Parecendo que não, Sergei Loznitsa, que é um dos nomes marcantes do cinema de autor contemporâneo, tem com Krotkaya (Uma Mulher Doce, 2017) apenas a sua terceira longa-metragem de ficção. É isto sinal da velocidade com que se constrói e destrona o olimpo do cinema de autor nas últimas décadas (Martel e Gomes têm apenas “quatro” filmes cada um…), mas também de que nem só de cinema narrativo com mais de uma hora se faz um cineasta. Isto porque o realizador russo, de origem ucraniana, é antes de mais um documentarista. Um olhar político (que perpassa as ficções, naturalmente), é certo, mas também, um olhar observacional sobre a história, em particular, a história dos horrores da união soviética – e aqui não haja dúvidas: a objectiva de Loznitsa só acerta quando apontada ao nacionalismo russo (e todos os seus detritos). E digo só acerta, porque quando assim não é, surge, por exemplo, O Milagre de Santo António (2012), encomenda do Curtas de Vila do Conde, que se embrulha num exotismo etnográfico a caminhar para o bocejo (mas que, ainda assim, encontra nos rituais religiosos um escape denunciatório).
A primeira ficção Schaste moe (A Minha Alegria, 2010) era uma espiral de violência sobre a “natureza” do povo russo – tudo começava com uma longa sequência em que o relógio de cozinha fazia tique e taque apesar de nele não poisarem quaisquer ponteiros – e a ideia de que existe uma viscosidade no tempo que o torna imune à mudança e que favorece a preservação do mal (banal ou nem tanto assim). Depois, V Tumane (No Nevoeiro, 2012) era uma espécie de filme de guerra metafísico sob o lema “em tempos de guerra quem não consegue ser morto, deve matar-se.” Agora, com Krotkaya, Sergei Loznitsa inspira-se no conto homónimo de Fiódor Dostoiévski, que Robert Bresson já adaptara como Une femme douce (Uma Mulher Meiga, 1966), para encontrar um melodrama de pontadas surrealistas (o surrealismo escapista do desespero face à burocracia, ao oportunismo, à maldade enraizada) que é uma potente parábola política. E que juntamente com Victory Day (2018) – filme posterior a este, apresentado no início do ano no festival de Berlim (e na última edição do IndieLisboa), sobre os trâmites do dia em que os emigrantes russos que vivem na Alemanha celebram a tomada da cidade aos nazis pela União Soviética, dia 9 de Maio (filme igualmente bocejante) – prossegue a sua desmontagem das ruínas identitárias do regime soviético.
Krotkaya surge como o seu filme mais esperançoso. Aqui abre-se uma brecha no negrume geral da sua visão do mundo: uma brecha irónica, é certo, maldosa até, mas ainda assim uma brecha.
Uma mulher deixa de conseguir contactar com o seu marido, que se encontra encarcerado. Com o intuito de saber o que se passa, mergulha numa vila onde a corrupção, a burocracia e violência são o “pão nosso de cada dia”. Esta é a premissa, e já aqui se destacam os dois centros nevrálgicos do filme, a saber: a rotina (na sua vertente cega, imutável e indiferente à excepção) e a coralidade. O acontecimento que espoleta a acção de Krotkaya prende-se com essa dúvida – nunca resolvida – do estado do marido e do porquê de a encomenda não lhe ter sido entregue. Mas depressa isso se esfuma para a “luta” – entre aspas, porque mais passiva protagonista era difícil… – pela própria sobrevivência onde o altruísmo, a honra, os ideias e tudo mais, se veem reduzidos aos princípios básicos do não morrer e do ter onde pernoitar (a sequência junto da associação de direitos humanos é uma coisa escabrosa no retrato que o realizador pinta da impotência e do conformismo político e social daqueles que “deviam” envergar imperialmente esses valores).
A estrutura narrativa, em que a criatura gentil se vai cruzando com diversos grupos de gente (tanto os utilizadores do autocarro e do combóio, como o taxista, os funcionários da prisão e aqueles que esperam com ela pelo atendimento, os traficantes de interesses, os alcoólicos da pensão…), faz do filme um ramerame de episódios que se acumulam. Desse acumular surge a noção de coralidade que referi – o maior dos achados do filme, e aquilo que Loznitsa melhor explora. Chamo a atenção para os planos de conjunto, em que convivem cinco, seis, sete ou mais pessoas num mesmo enquadramento, e tudo se orquestra através de um emaranhado de linhas de diálogo e de uma mise en scène que pensa a profundidade de campo como território que os figurantes ocupam em primeiro plano. Como se percebendo a fragilidade daquela mulher, tudo e todos se lhe sobrepusessem (narrativamente, claro está, mas também formalmente).
Mas se a depressão e o niilismo parecem ser estados de alma no cinema do realizador – que como adjectivou Carlos Natalio, aquando de V Tumane, cheiram um tanto ou quanto a bafio –, Krotkaya surge, surpreendentemente como o seu filme mais esperançoso. Aqui, pela primeira vez, abre-se uma brecha no negrume geral da sua visão do mundo: uma brecha irónica, é certo, maldosa até, mas ainda assim uma brecha. E Krotkaya só levita quando chega à sequência final. A qual repensa a própria estrutura episódica pelo modelo dos louvores oficiais que os regimes autocráticos sempre gostaram de propagandear. Uma revisitação de todos esses secundários que antes conhecêramos e que agora comentam a sua própria posição dentro da “grande narrativa” das coisas, isto é, do seu papel na construção do destino daquela mulher.
Este estertor onírico – acentuado pelas cores contrastadas, pelos brilhos puxados, pela cenografia de filme de fadas – acontece a partir da estação de comboios que fora o acesso aquele mundo (de fantasia? de pesadelo?) e que parece ser o seu único ponto de fuga. Espaço que não é inocente dentro da filmografia de Loznitsa. Uma das suas primeiras curtas-metragens, Polustanok (The Halt, 2000), tratava exactamente deste lugar sem tempo onde a espera se instala. Nesse exercício de pouco mais de 20 minutos, o realizador capturava (num branco-e-preto esfumado – onírico) pessoas adormecidas em estações de comboio, entrecortadas por um comboio nocturno imparável. Esse retrato voyeurista da espera – uma espera sem fim, sem saída, um marasmo de corpos dolentes, cansados – é aqui recuperado numa autocitação, reduzindo à unidade o manancial de sonhos que aquele coro de ressonos continha em potência (nesta altura os bocejos do seu cinema não eram ainda bocejantes…). Essa operação abre a obra do realizador, por re-coreografar os seus primórdios mais experimentais dentro do espaço da “pesada” ficção, permitindo rever a sua obra documental à imagem da fábula e, no outro sentido, as suas fábulas à imagem do seu cinema documental.