois uma outra correnteza de gente (de Welles a Buñuel, de Chaplin a Losey).
O que importa de qualquer modo salientar é que Lerner, enquanto cineasta, tem origem num meio em que convivem as últimas vagas da experimentação das primeiras vanguardas (que chegam aos Estados Unidos com quase uma década de atraso – como em Portugal, mais coisa menos coisa –, já na dobra para o sonoro) com as consequências da recessão de 1929. Assim, muitos dos que se exercitavam nos formalismos das vanguardas viraram-se para o documentário como ferramenta de denúncia das condições de vida dos bairros pobres das grandes metrópoles. Pie in the Sky é paradigmático deste câmbio, por se instalar perfeitamente entre os dois pólos. Um filme de um colectivo, praticamente todo improvisado, ainda mudo (em 1934), uma comédia que parodia a boa caridade religiosa, um filme feito – literalmente – nos escombros de uma sociedade em ruínas, e cheio de soluções inventivas, nomeadamente os planos subjectivos e abstractos ou a inclusão da letra da música qual karaoke avant la lettre. O discurso anti-religioso é sintomático do movimento, e a trama adapta livremente a letra da canção homónima de 1911. Aqui encontram-se alguns dos tropos recorrentes do cinema de Lerner, nomeadamente a opção por filmar em bairros depauperados.
Na primeira curta que realiza a solo, A Place to Live (1941) – nomeado para o Oscar de melhor curta documental no ano seguinte – é um documentário institucional encomendado pela Philadelphia Housing Association que, na primeira parte, descreve uma Filadelfia decrépita com as crianças a brincarem por entre o entulho dos edifícios ruídos – como aliás acontece, com as crianças adultas de Pie in the Sky (o que, não deixa de remeter para as ruínas europeias e o cinema que as ocupou no pós-Segunda Guerra). Lerner irá montar também vários dos filmes de Willard van Dyke dos anos 1940 [também co-realizador de Pie] que, igualmente, se dedicam a documentar as realidades sociais de um América deprimida (nos dois sentidos), em particular The Children Must Learn (1940) e Valley Town (1940) – ambos montados por Lerner, em inventivas construções paralelas que trabalham o ritmo da montagem a partir de uma perspectiva não muito distante das vanguardistas sinfonias urbanas.
Outro aspecto que Pie in the Sky apresenta como tropo tipicamente lerneriano será o problema da representação, nomeadamente a falsidade da própria construção cinematográfica. Toda a sequência nas ruínas deste filme colectivo faz-se segundo o motivo da representação. Os dois personagens constantemente actuam um para o outro diferentes arquétipos, em particular o de padre (cuja vestimenta desenvolvem a partir de uma selecção de lixos vários que penduram no corpo em forma de batina paroquial). Ou, por exemplo, brincando em carcaças de carros abandonadas, os personagens simulam uma perseguição automóvel cinematográfica que trabalha o plano aproximado como estratégia de engano. Ou, ainda mais significativo, um deles encontra um manequim amputado – já aqui a obsessão pelos corpos amputados… –, baptiza-o de ‘Mae West’ e procede às carícias daquela forma sinuosa.
O cinema de Lerner está pejado de momentos destes, em que o cinema se olha ao espelho (e ora o faz com ironia, ora o faz com tristeza). Um dos momentos mais simbólicos disto dá-se quando, em Murder by Contract, os dois sidekicks do nosso assassino sem escrúpulos se preparam para lhe limpar o cebo e escolhem, nem de propósito, um estúdio de cinema abandonado. Lá o assassino, como o espaço impunha, encena o seu desfalecimento para, logo depois, dar a volta à emboscada e tratar da saúde dos dois outros capangas (há um outro momento curioso em que os três estarolas do crime vão a uma sessão de cinema ver um filme de guerra e o nosso assassino fica incomodado com tanta mortandade, ele que já nos mostrara como era um impiedoso matador).
Lerner olha para o seu personagem, um jovem perdido no mundo (como são vários dos seus personagens), para quem o cinema mais do que entretenimento é coisa formativa, espaço de encenação de si mesmo.
Já Man Crazy (1953) contava a história de três mulheres que cometem um desfalque de milhares de dólares ao seu empregador (que ganha dinheiro na venda ilegal de álcool) e fogem, nem mais nem menos, para Hollywood onde poderão encarnar (encenar?) novas vidas – não fosse o patrão estar no seu encalço. Outro momento significativo deste jogo de representações, que encontra no cinema o seu reflexo perfeito, acontece em Studs Lonigan. Aliás, todo o filme se desenvolve à volta de um problema de representação, de um personagem não conseguir encontrar uma imagem para si, de estar perdido num jogo de identidades emprestadas, copiadas, encenadas (vários são os planos em frente ao espelho e, nem de propósito, o filme termina com uma ilustração de um grupo de rapazes sem rosto). Dizia, nesse filme o protagonista sai de uma sessão de cinema e encontra um cartaz na rua de Born to Kill (Nasceu para Matar, 1947, de Robert Wise), um noir clássico com um gangster interpretado por Lawrence Tierney. O rapaz observa o cartaz e replica a postura, a colocação do casaco, o olhar e o cigarro entre os lábios da figura. [Faz lembrar a sequência de À bout de souffle (O Acossado, 1960 – do mesmo ano que Studs) em que Belmondo observa e imita Bogart em The Harder They Fall (A Queda de Um Corpo, 1956) de Mark Robson]. Com efeito, Lerner olha para o seu personagem, um jovem perdido no mundo (como são vários dos seus personagens), para quem o cinema mais do que entretenimento é coisa formativa, espaço de encenação de si mesmo ou, pondo em termos godardianos, “não é reflexo da realidade, é a realidade do reflexo”.
Durante e depois de Pie in the Sky, Lerner trabalha em jornais de actualidades na Film and Photo League, acabando por abandonar esse trabalho para enveredar por um cinema que trabalhasse a encenação e a ficção – dentro do registo do documentário – para melhor alcançar os seus intentos políticos. Com Steiner e Hurwitz, forma a Nykino donde sairá um jornal de actualidades (desta feita sonoro) que terá apenas dois números, intitulado The World Today. Nele, com Maddow, Sidney Meyers, van Dyke, Mike Gordon e Leionel Berman, realiza Sunnyside e Black Legion (em 1936 e 1937), filmes sobre as consequências da depressão e a ascensão dos movimentos de extrema direita, nomeadamente o Ku Klux Klan (antecipando assim, em alguns anos, Native Land,na sua denúncia dos novos fascismos nos EUA). No ano seguinte, com Leyda, Maddow e Meyers, monta China Strikes Back (1937) – já para a Frontier Films (que viria a ser incluindo, numa remontagem mais curta, no conhecido jornal de actualidades March of Time, disponível aqui) – a partir de imagens recolhidas por Harry Dunham na China. Trata-se de uma montagem desinspirada acompanhada pela habitual narração pomposa da propaganda, cantando as glórias do povo chinês contra o perigoso e amoral Japão.
Suicide Attack é uma re-montagem dos filmes de actualidades japoneses e uma des-montagem dos esquemas da manipulação que o cinema permite.
Na mesma onda, ainda que bem mais interessante, está Suicide Attack (1950), realizado por Lerner (a solo) ainda que totalmente a partir de imagens de actualidades. Um filme de montagem, uma espécie de filme-ensaio que inverte o sentido original das imagens de propaganda (para fazer outro tipo de propaganda). Suicide Attack é uma re-montagem dos filmes de actualidades japoneses e uma des-montagem dos esquemas da manipulação que o cinema permite. Lerner percorre dezenas de actualidades e revela como nem sempre a narração ou o texto correspondem às imagens, ou como propositadamente eventos importantes foram omitidos aos espectadores japoneses. O título provém das imagens, até então nunca vistas, dos ataques kamikaze, descrevendo a guerra no Pacífico contra a China e contra os EUA entre 1941 e 1945. Mas naturalmente, Suicide Attack, como explica o website Kamikaze Images, feito em 1950, promove já uma releitura da participação da China na guerra, por no ano anterior a se ter iniciado a revolução comunista. A narração, da autoria de Louis Pollock, procura estabelecer um paralelo entre a actuação dos japoneses durante a guerra e a ascensão do perigo comunista na China, e começa a parecer-se mais com “um filme de propaganda dos tempos da guerra, do que um exame histórico sério das imagens das batalhas que foram exibidas ao público japonês pelos seus líderes.”
Mais tarde, Lerner seria convidado para um dos títulos mais curiosos do dito cinema liberal dos anos 1970: Executive Action (1973). Neste, todos – ou quase – os argumentistas, realizadores, montadores, produtores e actores que haviam sido blacklisted juntam-se para fazer um filme tão político quanto paranóico (antecipando em quase duas décadas os filmes de Oliver Stone), sobre a conspiração em redor do assassinato de JFK. Lerner é chamado para, nem mais nem menos, montar as sequências de imagens de arquivo que intercalam a acção do filme. De novo, o sentido é próximo de Suicide Attack: um exercício de re-significação das imagens que as colocam em contextos diversos daqueles para as quais elas foram pensadas e produzidas (não tão distante assim do dito cinema found footage que se começava a “democratizar” no âmbito da segunda vanguarda).
Mais uma vez, dá-se a confluência entre o gesto político das intenções e da própria apropriação das imagens de uma narrativa noticiosa falsamente isenta e o gesto experimental do próprio acto da apropriação. Estes três títulos, em que Lerner trabalha com imagens documentais para delas construir novas narrativas – independentemente do seu nível de manipulação e propagandismo –, são significativos da importância da montagem no trabalho do realizador e montador. Mais não seja por ter sido como montador que Lerner mais recorrentemente ganhou a vida (chamado para “salvar” filmes desencontrados – actividade que lhe valeria o desdém dos puristas auteuristas, entre eles o já citado Tavernier que no dito dicionário escreveu que Lerner “eliminava, pura e simplesmente, o trabalho de outros, como no caso de King of Kings [(1961)], parcialmente remontado por ele para o fazer ‘eficaz’.”).
A dimensão documental em Lerner surge, no entanto, sempre filtrada pela ficção.
A componente política do seu cinema está também evidente naquilo que escreveu enquanto crítico de cinema. Aliás, talvez melhor aí do que no seu cinema. Um texto em particular é bastante elucidativo das preocupações que ocupavam a consciência do realizador, escrito para o New Theatre and New Masses sobre Robert Flaherty: “Mas de forma nenhuma [Nanook of the North (1922)] mostrou a vida social do esquimó… Até o seu Nannok é um Robinson Crusuoe vestido com peles. No que ao filme diz respeito, Nannok e a sua família eram os únicos esquimós no Canadá. E, claro, não havia qualquer luta de classes, qualquer exploração, não havia opressão! Era demasiado óbvio; demasiado banal para Robert Flaherty.” E noutro texto, uma crítica ao livro Film and the Future de Andrew Buchanan [autor da revista de actualidades da Gaumont, Cinemagazine,que precedia, muitas vezes, The March of Time] para a Hollywood Quarterly, Lerner valoriza o cinema como ferramenta trans-nacional contra o desemprego e o caos, e a favor da paz e do entendimento, apesar de estas ideias serem “mais idealistas que realistas”. Estas eram as suas preocupações em tempos de Guerra: fazer um cinema engajado politicamente[3], a favor da denúncia das desigualdades e promovendo a solidariedade entre povos.
A dimensão documental em Lerner surge, no entanto, sempre filtrada pela ficção. Ora seja pelos anteriores exercícios de montagem (construídos segundo um discurso ideológico forte e impositivo), ora pelos filmes institucionais e de propaganda que irá montar, produzir e realizar durante os anos 1940, nomeadamente, durante o decorrer da Guerra. Ao contrário de vários realizadores-auteurs clássicos do sistema de Hollywood que realizaram filmes de propaganda durante a guerra – Capra, Wilder, Hitchcock… –, os filmes que Lerner realizou para o Office of War Information (o referido OWI) dirigiam-se aos espectadores estrangeiros (Overseas Branch) em vez dos espectadores norte-americanos. Assim, o propósito dos filmes era estabelecer uma imagem positiva dos EUA nos vários países aliados. Nesse sentido, os filmes realizados por Lerner para este braço da propaganda militar e dos negócios estrangeiros são especialmente evidentes nos seus objectos: Swedes in America (1942) – nomeado para o Oscar de melhor curta documental no ano seguinte – e Autobiography of a Jeep (1943). Os dois são exemplos de documentários onde a ficção se transforma em ferramenta narrativa para transmitir uma ideia.
Em Swedes, o fascínio por Hollywood e pelo star system aparece, na figura de Ingrid Bergman. A Sueca apresenta um “programa” – olhando directamente para a câmara – sobre o seu país, em particular a importância dos emigrantes suecos a viver nos EUA e de que maneira eles constituem o tecido que une a América – essa terra de emigrantes. Uma série de personagens é nomeada e entrevistada, sendo o dispositivo narrativo a voice over de Bergman, ligando o embaixador à patinadora no gelo, passando pelo museu do legado sueco e, inevitavelmente, a própria Suécia (de destacar as sequências de montagem encadeada a fazer lembrar os sinfonias urbanas do cinema das vanguardas). O argumento final: o quão acolhedora é a América, e de como nela as várias identidades culturais podem coexistir, enriquecer-se e enriquecer um país que as acolhe de braços abertos.
De destacar, ainda assim, um olhar de esquerda sobre a natureza das pequenas comunidades rurais e de como nestas se desenvolve uma cooperação democrática e directa entre os vários habitantes – ouve-se a certa altura, da boca de Bergman, “the work of each was the work of all”. O bem da comunidade e a inter-ajuda manifestam-se, no filme, através das Co-Op de pescadores e agricultores locais (supostamente símbolo da natureza sueca). Uma imagem salta à vista: os habitantes de uma pequena povoação limpando, em conjunto, as ruas. Imagem que ecoa, directamente, uma cena de A Place to Live, em que várias pessoas lavavam as estradas do seu bairro em Filadelfia. (E não será exactamente por acaso que a sequência sobre o “lado espiritual” parece enxertada à posteriori no final do filme…). Em Jeep, o mecanismo ficcional passa também pela narração: o filme descreve a história do desenvolvimento, integração militar e posterior adaptação civil do jeep, contado pelo jeep ele mesmo – daí o Autobiography do título.
Passagens emocionais e líricas serão recorrências na sua ficção, nomeadamente o modo como os planos subjectivos transmitem estados de espírito não conscientes (ou em vias disso).
O que estes filmes exemplificam é uma obsessão pela “transcrição” audiovisual de uma ideia. Obsessão essa que se reencontra, depois, na sua ficção. A este respeito é fundamental considerar um artigo, publicado na Hollywood Quarterly em 1946 (aquando do encerramento do OWI), de um argumento para um desses documentários de propaganda escrito por Maddow e que seria realizado por Lerner. No final, após o guião, surge a nota do realizador e nela torna-se evidente o pensamento de Lerner. Antes da transcrição, refiro apenas que o projecto intitular-se-ia Death and Science e versaria sobre a física nuclear e o desenvolvimento da bomba atómica e do acelerador de partículas[4]. Escreveu então Lerner: “A montagem, combinada com o uso adequado da música e dos sons, conseguirá explicar o funcionamento desta máquina. Esse dispositivo seria o meio mais directo de transferir conteúdo intelectual para a forma visual. O problema neste filme é tornar o conflito do herói no do público e dos outros cientistas. É importante torná-lo simples, compreensível e emocional. Neste filme, será necessário usar os métodos da reportagem directa, e até mesmo do filme de ensino em que o cientista fala directamente ao público ou explica uma sequência de animação em voice over (a forma padrão de narração). Uma grande parte do filme consistirá de passagens emocionais e líricas em que a música altamente imaginativa terá um papel importante.” A consciência das estratégias a utilizar e o seu domínio revelam, portanto, um realizador altamente “eficaz” – para citar a irónica adjectivação de Tavernier.
Passagens emocionais e líricas serão recorrências na sua ficção, nomeadamente o modo como os planos subjectivos transmitem estados de espírito não conscientes (ou em vias disso). Veja-se as subjectivas de Studs Lonigan quando o protagonista, embriagado, observa a janela da sua amada e esta oscila diagonalmente; ou aquando da cena de violação em Cry of Battle quando os encadeados fundidos parecem remeter para uma espécie de dissociação cognitiva temporária por parte da vítima; ou ainda quando em C-Man a vítima de um enxerto de pancada transforma a imagem num esfumado que oscila entre lá e cá (entre a figuração e a abstracção, entre a consciência e a inconsciência).
Ainda sobre a questão do documentário e as suas estratégias “ilustrativas”, recordo que o frequente colaborador de Lerner, Willard van Dyke, escreveu, também na Hollywood Quarterly, «The Interpretive Camera in Documentary Films», texto onde faz uma proto-historiografia do movimento de documentaristas, da fotografia para a imagem em movimento, advogando uma semelhante complexificação narrativa dos seus filmes: “as linhas narrativas ficaram mais claras, passou a haver mais ênfase em personagens individuais, menos necessidade de expressar ideias através de objectos inanimados. (…) Em dez anos, um novo e vital medium desenvolveu-se e projectou os seus próprios princípios estéticos.” Dois anos depois, Robert Katz e Nancy Katz assinam um artigo, na mesma revista, de nome «Documentary in Transition, Part I: The United States» onde lamentam a falência do grande projecto para um novo documentário norte-americano no pós-guerra. Ao contrário de países como o Reino Unido ou o Canada, a geração de cineastas que produziu dezenas de filmes durante a guerra foi, advogam os realizadores, deixada desamparada devido ao “desperdício e avareza das políticas públicas nos Estados Unidos que apenas provocaram confusão, duplicação de esforços, desperdício de talento e, a longo prazo, desperdício de dinheiro.”
Portanto, Lerner, o realizador de Hollywood (aquele que é lembrado) resulta das ruínas de dois movimentos marcantes na história do cinema norte-americano não hollywoodiano: o movimento da primeira vanguarda e o do documentário de propaganda durante a Segunda Guerra Mundial. Procurei, nos últimos parágrafos, dar a entender de que modo essa prática de duas décadas enformou o cinema de série B que Lerner viria a fazer no outro lado do país, junto ao oceano Pacífico. Caso se suspeite desta relação entre as práticas de cinema de Lerner na costa oriental e na ocidental, convém lembrar que, para o realizador, Hollywood sempre fora um foco de atenção e não uma solução de recurso. Logo em 1937, quando Lerner conheceu Lang e a amizade entre os dois se cimentou – ao ponto de, segundo uma carta enviada por Lerner a ao realizador austríaco, a sua mulher “começava a ficar um pouco desconfiada da nossa relação” – chegou a haver um projecto escrito por Lerner e a realizar por Lang, que nunca viria a concretizar-se.
O que importa notar é que Lang convidou o amigo diversas vezes para se juntar a ele em Hollywood, coisa que Lerner não pôde aceitar pela debilidade física da esposa e pela debilidade financeira da bolsa. A não ser que Lang lhe arranjasse um trabalho, o que viria a acontecer com o já citado You and Me, no início de 1938. Numa carta escrita da soalheira Hollywood ao amigo Jay Leyda, Lerner explica: “Estou definitivamente a aprender muito sobre a produção de cinema comercial e há de facto muito para aprendermos (…) Só estou no estúdio há três dias, mas já assisti a todo o tipo de configurações complicadas e como lhes dar a volta.” Portanto, Lerner percebia que existiam vários ensinamentos que o cinema comercial tinha para oferecer à pratica independente e experimental da outra costa, e uma vez em Hollywood ele mostra como essa prática independente e experimental pode enriquecer uma paupérrima produção de série B.
As duas décadas seguintes da sua carreira serão feitas em Hollywood, durante as quais realizará as oito longas-metragens que venho referindo: C-Man – assinada como Joseph Lerner, talvez por coincidir com o período mais quente da HUAC –, Man Crazy – aparentemente um filme perdido –, Edge of Fury, Murder by Contract, City of Fear, Studs Lonigan, Cry of Battle e The Royal Hunt of the Sun (1969). Antes disso houve uma pérola chamada Muscle Beach (1949), co-realizada e co-produzida com Joseph Strick. Strick era um ricaço, com investimentos em várias empresas de electrónica, que gostava de cinema e queria fazer filmes. Um dia foi ter com Lerner e disse-lhe que queria aprender a fazer movies (conta Benjamin T. Jackson na Film Quarterly). Comprou uma câmara e foi para uma praia, em Santa Mónica, onde filmou os veraneantes, as crianças a brincarem na areia e junto ao mar, mas especialmente os culturistas que se acumulavam naquela zona, dando-lhe a alcunha de Muscle Beach [Lerner estaria envolvido, nas fases iniciais de pré-produção do filme que consagraria Strick, The Savage Eye (1960) – co-realizado com Maddow e Sidney Meyers – e que se pode sumariar no seguinte ditame: “Se Vertov tivesse ido fazer um filme a Los Angeles nos anos 1960” – ainda os ecos das primeiras vanguardas…].
Um lado curioso desta mudança para a costa oeste dos EUA, e do qual Muscle Beach é o primeiro exemplo evidente, é a inauguração de um dos espaços mais recorrentes do cinema de Lerner: a praia.
Lerner, como disse, co-realiza e co-produz o filme. De novo, a sua marca mais evidente passa pela montagem, que assina sem interferências. O filme encontra, nos raccords de movimento entre os vários acrobatas, as gaivotas, as travessuras infantis e os corpos esbeltos um espaço lírico que no fundo canta uma ode ao corpo. Ode que além de hedonista é, também, marxista; ouvem-se, a certa altura, os versos: “I’m not saying that clothes don’t count/ money don’t help or that bread don’t count/ but if we all sat down to write our true confessions/ we have to own up that we don’t own much possessions/ Just a body, that’s what we all got, more or less.” Se alguma coisa fica, realmente, de Muscle Beach é a inocência e frescura de um retrato que documenta a felicidade, a tranquilidade e a harmonia de uma comunidade que encontra na beira mar um espaço de comunhão[5].
Um lado curioso desta mudança para a costa oeste dos EUA, e do qual Muscle Beach é o primeiro exemplo evidente, é a inauguração de um dos espaços mais recorrentes do cinema de Lerner: a praia. A partir desta romagem, a praia surge em força nos seus filmes, quase sempre como espaços de instabilidade, local onde se dá uma viragem, onde se evidencia um problema. Em Edge of Fury, é na praia que quase todo o filme decorre, mas é no areal que a obsessão do protagonista surge, pela primeira vez, como problemática e até perigosa (exactamente porque essa obsessão trabalha segundo um forte escopo moral que o calor e os corpos desnudos não favorecem). Em Cry of Battle, a correria dos dois homens que protagonizam o filme (aos quais se junta uma deslumbrante Rita Moreno) – e que os faz saltar de perigo em perigo ao longo de todo o filme – termina no areal. É lá que a suposta paz é encontrada, onde a convivência se amansa e os perigos da guerra existem apenas a uma distância segura. Só que não: a aparente pacificação cedo descarrila e percebemos que aquele não era senão um falso final, antecipando o definitivo e também mortal.
A sequência da praia de Studs Lonigan é, de novo, um momento de fim de relação, desta feita entre o jovem rapaz que protagoniza o filme e a rapariga que gosta dele (sem ele gostar dela). O namoro morre na praia, numa discussão sem sentido. Mas o filme voltará à praia, com o seu protagonista, para uma corrida junto à rebentação, com chuva, música dramática e as lágrimas escorrendo pelo rosto, quando ele se arrepende e procura o perdão dela (em vão). Já a cena de praia mais divertida – porque também do filme mais divertido de Lerner – acontece em Murder by Contract. Esse filme parece traduzir auto-biograficamente a migração entre costas do próprio Lerner, ao fazer do assassino contratado do filme um equivalente turista, que vai passar uns tempos a Hollywood para resolver um odd job. Durante os primeiros dias – uma semana – o assassino não se preocupa em pôr as mãos na massa (impacientando os seus handlers) e faz tudo menos congeminar o suposto homicídio que o traz àquela terra soalheira. Entre esses passeios está uma curta ida à praia, que inclui barbatanas e tudo.
C-Man é, de todos os filmes de Lerner, o mais frágil porque também débil são os seus meios. Mas, como em toda a série B (onde Lerner sempre, ou quase sempre se moveu), a falta de meios serve apenas para revelar o engenho do cineasta. No filme de 1949 encontram-se vários momentos desses, em que a inventividade se associa aos tricky set-ups para devolver airosas saídas. Uma delas dá-se aquando da viagem de avião de Nova Iorque para Paris: simplesmente encontramos um passaporte, nas mãos de um profissional de alfândega que inspecciona e o devolve, aproximando o objecto da câmara até que esta se encontre totalmente obstruída, ponto no qual o passaporte se afasta, de novo, para a composição original, sendo que agora o funcionário de alfândega já comunica em francês. Uma simplicidade aterradora que descreve uma viagem de avião num plano aproximado de um documento, ou melhor, que a descreve através de uma elipse entre dois momentos reflexos.
A violência no cinema de Lerner é, muita vezes, coisa gráfica, quase gore. O que choca com a qualidade elíptica das suas narrativas. Com a morte não há elipses, pelo contrário, há uma vontade de choque, de incómodo.
No entanto, C-Man está poorly written com os seus hard boiled dialogues e os seus lugares-comuns, mesmo quando tenta dar a volta ao filme noir com um certo humor seco e discreto (o primeiro plano do filme é o de um detective de gabardina a molhar o seu donut no café). O que fica, no entanto, é a violência e a forma como esta nos é apresentada de forma cruel, quase impassível. Aliás, o filme é profundamente anti-romântico, despachando em poucos minutos o mais naïve dos seus personagens numa cena de pancadaria incrível na sua duração e agressividade (enquadrando Lerner o assassino observando o seu morto com uma faixa no fundo onde se lê Welcome Home Love). A secura repete-se numa outra cena de “morte” num avião, toda passada por detrás de uma cortina, filmada em plano geral – apenas sustentada pelos vai-e-vem dos personagens ao longo do estreito corredor. E num filme de gangsters só mesmo no final é que se ouve um disparo, até então tudo se trata à força do punho ou da lâmina, havendo até uma cena de “barbeiro” que parece ter sido o balão de ensaio para a conhecida sequência logo na abertura de Murder by Contract. O filme anuncia alguns dos motivos mais típicos das séries B’s de Lerner, em particular os seus noirs, a saber: além da violência, a pouca compaixão por mulheres (a violação é um tema recorrente, e pouco importa a idade, não há piedade, nem mesmo para senhoras idosas, vide as sequências finais deste C-Man ou de Edge of Fury), o álcool como simultaneamente a salvação e o caminho para a ruína (em C-Man é literalmente o whiskey que contem a resposta sobre quem é o homicida e como tal é através dele que o criminoso é apanhado) e o teatro de sombras como espaço plástico da encenação da tensão.
A violência no cinema de Lerner é, muita vezes, coisa gráfica, quase gore. O que choca com a qualidade elíptica das suas narrativas. Com a morte não há elipses, pelo contrário, há uma vontade de choque, de incómodo. Depois de C-Man todos os seus protagonistas – nas longas-metragens – são moralmente dúbios, para não dizer simples anti-heróis. Vince Edwards em Murder by Contract e City of Fear interpreta indivíduos aos quais a bússola da moralidade foi desregulada. O assassino contratado do primeiro diz mesmo “sinto apenas calor, frio, sono e fome”. Aqui não há espaço para o remorso, para a moral ou para o peso da consciência. O ladrão do segundo filme cedo se faz também homicida, afundando com ele tudo aquilo com que se cruza (ele que carrega – literalmente – a morte consigo). Em Edge e Cry, a amoralidade resulta ora da doença mental, ora do stress de guerra, mas independentemente dos justificativos, tem como consequência a morte, e nunca é acidental, é o homicídio (resultado de uma crise psicótica ou de um racismo internalizado, respectivamente). Também em The Royal Hunt se conta a história de um colonizador espanhol (o conquistador Francisco Pizarro) que mata, quase indiscriminadamente, o povo indígena do qual procura extrair o ouro (ainda que, desta feita, o peso da consciência se abata sobre ele – e, ainda assim, há tempo para o assassinato do rei Inca, mesmo que esse resulte de um “problema” teológico).
O filme seguinte de Lerner é Man Crazy, a única das suas longas que não consegui ver e que segundo David Thomson, em The New Biographical Dictionary of Film, está “aparentemente perdida”. Paradoxalmente, esta é talvez a primeira obra – e é muitas vezes credita como a sua primeira obra, de facto – que instaura o seu nome como cineasta, até mais, talvez, como auteur. Isto porque em Julho de 1953 sai no 25.º número dos Cahiers du cinema um longo artigo de Chris Marker intitulado «Lettre de Hollywood: sur trois dimensions et une quatrième», onde o realizador-por-vir relata dois filmes que o impressionaram nas bandas de lá do mundo: House of Wax (1953) e Man Crazy. Sobre o filme de Lerner, Marker escreve que “não tem mais que duas dimensões, mas tem uma história [a tal quarta dimensão do título]”. O texto resume o percurso de Lerner no documentário e conclui que os produtores/argumentistas encontraram um realizador que “procurava a ocasião de tratar uma ‘história’ de forma documental”.
Marker parecia compreender imediatamente a importância que o olhar documental teria na ficção de Lerner, e logo depois refere que o filme inclui uma “muito bela apresentação de Hollywood em puro cine-olho”, o que evidencia a componente vanguardista do seu documentarismo. Como se não bastasse, ainda acrescenta que “Irving Lerner encontra-se [por causa do orçamento reduzido, da filmagem em exteriores, da escolha de actores não-profissionais e pela perspectiva documental] nas mesmas condições do ‘neo-realismo’ e filmou uma película que merece todas as virtudes associadas normalmente a essa etiqueta.” Concluindo com: “a realidade não permite qualquer esperança, ela é simplesmente sórdida. Não creio que Yordan e Harmon [os produtores/argumentistas] sejam menos honestos, e Lerner menos ‘realista’, recusando-se, assim, a fazer do naturalismo um álibi para o contágio do desespero.” O cinema de Lerner é portanto, aos olhos de Marker, um cinema duro no seu retrato intransigente da realidade.
Se Lerner acabou por não figurar no panteão da política dos autores, o certo é que a sua presença não deixou de colocar o pé na porta.
O certo é que o texto de Marker seria recordado ao longo de vários anos, sempre que alguém nos Cahiers escrevia sobre a obra de Lerner – o que, sejamos realistas, não aconteceu muitas vezes. Encontrei três artigos dedicados a Lerner nos números subsequentes: François Weyergans, em 1960, sobre City of Fear e Studs Lonigan; Michel Delahaye, em 1965, numa pequena cápsula sobre Cry of Battle; e Ralph Crandall, em 1967, sobre a exibição de Murder by Contract e Cry of Battle na televisão. O que resulta destes textos é uma imagem extremamente positiva de Lerner enquanto auteur – de notar que a expressão (e a ideologia) “política dos autores” se oficializa em 1955 no conhecido texto de Truffaut –: “Lerner tem um lugar mais que honrado no cinema americano”, diz Weyergans, afirmando mesmo que é um cinema “onde o lirismo prevalece sobre a inteligência, como no último filme de Fuller ou nos poemas de Ezra Pound.”; já Crandall é mais comedido e fala de uma carreira fugitiva, mas salienta a “inteligência da mise en scène”; e Delahaye fala de sinceridade, talento, força e “muita empatia”. O que isto demonstra é que se Lerner acabou por não figurar no panteão da política dos autores, o certo é que a sua presença não deixou de colocar o pé na porta.
Se algum filme colocou Lerner nos anais da história do cinema (mesmo que talvez apenas num parêntesis ou numa nota de rodapé) foi, definitivamente, Murder by Contract. O que não deixa de ser curioso quando a incursão pela série B e em particular pelo noir dificilmente se poderia antecipar. Mas exactamente por isso, pelo “desvio inesperado”, o filme surge como objecto disruptivo na produção low budget desse final da década (o filme é de 1958). Há evidentemente um molde: o protagonista gun for hire, sem escrúpulos que é encarregado de matar um desconhecido e debate-se com as dificuldades exteriores e (havendo-as) também as interiores. No entanto há aqui uma secura quase niilista, uma agressividade desesperada, e uma luminosidade que não deixa de ser altamente irónica.
O filme é um dos pivots da análise de Edward Dimendberg no livro Film Noir: The Spaces of Modernity – que logo no título anuncia as suas intenções: perceber de que modo o cinema clássico americano, em particular o noir (de baixo orçamento) configurou já o cinema moderno que despontava no final dos anos 1950 e no início dos anos 1960. Uma das chaves analíticas do argumento de Dimendberg passa pela geografia destes noirs modernos; quando os filmes clássicos se organizavam em redor de uma urbe cinzenta e claustrofóbica, os noirs modernos caminharam para fora, em movimento centrífugo, para o subúrbio (que é tanto um espaço arquitectónico diferente, como um lugar de diferentes arquétipos sociais, diferentes papeis de género, etc.). De certo modo, o noir clássico está mais próximo do expressionismo alemão (e as suas história de espiões, polícias, detectives e assassinos) e o noir moderno, mais influenciado pela realidade do pós-guerra (e cinematograficamente mais próximo do neo-realismo, por exemplo). E, mesmo não gostando, Bertrand Tavernier identifica esse câmbio na natureza do género fílmico, “a ausência de qualquer desculpa moral, [e] a atitude malsã do herói perturbam um pouco as regras do jogo do género.”
Jay Carr descreve-o como “clean, lean and mean, tight, tense and satisfyingly reverberant” e termina o seu texto com uma súmula certeira: “um film noir feito film blanc.” Esta brancura de Murder by Contract provém da claridade com que descreve o negrume da tarefa de matar, ou pior, o negrume de um homem que perdeu a moral, que se branqueou perante o certo e o errado, que lixiviou a alma. Para ele, o assassino, quase tudo foi expurgado – “I don’t even carry a room key”, diz quando lhe perguntam se anda com uma arma –, reduzido a uma existência contabilística: a contabilidade do tempo (literalizada pela forma como Lerner descreve o passar dos dias através das moedas que Edwards entrega ao estafeta cada dia) e a contabilidade do dinheiro (que, dado o ofício de matar, está intimamente ligada a uma contabilidade da vida, ou da morte).
Como diz alguém a certa altura, no filme, “if he is not stupid, he is greedy”, e se recordarmos as origens proletárias e marxistas de Lerner percebemos que esta é, afinal, uma parábola sobre o capitalismo, sobre o lucro fácil, sobre o poder corrosivo do dinheiro. Ao mesmo tempo, mais do que simplesmente isso, o trabalho de contractor para Edwards surge vidrado por uma espécie de mantra da realização pessoal: ele não mata simplesmente por necessidade, ou por ganância financeira, ele fá-lo num jogo de forças que estabelece de si para consigo, qual desafio mortal que encontra na morte do outro a confirmação de uma capacidade, de uma propósito. E sim, aqui explana-se o niilismo do filme, que encontra na ideologia da ascensão pessoal e da busca pela felicidade (inscritas no ADN norte-americano) a própria falência de um sistema estagnado e em putrefacção.
Em Murder by Contract, a televisão é literalmente uma arma.
A juntar a isto, o filme tem ainda tempo para a caseira misoginia (que é no fundo o que marca o fim do homicida, é pela misoginia que morre o peixe… o misógino) que se traduz em todas as mulheres do filme serem ou vaidosas ou bêbadas, ou histéricas ou estúpidas – como já disse, não é bem acidental que num conjunto de filmes tão reduzido, como é a obra de Lerner, haja tantas violações e assassinatos de mulheres. E também, paradoxo dos paradoxos, num filme sobre a facilidade da morte, há, a certo momento, um discurso pacifista anti-armas que termina, pouco depois, numa loja de armamento a avaliar uma metralhadora. Ah, e também um comentário muito subtil sobre o surgimento da televisão e dos seus perigos (para os indivíduos e para a indústria do cinema), o que faz com que, provavelmente pela primeira vez na história do cinema, haja uma tentativa de homicídio com um televisor. Em Murder by Contract, a televisão é literalmente uma arma.
Mais do que qualquer outra coisa, o filme de Lerner vive do exercício da coolness. É aí que se encontra o nódulo central de Murder, no modo como nos faz gostar de um personagem terrível apenas pelo modo como o apresenta. No seu glamour de sarjeta, Vince Edwards suporta um filme que usa calça vincada, isto é, que bamboleia elegantemente as suas composições, a sua montagem sincopada e os seus diálogos directos. Como escreve Kevin B. Lee, sobre o filme, Lerner introduz dois sidekicks que “praticamente servem como substitutos em campo do espectador, analisando o herói do filme (…). Espantados com a relutância super-cool de Claude em cumprir o seu trabalho, os dois comparsas participam em longos jogos cómicos de dá-e-tira, um dispositivo brilhante que se apropria da frágil suspension of disbelief do espectador, dando-lhe voz.” A coolness é assim dispositivo narrativo, mas também sintoma de uma existencialismo vazio, quase desesperado, que encontra na forma a sua única razão de ser (não é bem por acaso que o primeiro plano de Murder seja de Edwards defronte a um espelho e que a arma final do crime seja uma – elegante – gravata).
Juntamente com Murder, há a óbvia double bill com City of Fear, que Tavernier resume como “dois gélidos policiais com heróis neuróticos, penosos, [e] profissionalmente cerebrais.” E sim, são isso tudo. Sendo que City é ainda mais sinuoso na sua trama, assentando logo numa fuga da prisão à qual nunca assistimos, mas também numa sinuosidade da câmara que se põe a cavalo do ombro do operador e filma (em directo?) a acção – em particular em planos dentro de carros – figura fundamental nestes dois filmes, não fosse Los Angeles a cidade do automóvel. Se Lerner sempre trabalhara a profundidade de campo nos seus filmes, em City tudo parece um exercício de dramaturgia que não pensa noutra coisa senão na ocupação do espaço em múltiplas camadas de acção.
Se o espelho era figura central em Murder, como espaço de auto-contemplação, onde a imagem reflectida confirmava a imagem que o herói tinha de si mesmo, em City esse espelho exibe uma imagem que o herói não suporta.
Também a montagem descobre raccords muitíssimo virtuosos, como aquele entre as mãos vazias do polícia (que nada consegue) e as mãos cheias dela (com aquilo que o polícia procura). A banda-sonora jazzística manifesta uma noção de ritmo de montagem também ele na vertigem da improvisação e a obsessão (visual e narrativa) com sapatos parece apontar para um bicho carpinteiro que ameaça, a qualquer momento, roer a paciência e colocar-se aos pulinhos. Aliás, o personagem de Edwards não pára, está em constante movimento, não percebendo que a sua fuga não o coloca mais longe do perigo, pelo contrário, só os aproxima ainda mais. O MacGuffin é um cilindro que Edwards julga cheio de heroína, mas que na verdade está cheio de uma sustância tóxica e radioactiva. Assim, aquele que era o seu bilhete para uma vida tranquila é, na verdade, o caminho da sua ruína – a moral da história, não há atalhos para a felicidade, o sucesso e a vida honrada.
Na verdade, o filme é bem mais complexo que isso. Se estes são dois filmes sobre a ganância e o easy money – que de easy tem muito pouco… –, é importante também salientar que aqui a radioactividade revela-se como uma metáfora bem mais poderosa sobre os problemas da representação (ou melhor, mais que uma metáfora, é, antes disso, um catalisador de uma crise de auto-representação). O cilindro radioactivo parece ser o dispositivo escolhido por Lerner para desmontar a coolness do seu protagonista e do seu actor. Aquele pequeno objecto desmonta toda a presença galã de Edwards, fá-lo suar, tropeçar, ficar agoniado, frágil…
Se o espelho era figura central em Murder, como espaço de auto-contemplação, onde a imagem reflectida confirmava a imagem que o herói tinha de si mesmo, em City esse espelho exibe uma imagem que o herói não suporta. Por isso, Edwards atira o cilindro contra a sua imagem reflectida, procurando destruir a sua imagem exterior utilizando para isso o veículo que o esmorece – não percebendo, no entanto, que o cilindro funciona apenas como revelador de uma fragilidade interior, escondida por debaixo da pompa de uma masculinidade agressiva. Esse desajuste entre a imagem que o herói tem de si e aquela que transparece para os outros é, no fundo, o tema subliminar de City e o tema objectivo de Edge of Fury (e o grande assunto do cinema de Irving Lerner).
Apesar de ter estreado apenas em 1958, esta co-realização com Robert Gurney, Jr. terá sido rodada vários anos antes. Nela encontram-se alguns dos ensaios que o realizador iria concretizar plenamente nas longas subsequentes. Em particular, o clímax homicida de Murder que parece decalcado de Edge, ou a oscilação entre os dito planos amputados (tão próximos dos personagens que os acabam segmentando em postas) e os planos muitíssimos longínquos que enquadram os personagem num espaço de total isolamento (e total desolação). O interesse de Edge of Fury – que é possivelmente o melhor dos filmes que vi de Lerner – é que é o seu título mais clássico. Aqui o arco narrativo, o desenho de personagens, a narração, a câmara e os trabalho de cena, tudo existe perfeitamente dentro do classicismo. Ainda assim, já se anuncia qualquer coisa mais. É por isso um filme-charneira, pela forma híbrida como se coloca entre movimentos e estéticas (ou, simplesmente, a prova de que o modernismo dos filmes subsequentes resulta em grande medida das restrições de produção – Murder, City e Studs foram rodados em muito poucos dias, os dois primeiros em menos de 10 e o terceiro pouco mais que isso –, e claro, terá também que se ter em conta a co-realização de Gurney, Jr. que, além de assinar o argumento, foi igualmente produtor do filme).
Todo o filme é tomado por uma componente onírica uma vez que se contrói in media res, num grande flash back que nos vai reconduzir ao início (de novo, uma fórmula muito clássica). Há, já aqui, uma rispidez nos cortes, nas durações dos planos que choca, por sua vez, com a veia romântica da narração que fala de “cumprir os seus sonhos” e “não saber a diferença entre sonhos e realidade”. O filme é, pois, o resultado dessa duplicidade entre universos e realidades, uma vez que quem nos narra a acção (e fala de sonhos) é, nem mais nem menos, que o médico psiquiatra que acompanhou o protagonista.
Como já tinha anunciado, este é um filme que literaliza essa oposição entre a imagem auto-produzida do herói e aquele que outros dele recebem (confronto aqui acentuado pelo facto de o herói sofrer de uma condição psíquica que provoca uma compreensão disfuncional da realidade, filtrada pela obsessão e pela paranóia – uma espécie de autismo misturado com obsessão-compulsão que perturba o natural correr das relações sociais, criando dependências e expectativas infundadas). Como o herói de Studs Lonigan, há aqui uma juventude borbulhante (e borbulhenta), à beira de explodir (em pus). Paradoxalmente o rapaz pinta, para se acalmar, deusas hindus que refletem a calma e a pacificação com o mundo. Também como em Studs há um embeiçamento por uma rapariga (inacessível e comprometida) e a desconsideração de outras raparigas que o desejam (que ele rejeita de partida – de novo, o desajuste entre imagens interiores e exteriores)[6].
Os primeiros sintomas da perturbação passam pela auto-mutilação (com uma alforreca, na praia), mas cedo se transferem para outras realidade extra-corpóreas, sendo a mais interessante a pintura. O nosso herói é um “pintor não comercial” – diz-nos “everyone can paint over longed legs and distorted hips” – e a pintura, para si, funciona (como para o cinema para o cinéfilo) como forma de compreender e organizar o mundo. A certa altura ele explica que a pintura é a forma ideal para perceber se o pintor conhece realmente quem está a pintar e que o quadro finalizado será a prova dos nove dessa intimidade. Numa das cenas mais destrutivas, em plena crise histérica, ele agarra num pau de grafite e risca as paredes da casa no sentido longitudinal, como que dividindo a moradia em dois (a parte de cima e a parte de baixo – linha indicativa para os enquadramentos amputadores de Lerner?).
Há, deste modo, na ponta do pincel ou da grafite uma espécie de ponto de fuga que dá continuidade à interioridade do personagem. Um escape que se traduz no desenho e na pintura, tornando-a, assim, espelho de uma realidade interna. Por isso, o quadro da amiga que começa a pintar na praia torna-se – depois de um discussão – no alvo do massacre transformando a pose doce da veraneante numa figura grotesca e disforme. Não é tanto que o pintor traduza a sua fúria violentando a imagem da amiga (num exercício de transferência), é antes que essa imagem disforme corresponde a sua “verdadeira” visão do mundo – ele vê-a de facto como ser monstruoso.
Em Edge of Fury, o arco narrativo faz-se entre o totó e o maníaco, como se só a loucura pudesse finalmente ultrapassar os limites impostos sobre a sua condição social e sexual.
Há, neste filme, uma antecipação de dramas psicológicos que marcariam profundamente o cinema dos anos 1960, por exemplo Psycho (Psico, 1960) – especialmente na forma como recorre aos close-ups – ou de, por exemplo, The Servant (O Criado, 1963) de Joseph Losey – na descrição da obsessão progressiva e da inversão de papéis. É que também o nosso protagonista tem uma sexualidade não evidente, confundindo-se inveja com desejo e nojo com atracção, e também aqui há uma componente classista em que o rapaz é tratado como sub-humano (um não-homem, sem sexualidade), apenas útil como servil criado, descrito a certa altura como “he was a bit on the feminine side, wasn’t he?”.
Portanto, o arco narrativo faz-se entre o totó e o maníaco, como se só a loucura pudesse finalmente ultrapassar os limites impostos sobre a sua condição social e sexual. Porque afinal essa loucura não é tanto uma caminho para fora (da sociedade, da família), é, pelo contrário, um caminho para a integração (pela sociedade, pela família). Isto é, a consequência final do seu comportamento tresloucado é o afastamento daqueles de quem mais gosta (porque a uns mata e a outros assusta), mas só assim a sua loucura é capaz de transfigurar um real que o maltrata num outro que o acolhe (porque só a ele pertence). Exemplo perfeito disso é o quadro de família que o protagonista pinta em que coloca a mãe, a filha mais nova, a mais velha e o seu namorado. Quadro esse que, no final do filme encontraremos “remendado”, estando na posição do namorado o auto-retrato do próprio pintor. Esse quadro é a ilustração da sua fantasia (afinal não era ele que confundia sonho e realidade?) tornada real na sua mente perturbada. Aí, finalmente, deixa de haver oposição entre as duas imagens do herói, elas são, finalmente, uma só. Um encontro entre realidade e fantasia só possível pela negação de uma delas – neste caso, da segunda.
Dado o âmbito deste Dossier, não discorrerei mais pormenorizadamente sobre as obras dos anos 1960 e 1970 – também porque já fui falando sobre elas ao longo deste texto que já vai longo –, mas deixo apenas a pista de que a questão da dessincronia entre imagens e representações toma diferentes contornos, especialmente em The Royal Hunt of the Sun quando a tónica é colocada na linguagem e na relação entre caracteres e os seus significados (o momento mais interessante desse filme surge quando o rei Inca, que é deus para o seu povo, pede que lhe escrevam a palavra “God” na unha, para que assim se confirme, perante todos – mesmo aqueles que não acreditam na sua divindade – que ele é realmente um God).
A ideia de amputação – que perpassa toda a obra de ficção do realizador – aplica-se à própria carreira de Lerner, só que de um modo distinto, não tanto no sentido da castração, mas no sentido da poda.
Irving Lerner é um homem difícil de caracterizar, e mais que o homem, o seu cinema é disperso, diverso e insuficiente para compreendermos totalmente qual era a sua imagem do mundo, ou mais importante, a sua imagem do cinema. Mas se assim é, certo é também que aquilo que está disponível forma um corpus bastante interessante, cheio de conexões ainda que muito cavernoso. Lerner é assim um desses odd jobs man que fazendo de tudo um pouco para ganhar a vida (junto do cinema), e nesse percurso não planeado, de tarefa em tarefa, de biscate em biscate, acabou atravessando momentos e movimentos fundamentais da história do cinema, em particular na história do cinema independente norte-americano. Das primeiras vanguardas no núcleo nova-iorquino em torno da Film and Photo League, passado pelo documentário politizado pós-depressão e de propaganda durante a guerra, para chegar à série B na soalheira costa do pacífico e, daí, continuar para a televisão (como quase todos os realizadores-tarefeiros clássicos), por fim, para a produção de western spaghettis em Espanha nos anos 1970. Uma carreira que pontua todo o cinema do final do mudo ao início do pós-moderno.
Enquanto realizador, Lerner é um verdadeiro cineastas, na sua acepção primeira, dada por Louis Delluc. O Luís Mendonça, na conclusão do seu já citado livro, recupera um texto do realizador, de 1923, em que define cineasta como aquele fez “alguma coisa pela indústria artística do cinema.”: isto inclui realizadores, produtores, animadores, industriais, críticos, programadores, exibidores, etc.. Irving Lerner foi, nesse sentido, um cineasta total, atravessando toda a indústria e deixando nela uma marca ténue, mas ainda assim uma marca. De certo modo, a ideia de amputação – que perpassa toda a obra de ficção do realizador – aplica-se à própria carreira de Lerner, só que de um modo distinto, não tanto no sentido da castração, mas no sentido da poda: cada ramo novo pelo qual Lerner enveredou seria posteriormente amputado, sendo que esse corte favoreceu o crescimento doutro ramo, noutro sentido, agora ajudado pelas experiências anteriores. Lerner é assim um realizador que floriu na amputação (estética, financeira, económica, social, classista, ideológica…), como aliás todos aqueles que como ele viveram na margem de um sistema artístico-industrial como foi a Hollywood clássica.
[1] “Phillip Yordan, who acted as a notoriously unscrupulous front for many blacklisted artists, employed Lerner as his go-to fixer.” escreveu Kyle Westphal em “Irving Lerner: A Career in Context“. E Bernard Gordon, em Hollywood Exile, or How I Learned to Love the Blacklist escreveu “Yordan (…) was already a legend in Hollywood. With about fifty screenplays to his credit (an improbable number, as one reviewer acidly remarked), Jordan was reputed to have a ‘script factory’. Further, wether for convenience or otherwise, he was known to hire blacklisted personal. Irving was on blacklisted filmmaker who had word with Jordan on and off for years.”
[2] Pete Seeger protagonizou uma curta co-realizada entre Irving Lerner e Willard van Dyke de nome To Hear My Banjo Play (1947) – que se encontra em domínio público. Seeger é a modos que uma figura icónica do movimento anti-McCarthy, no obituário da New York Times lê-se: “In 1955 he was subpoenaed by the House Un-American Activities Committee. In his testimony he said, ‘I feel that in my whole life I have never done anything of any conspiratorial nature.’ He also stated: ‘I am not going to answer any questions as to my association, my philosophical or religious beliefs or my political beliefs, or how I voted in any election, or any of these private affairs. I think these are very improper questions for any American to be asked, especially under such compulsion as this.’ Mr. Seeger offered to sing the songs mentioned by the congressmen who questioned him. The committee declined.”
[3] Lerner trabalhou como realizador de segunda unidade no filme …One Third of a Nation… (1939), naquele que seria o seu primeiro trabalho na rodagem de um filme “industrial”. Este filme, distribuído pela Paramount Pictures e rodado no estúdio nova-iorquino da produtora, é já um filme de denúncia. Descreve as péssimas condições de vida de grande parte da população urbana no início do século (a viver em rat holes). O título resulta da expressão usada pelo presidente Roosevelt para se referir à percentagem substancial da população norte-americana “ill housed, ill clad and ill fed“.
[4] Segundo a Wikipedia, referindo-se ao livro Venona: Decoding Soviet Espionage in America de John Earl Haynes e Harvey Klehr: “Lerner was allegedly involved in espionage on behalf of Soviet Military Intelligence (GRU); Arthur Adams, a trained engineer and experienced spy who moved to the Soviet Union in 1946, was Lerner’s key contact.” Lerner terá sido “apanhado” a fotografar o acelerador de partículas sem autorização.
[5] O filme competiu no festival de Cannes pela melhor curta, foi nomeado para o Bafta e seleccionado para vários outros festivais, nomeadamente o festival de Edimburgo, em 1951, onde foi descrito como um perfect little film.
[6] E como em Murder há aqui uma pequena tirada contra a televisão – uma cena num estúdio em que se grava uma publicidade – e se afirma, aquilo que nesse filme – e em City – era subentendido, que os problemas do herói resultam do stress pós-traumático como veterano da Segunda Guerra Mundial.