Quando entrevistado no Festival de Cannes aquando a exibição de À bout de souffle (O Acossado, 1960), Jean-Luc Godard disse, com um sorriso malandrino: “Tenho a impressão de gostar menos do cinema do que há um ano – simplesmente porque fiz um filme e foi bem-recebido. Portanto, espero que o meu segundo seja recebido muito mal para que eu queira voltar a fazer filmes outra vez.” Teve as suas preces atendidas. E de que maneira…
Godard realizou Le petit soldat (O Soldado das Sombras, 1963) como resposta à acusação que se fazia contra os elementos da nouvelle vague de se restringirem a histórias de cama e de burguesia, vilipendiando os problemas da época. O cineasta escolheu então falar da Guerra da Argélia pelos olhos de Bruno Forestier (Michel Subor), um fotojornalista envolvido com um grupo paramilitar extremista ao serviço da França, e da sua paixão por Veronica (Anna Karina, naquela que foi a primeira colaboração com o cineasta franco-suíço), uma dinamarquesa engajada com o lado oposto. Só que soube mal à censura gaulista a presença da tortura física no filme, o que atrasou o lançamento de Le petit soldat por 3 anos. E, quando finalmente estreado, foi criticado por ser confuso.
Le petit soldat (…) [coloca a] ambiguidade e angústia do noir diante de uma câmara contextualizada e movida pela moralidade do cinema europeu do pós-guerra.
É o primeiro ponto a discutir quando se fala da segunda obra godardiana. A “confusão” que o filme acarreta é característica do ponto-de-vista do protagonista, e, como apontou Godard em entrevista aos Cahiers du Cinéma, o facto de esta se transladar para a própria criação formal da obra não deve ser visto como um defeito, mas sim como uma virtude, dado que leva à partilha pelo espectador da subjectividade perceptual e mental de Bruno: “As questões estão mal perguntadas? Mas é, precisamente, a história de um homem que pergunta mal a si próprio essas questões.” Este estado de dúvida e incerteza é reiterado, metonimicamente, por diversas vezes ao longo do filme, como na evocação dos quadros cubistas de Paul Klee com as suas figuras irreconhecíveis e desordenadas (quase como auto-retratos oriundos da forma pouco nítida como Bruno se vê) ou quando ele se coloca diante do espelho e diz “Tenho a impressão do meu exterior não corresponder ao meu interior”. Ele é um dos vários existencialistas que assolam a obra do cineasta, incapaz de se relacionar com as circunstâncias externas de onde se vê colocado, tentando, a custo, compreendê-las na sua inadaptação, encontrando como único reduto temporário a efemeridade do amor.
Foi esta desordem interior que levou Godard, numa das várias palestras que concedeu na Universidade Concórdia em 1978, a exibir M (Matou, 1931) de Fritz Lang juntamente com o seu filme, para estabelecer a seguinte comparação: “O discurso de Peter Lorre quando ele se defende diante dos mendigos, em que diz algo que é de extrema confusão, é mais ou menos do mesmo género que o discurso de Subor no longo monólogo do quarto [perto do final] (…) diante de uma câmara acusatória, como alguém faz diante de um advogado ou de um psiquiatra.” Alinhando estas palavras com o parágrafo anterior, quando Bruno finalmente exterioriza o caos interno em que vive encarcerado, fá-lo defendendo-se do olhar julgador da audiência que, na sua colectividade, assume expectativas comportamentais com base apenas no que é mostrado externamente. Tal como ela está inapta em experienciar as vozes esquizóides que impelem a personagem de Lorre a cometer os actos homicidas no filme alemão (e, portanto, de compreendê-los), a audiência é incapaz também aqui de compartilhar as forças motrizes emocionais e psíquicas que alimentam a desvinculação ideológica permanente de Bruno.

M e Le Petit Soldat – A defesa diante de uma câmara acusatória.
Godard trata o seu tema político e angústia existencial como se fosse um noir [a grande inspiração foi, segundo o cineasta, The Lady from Shanghai (A Dama de Xangai, 1947)], introduzindo o espectador nesse território através da voz-off convidativa à memória de Bruno, como um flashback longínquo de quem se avalia retrospectivamente: “O tempo da acção passou: envelheci. Começa o tempo de reflexão.” Mas, ao invés de o desenvolver sobre um ambiente de nevoeiro e chiaroscuros característicos do género, constrói-o com uma espontaneidade documentarista, alicerçada na câmara hand-held e na forma como esta persegue o movimento das personagens, assim como na textura dos planos em sobre ou subexposição. Tal resulta em cenas de uma autenticidade tangível como, por exemplo, no momento em que Bruno é raptado, ou no instante final em que este comete um assassinato no meio da rua, cenas filmadas em plano geral e localizações reais (ao invés de estúdios) que reforçam o seu realismo. Le petit soldat progride “a ficção” com uma precisão “documentarista” pela colocação da ambiguidade e angústia do noir diante de uma câmara contextualizada e movida pela moralidade do cinema europeu do pós-guerra.
Chegamos então à sequência da tortura e, embora qualquer aproximação em analisá-la resulte em algo redutor, é numa tentativa de estudar os seus efeitos que dizemos que esta se desenvolve essencialmente em quatro tipos de blocos que se vão intercalando: A) exposição do estado de impotência de Bruno, recorrendo a panorâmicas abruptas que, ora detalham pormenorizadamente o aprisionamento do protagonista e parte do seu sofrimento (A1), ora oscilam sucessivamente entre a imobilidade deste e a posição de superioridade do torturador (A2); B) o método de tortura (e respectivas reacções), maioritariamente explicitado por planos fechados, como na queima dos fósforos nas palmas (B1) ou na cabeça coberta para waterboarding (B2); C) as evasões do cineasta à mostra da tortura, pelo recurso a panorâmicas de exteriores (C1) ou a planos médios / panorâmicas relaxadas com os torturadores em actividades rotineiras (C2); e D) a sua vertente política, estabelecida por vários tipos de planos constituídos por membros da FLN a ostentarem pequenos livros com as suas ressonâncias militantes, como Mao Tsé-Tung (D1) ou La Question de Henri Alleg, sobre os métodos tortuosos impingidos pelo exército francês (D2).
É possível concluir que há uma dicotomia proximidade / afastamento, visível / invisível da condição debilitada de Bruno, onde a “proximidade” é obtida por A) e B), o “afastamento” por C) e, de forma intermediária – presente em A) e C) -, os planos políticos de D). Ponto por ponto, se Godard recorresse ao corte ao invés dos movimentos abruptos em A), ocorreria uma perda parcial da respectiva espontaneidade, divergindo da impressão documental que a restante cena possui. A violência deste gesto de câmara não só incrementa o estado de antecipação na audiência, como também introduz um realismo jornalístico catalisador de uma aproximação inexorável ao protagonista manietado. De modo semelhante, se em B) recorre ao plano fechado é porque, mais do que mostrar, Godard pretende enfatizar a tortura, confrontando o espectador intimamente com o sofrimento físico do protagonista. Relativamente a C), as situações do quotidiano mostradas não deixam de causar repulsa e insegurança pela tranquilidade com que as personagens actuam, sensações reforçadas ainda pelo acompanhamento na banda sonora de uma peça de piano fornecedora de uma transtornante ilusão de bem-estar. E, finalmente, é pela intercalação de textos políticos de diferentes contextos apresentados em D) que Godard alerta para a universalidade da tortura, de que fazem recurso tanto os revolucionários como os imperantes. Tudo isto diegeticamente acompanhado pelos pensamentos de Bruno, o que amplia a subjectividade mental essencial para o impacto cénico. A construção formal desta sequência é então das mais complexas, viscerais e envolventes de toda a obra godardiana, dado que o realizador não se limita com ela à atribuição de um sentimento de compaixão diante da vítima, mas cria uma particular acutilância psicológica que força a audiência a compartilhar intensamente da experiência horrífica vivenciada e, de forma espaçada, a reflectir sobre a absurdidade dela enquanto fenómeno desumano e universal.
Eventualmente Bruno conseguirá escapar, para ser apenas impelido a um assassinato político pelo grupo a que pertence. Despedimo-nos dele imediatamente após cometê-lo, enquanto ouvimos um último monólogo sem nostalgia, proveniente de um futuro já inacessível para a câmara: “Só depois soube que Veronica tinha sido morta. Uma coisa que aprendi foi a não guardar rancores. Estava apenas contente por me restar tanto tempo.” Bruno continuará a existir na sua solidão inadaptada, mas com a serenidade suficiente para reconhecer que nem todas as coisas acarretam o seu sentido. Que mais pode ele fazer? Quando se perde tudo numa idade tão nova, só resta aprender a envelhecer com o pouco de graciosidade que ainda se encontra.
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