O filme Les gardiennes (As Guardiãs, 2017) adapta um romance homónimo de Ernest Pérochon, escritor um tanto esquecido nos tempos que correm. Será de recordar ainda, além do nome de um premiado Goncourt, a singularidade do retrato que em 1924 destaca o outro lado da batalha, o das mulheres que ficaram. Esta foi também uma batalha diária, feita de avanços e recuos consoante as necessidades, as disponibilidades de braços e avanços tecnológicos, dos ciclos da terra e dos ditames do tempo e dos preceitos. Talvez seja esta a maior valência do filme, que no entanto será certamente mais rapidamente esquecido que o nome do autor que lhe serviu de inspiração.
A sensação é logo essa mal o filme termina, de que aquelas duas longas e desequilibradas horas não fazem eco ou encontram espaço para se adensarem no nosso imaginário. Tudo o que lá encontramos de belo já vimos mais belo e tudo aquilo que há de falhado outros falharam de forma mais arriscada. Comecemos então pelo que há de mais belo, os enquadramentos e a luz. De facto Xavier Beauvois soube compreender e traduzir os códigos da representação da pintura realista francesa e por vezes vislumbramos Jean-Fraçois Millet, Jean-Baptiste Camille Corot ou Gustave Courbet. Contudo, a câmara prefere o decalque de tais códigos imagéticos, à possibilidade de devir pincel. Não basta ser semelhante a um grande mestre para que façamos uma obra de semelhante mestria. Pelo contrário, o trabalho é arrancar do cliché onde as grandes imagens caíram, dada a sua infinita reprodutibilidade – quem não tem na memória «As Respigadoras» de Millet? – e fazer delas outras imagens. Outro aspecto desta excessiva estetização está nos seus personagens. Se por um lado o filme adopta um carácter documentarista, visando as práticas (labor), as condutas (estratificação social), a moral (família), a técnica (a introdução do tractor) ou a organização (o anúncio dos soldados mortos na missa dominical), por outro lado tudo pertence a um lugar de sofisticação impar. As roupas imaculadas, os azuis que pautam as vestes, as fachadas frescas e limpas, tornam o risível em quimera histórica.
Talvez devêssemos informar Beauvois de que o garante a uma representação digna das camponesas, não parte de um fetichismo estético determinado pelos códigos de representação do ideário burguês.
Não será nossa intenção defender a necessidade do realismo, dado que Les gardiennes estão longe de possuir quaisquer tipos de pretensões neo-realistas, porém aquilo houvera sido sistematicamente feito por Hollywood, encontra aqui um prolongamento do seu programa estético. As camponesas que enfrentam a fome, a guerra e o labor, são as mesmas que surgem através de cabeleiras loiras e ruivas cuidadas, de olhos claros, figuras esbeltas, sem mácula nos vestidos ou nas mãos. Talvez devêssemos informar Beauvois de que o garante a uma representação digna das camponesas, não parte de um fetichismo estético determinado pelos códigos de representação do ideário burguês. Essa representação é de outra ordem de grandeza e talvez o Our Daily Bread (O Pão Nosso de Cada Dia, 1934) de Vidor ou o The Southerner (Semente de Ódio, 1945) de Renoir, fossem exemplos a reter quanto à forma de como a dignidade não precisa de uma figura bela, mas de planos justos e por isso belos [não citando outros exemplos ainda mais evidentes, como é o caso de Zemlya (A Terra, 1930) de Dovzhenko ou a L’Albero Degli Zoccoli (A Árvore dos Tamancos, 1978) de Olmi, não vá ser acusado de programático e partidário].
Se mesmo no belo pudemos encontrar os seus defeitos, agora partamos para o falhado e veremos a insipidez do seu próprio falhanço. O que há de mais falhado é sem dúvida o ritmo do filme, ou melhor, a sua falta de ritmo. Tal como mencionámos anteriormente, as duas longas horas de filme, que deveriam simbolizar as rotina e os ritmos do campo, perdem-se pelo academismo da sua montagem e sobretudo pela previsibilidade narrativa das situações. Os anos sucedessem com a mesma linearidade psicológica dos seus personagens, restando aos actores um trabalho de acção-reacção consoante as condicionantes da narrativa. O desdobramento entre a irmã, a mãe, o pai, os irmãos, o cunhado e a empregada é tal, que o próprio carácter feminista da obra de Pérochon se perde no filme, onde as mulheres que supostamente lhe dão corpo, terminam com a mesma espessura dramatúrgica dos dois irmãos ou do pai inválido (tanto que, um dos mais belos planos deste filme centra-se na dor do pai, filmado de frente, em silêncio, enquanto esfrega as mãos enfermas e colossais).
Uma última nota ainda em torno do sonho do irmão, momento que a par da música constante, revelam o que há de mais falhado no filme. Enquanto a música serve de muleta sistemática e enfatuação desnecessária, sufocando o simples deleite das imagens, o sonho do irmão (mais uma vez recorremos por contraste a Olmi, ao pensar no seu belíssimo Torneranno i Prati (Os Campos Voltarão, 2014), filme que incide sobre o mesmo período histórico, e ao episódio do sonho) em slow motion é na verdade um autêntico pesadelo cinematográfico, que desfigura o próprio universo coeso, mesmo que maioritariamente insípido, do filme.