A inexistência de estudos sobre a história do cinema amador (ou de amadores) em Portugal contrasta com a importância desse cinema nas coleções da Cinemateca. Ao contrário de outros arquivos, a Cinemateca não recusa nem seleciona a entrada deste tipo de obras na sua coleção. Esta política de “portas abertas” é especialmente importante num país em que metade da história do cinema decorreu sob uma ditadura. Se não fossem os filmes de amadores estaríamos limitados a uma visão cinematográfica do país limitada ao cinema profissional, apertadamente vigiado pela censura. Os filmes de amadores são, assim, essenciais para uma visão cinematográfica completa do Estado Novo. Mais do que isso, esses filmes vão onde o cinema profissional não podia, ou não queria ir: ao quotidiano privado das famílias, autêntico contra-campo das encenações públicas do regime e das representações folclorizantes dos portugueses que o cinema profissional registou.
Os filmes de F. Carneiro Mendes (1893-1976) não são exatamente isso, ou são-no apenas involuntariamente. Engenheiro electrotécnico de profissão, Carneiro Mendes fez parte dos movimentos organizados que tentaram fazer do cinema amador a “montra” do “bom gosto” que devia nortear todo o cinema português. Os seus filmes são demonstrações práticas desse “bom gosto”: genéricos sobre cartões desenhados à mão, enquadramentos, fotografia e montagem impecáveis… Filmes tão perfeitos e tão competentes que quase nem pareciam de amadores – a contradição era insanável e definia a prática amadora, pelo menos no contexto dos movimentos organizados. Era nisto que um filme de amador se distinguia, de modo geral, de um filme de família: o amador era um realizador profissional em potência ou, pelo menos, um cinéfilo consciente da história e da técnica cinematográficas; o realizador de família, por seu lado, era alguém entregue a um hobby, mais concentrado no resultado (o “retrato animado” da família) do que no meio de o atingir (o domínio da técnica cinematográfica).
É talvez este desejo de correção técnica que explica o alinhamento ideológico dos filmes de Carneiro Mendes com o cinema oficial do regime. Não que ele estivesse desligado do regime. Muito pelo contrário: António de Meneses, primeiro diretor da secção de cinema do S.P.N., foi um parceiro indispensável de Carneiro Mendes na criação de um núcleo cinematográfico de amadores no Grémio Português de Fotografia, onde os dois viram os seus esforços apadrinhados por nada mais nada menos que António Lopes Ribeiro. (Meneses realizou, para o S.P.N., A Aldeia mais portuguesa de Portugal, em 1938, e, como amador, filmara já os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, no que terá sido uma das primeiras utilizações da cor no cinema português). O alinhamento ideológico de Carneiro Mendes com o regime passa, desde logo, pela seleção dos assuntos dos filmes, os mais importantes dos quais dedicados aos principais eventos públicos organizados pela propaganda do Estado Novo: a Exposição do Mundo Português (A Exposição do Mundo Português ou O Cortejo do Mundo Português, ambos de 1940), as Festas de Lisboa (Festas de Lisboa de 1 a 13 de Junho de 1935, 1935), as várias paradas da Mocidade Portuguesa. E passa, ainda, pela completa adesão ao ponto de vista das equipas de cinema profissionais (algumas do próprio S.P.N.) que filmaram os mesmos eventos. Tal como nos filmes profissionais e oficiais, lá está o mesmo tipo de enquadramentos que enfatizam a monumentalidade dos pavilhões da Exposição de 1940, a mesma exotização obscena de camponeses e “indígenas” em verdadeiros “jardins zoológicos humanos”, e a insistência na representação alemã no festival aéreo das festas de Lisboa em 1935.
Carneiro Mendes estava longe, porém, de ser um caso isolado. Vários outros amadores faziam coincidir a correção técnica com a correção ideológica. E em todos se fazia notar o mesmo desejo de ver o seu trabalho amador reconhecido pelos profissionais. Esse reconhecimento teve um momento decisivo em 1947 quando António Lopes Ribeiro utilizou as imagens de vários amadores para montar O Cortejo Histórico de Lisboa. Não foi por acaso que o reconhecimento veio do próprio “cineasta do regime” e não de um realizador profissional “qualquer”.
Em todo o caso, os filmes de Carneiro Mendes ainda guardam qualquer coisa daquele potencial de dissensão que caracteriza muito cinema de amador. Quanto mais não seja pela liberdade oferecida pelo aparato técnico simplificado do 16mm (câmaras mais leves e fáceis de usar, revelação e montagem que não requeriam conhecimentos avançados), os filmes de Carneiro Mendes deixam-nos sempre vislumbrar, na margem de um enquadramento ou, brevemente, ocupando o seu centro, os visitantes dos eventos filmados. Alinhados ao longo da Av. da Liberdade, deambulando pelo recinto de Belém, ou passeando nas ruas da “Lisboa de outros tempos” reconstituída em paredes de gesso e cartão para as Festas de Lisboa de 1935, essas pessoas são o “povo” do Estado Novo, em nome do qual e para quem tantas cerimónias públicas, exposições, cortejos, paradas e até filmes se fizeram, mas dos quais esse mesmo “povo” se viu sempre excluído como protagonista.
Neste processo, a cor não é uma questão secundária. A cor tem um papel determinante na multiplicação do “efeito de real” que deixa o nosso olhar errar pelo plano e descobrir essas pessoas remetidas ao papel de “figurantes” de si mesmas. Como contraexemplo, é esclarecedora a moda dos documentários a cores (ou “coloridos” digitalmente) sobre a Segunda Guerra Mundial: a “colorização” (e sonorização) das imagens de arquivo é usada, justamente, para eliminar uma suposta capacidade do espectador contemporâneo de entender (e empatizar com) o distante e o longínquo, sugerindo-lhe, em vez disso, uma imagem que em tudo se aproxima das imagens que povoam o nosso quotidiano mediático.
A cor dos filmes de Carneiro Mendes transporta-nos, sem trapaça, para esse tempo outro que podemos viver como nosso, abrindo portas para uma compreensão mais complexa, e mais problematizadora, do Portugal salazarista. Nos seus filmes, a cor deixa-nos perder em “detalhes” que, por instantes que seja, assumem o protagonismo de um plano – ou tomam mesmo conta do filme como na “ficção” encenada para benefício da câmara no título sobre as festas de 1935. Termino com um exemplo disto mesmo. Em quase todos esses momentos, o que a atenção aos participantes daqueles eventos traz à superfície é a diversão e o consumo. A diversão dos figurantes/atores do “filme histórico” dentro do filme de 1935 (Festas de Lisboa de 1 a 13 de Junho de 1935), dos visitantes da exposição de 1940 (A Exposição do Mundo Português), viajando de comboio dentro do recinto, escolhendo que souvenirs comprar na feira de artesanato em frente ao atual Museu de Arte Popular, hesitando entre que esplanada e que cervejaria ou café escolher para almoçar. Não é possível perceber estes eventos apenas do lado da produção, isto é, do lado da inculcação ideológica e propagandística que indubitavelmente também procuraram instilar nos visitantes; isso seria negar as diferentes modalidades da sua recepção pelos visitantes/espectadores e, nomeadamente, a sua apropriação nos contextos de lazer e de consumo típicos das grandes cidades. Ao contrário do que imaginava António Ferro, os destinatários destes eventos não eram apenas sujeitos “nacionais” (ou a “nacionalizar”), eram também sujeitos “consumidores”. Eram estas nuances que o cinema oficial obliterava, mas que o cinema amador, nos seus melhores momentos, conseguiu representar, e que Carneiro Mendes nos deixa ver, “ao vivo e a cores”.
Todas as imagens: col. da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema