1.
Peter Bogdanovich, num texto de 1972 («Filmes de série B»), elogia esse tipo de cinema (o de Allan Dwan, Budd Boetticher, Edgar G. Ulmer, André de Toth, Joseph H. Lewis, Phil Karlson, entre outros) composto por filmes feitos “depressa”, “quando ninguém estava a ver” e cujos autores tinham que ser “imaginativos” (i. e. Inventivos) e “expeditos”, de modo a conseguirem resolver os problemas materiais (formais e técnicos) com que se confrontavam (Nacos de Tempo – Crónicas de Cinema, Livros Horizonte, 1996).

Com efeito, se estes filmes constituem o lado B do cinema americano entre os anos 30 e 50 (a parte mais sanguínea do seu sistema de produção) é porque se trata de obras que dão a ver as suas costuras, revelam os cordéis, interstícios e procedimentos com que se fazem, ao mesmo tempo que põem à vista os buracos, as falhas e lacunas que outras obras afanosamente (fazendo disso mesmo, por vezes, a sua principal preocupação) procuram esconder.
Por eles podemos ter acesso (estontear-nos com flashes, vislumbres) à verdade de um cinema pensado não como “representação” mas fazer (= performance), que nos dá a ver, em termos estéticos, a técnica como poiesis.
Uma “poética” da trouvaille (dos acordos/encontros felizes) a que corresponde uma “ética” do “risco” e da “dificuldade” que pode, quando menos se espera, catapultar para as nuvens um passeio por entre os escombros ou sobre o abismo.
2.
William Witney pareça sobretudo trabalhar no território ainda não pacificado e normativizado do entre géneros.
Para Quentin Tarantino («Whoa Trigger! Auteur Alert!», entrevista a Rick Lyman, The New York Times, 15/08/2000), William Witney (1915 – 2002), realizador sob contrato (“a true salary man”) de Hollywood – cuja obra vai dos serials dos anos 30 e início dos 40 da Republic (23, 17 dos quais com John English) aos westerns com Roy Rodgers e Audie Murphy, nos anos 50 e primeira metade dos 60, e que continua em séries de TV como Bonanza (entre 1961 e 1967) –, seria sobretudo “a director of genre movies”. Um pouco, aventuremos, como Johnnie To, hoje, no cinema de Hong Kong.
Cinema de género(s)? Sem dúvida, embora, no nosso entender, e o genérico de The Bonnie Parker Story (1958) mostra-o bem, William Witney, talvez devido à sua prática do serial, nos pareça sobretudo trabalhar no território ainda não pacificado e normativizado do entre géneros e das mutações e improváveis possibilidades que aí se lhe oferecem[1].
No seu anacronismo genético (a acção do filme passa-se no início dos anos 30, entre 1932 e 1934, mas a música da banda sonora é rock típico dos anos 50)[2], o filme de Witney situa-se algures (e essa “terra de ninguém” é o seu domínio próprio) entre, por um lado, (1) o juvenile deliquent movie (“set in the Depression”, acrescenta Tarantino) – um género, apesar dos precedentes de Fritz Lang [You Only Live Once (Só Vivemos Uma Vez, 1937)] e de Nicholas Ray [They Live By Night (Filhos da Noite, 1949)], sobretudo dos anos 50 e em particular da American International onde Witney também fez um filme (ao mesmo tempo “sanitário” e de exploitation) sobre adolescentes e droga, The Cool and the Crazy (1957), e Roger Corman, na onda de Blackboard Jungle (Sementes de Violência, 1955) de Richard Brooks, montou filmes como Rock All Night (1957) e o mais jazzy Sorority Girl (1957) – e, por outro lado, (2) o criminal movie, na linha dos filmes de gangsters da Warner Brothers nos anos 30 e do noir mais “realista”, quase “documental”, do final dos anos 40 [T-Men (Moeda Falsa, 1947) de Anthony Mann, The Naked City (Nos Bastidores de Nova Iorque, 1948) e Night and the City (Foragidos da Noite, 1950), ambos de Jules Dassin, The House on 92nd Street (A Casa da Rua 92, 1956) de Henry Hathaway, The Narrow Margin (Forças Secretas, 1952) de Richard Fleischer][3]. Aliás, o uso de cartões com indicações temporais e geográficas e do voice-over [neste e noutros filmes, casos de Dick Tracy’s G-Men (O Espião Assassino, 1939) e do início de Drums of Fu Manch (Os Tambores de Fu Manchu, 1940), ou em Apache Riffles (Flecha Apache, 1964) para dar o contexto histórico], contribuem para que se afirme o tom “crónico” e documental (quase de newsreel) do filme.

Essa deambulação sobre e entre os géneros constitui aliás uma marca da dimensão de (auto)referencialidade (metacinematográfica) do filme (e do cinema) de Witney.
Característica que podemos relacionar com a impureza genética do serial – é o seu horizonte, dissemo-lo, fantástico – e de que são exemplo os dispositivos ópticos (televisivos?) de desdobramento e diferimento da imagem (tanto em Dick Tracy’s G-Men como em Drums of Fu Manchu) que introduzem um ponto de vista exterior e distanciado da acção (que como que a anestesia/paralisa) e a concepção balística de cinema do autor: assim, em Dick Tracy’s G-Men o vilão Zarnoff (Irving Pichel) possui uma espécie de câmera (talvez de filmar) que lança raios e logo no início de The Bonnie Parker Story, depois do genérico, vê-se Clyde Barrow a disparar para a câmera uma metralhadora que produz flashes luminosos [algo entre o flash da foto urbana, do “faits divers” criminal, de Weege e a mala-atómica de Kiss Me Deadly (O Beijo Fatal, 1955) de Robert Aldrich]. Metáfora da metralhadora-câmera (e vice-versa) que encontramos também glosada no acto de montar/desmontar a arma por George em Machine-Gun Kelly (1958) de Corman e que se prolonga na preparação (minutagem) dos assaltos que contém já em si um modelo de découpage e de montagem da acção.
Trata-se, contudo, de um aspecto que também sublinha a dimensão icónica do filme, assente na desglamourização e trivialização das situações que comunica um carácter flat (quase literal) às imagens onde, como na arte pop (Warhol), é na “denotação” que se encontra já toda a “conotação” (Roland Barthes, «Essa velha coisa: a arte», O Óbvio e o Obtuso, Edições 70, 1984)[4].
No entanto, aqui, devido a esse efeito de sobre-exposição (flash) das imagens, tudo surge num estado de ignição = incandescência dos signos (veja-se a recorrência do motivo do “fogo”, do primeiro fósforo aceso por Bonnie à bomba de gasolina a arder), o que faz deste filme película a arder, em chamas, num estado de desejo puro.
Bonnie, “a blonde”/“a real blonde”, como afirma Clyde logo no início, encarna esse estatuto de imagem icónica (= ícone) tanto da “mulher” (com a cabeleira loura e a pele branca, faróis de luz que sobressaem do claro-escuro dos fundos), como da femme fatale típica do noir dos anos 40 – aliás, a sensualidade, carnalidade das figuras femininas, elas próprias, em certa medida, “abreviaturas” (catacreses) da natureza, é uma caractetística dos filmes de Witney, em particular dos westerns, já a cor, dos anos 50 e 60 [vd. a Judy Polsen de The Outcast (O Tropel dos Vingadores, 1954) ou a Dawn Gillis de Apache Riffles].

Todo o plano-sequência da abertura, no bar, com Bonnie, é um bom exemplo desse trabalho sobre o carácter icónico das situações e das imagens.
Se no filme a tekhnè é a poiesis e se tem mais fazer do que representação, também nele há mais sexo (pulsão) do que romance (ficção).
De início, em grande-plano, duas mãos acendem um cigarro com um fósforo cuja chama faz raccord com o brilho do flash da metralhadora que Clyde, um pouco antes, dispara para a câmera; depois, sem corte, a câmera recua e, num plano de conjunto, apanha Bonnie (Dorothy Provine) com um homem debruçado por detrás do balcão que se ergue e move para a frente; ainda sem corte, Bonnie, que entretanto dera a volta para o balcão, vai até uma mesa e volta para trás enquanto o homem, que se sentou à frente, lhe pergunta “How are you doing, kid?”. “I’m getting so sick of this joint”, responde-lhe ela que, depois de se referir à prisão do marido, Duke Jeffersom, que apanhou 175 anos de pena (“It’s gonna be some wait…”, observa), desabafa: “All I ever met are punks coming from no place, going nowhere”. Face a uma nova observação do homem sobre a pouca dificuldade que ela teria de apanhar o homem que quisesse, ela responde-lhe: “To do what?” – enquanto diz isso, sentada num banco agora à frente do balcão e ao lado do homem, descalça um sapato, depois o outro, e massaja os pés. Só há corte para o plano em que entra Clyde (Jack Hogan).
A acção passa então do bar para a entrada do quarto de Bonnie: aí, Bonnie primeiro confronta Clyde, que lhe aparece à porta e se exibe com a metralhadora, e depois o homem do bar que pretende entrar e que ela atira escadas abaixo; já no quarto, no escuro e de costas voltadas, Bonnie ouve as propostas de Clyde (“I’m going places in a very big way”/“if you team up with me we’ll take just what you want”) e quando ele lhe diz que dividirão ao meio o dinheiro dos futuros golpes, volta-se finalmente para ele, com o rosto e cabelo (louro) iluminados, e responde-lhe com um sorriso malicioso: “Shut the door. Let’s dance”.
Bonnie concentra em si a dimensão de “paixão” (= pulsão) do filme, a sua “sexualidade” (melhor, o seu “ser sexuado”). O seu “Let’s dance” metafórico na cena do quarto resolve-se logo na sequência seguinte em que Clyde e Bonnie dançam num bar e em que, ao cumprimento de Clyde (“You really dance smooth, baby”), Bonnie responde: “Who’s dancing?”.
Deste modo, se no filme a tekhnè é a poiesis e se tem mais fazer do que representação, também nele há mais sexo (pulsão) do que romance (ficção) – o registo escópico de ex-posição dos corpos, aqui, é o do peep-show, patente no duplo strip-tease do genérico e depois na cena triangular no motel, com Clyde e Duke Jeffersom, em que Bonnie se despe, por detrás de uma cortina, para o ex-marido (“Ok, the free show is over”, diz-lhe, denunciado o carácter encenado da situação).

A centralidade pulsional (passional) de Bonnie é ainda acentuada pelo aparente desinteresse de Clyde que declina os avanços de Bonnie: no carro, depois do primeiro assalto, quando ela o tenta beijar (“You take care of drive and I’ll take care of you”, segreda-lhe), ele afasta-a (“Are you crazy?) e depois, na mesma sequência a três no motel, “oferece-a” a Duke [5].
Se a “acção” acciona a sexualidade de Bonnie, ela, foco de luz (“blonde”) no plano, constitui não só a substância (plástica) da imagem como o “gatilho” da paixão (energia polimorfa) do cinema que transforma códigos e géneros e os metamorfoseia em algo de mais essencial e (im)puro.
Enquanto tal, com o seu pleno de sexualidade, Bonnie apresenta-se como o motor (agente) da “acção” (violência), assumindo frontalmente (de frente para a ideologia e a câmera) uma posição “fálica” e agressiva [uma característica que partilha afinal com os personagens femininos de Corman, Florence (Susan Cabot) em Machine-Gun Kelly e Ma Parker (Shelley Winters) em Bloody Mama (O Dia da Violência, 1970) – filme de 1970 em que se procede à “desglamourização” e “retorno do recalcado” do filme de Penn].
Assim, ela surge por várias vezes a fumar cigarrilhas e com a metralhadora (a disparar ou a exibi-la para a câmera) e é a ela que está associado o motivo (simbologia e imaginário) do fogo (é ela que incendeia, com uma rajada de metralhadora, a bomba de gasolina no início e a carrinha com o dinheiro já no final do filme).
À pergunta do polícia “O que pode levar uma mulher a tal crescendo de violência [rampage]?”, a funcionaria responde: “Probably a man”, mas aqui decididamente não (“Nobody is gonna stop me”, diz ela a Clyde).
Essa “tomada do poder” da “acção” e da “forma” (do filme) por Bonnie dá-se em particular em dois momentos: primeiro no barracão em que se encontram escondidos quando Bonnie, frustrada com a timidez dos planos de Clyde (fazer pequenos assaltos e retirar-se à espera que nada aconteça: “to play real safe”), afirma: “We’ve been doing what you want, now we’ll be doing what I want”; depois, na cena de conjunto, de noite, junto a uma fogueira, quando decide libertar e juntar o marido, Duke Jeffersom, ao grupo – então, face à surpresa de Clyde que lhe pergunta se sabe “[who] runs the outfit”, responde: “I know who’s running. From now on I am” (dizendo-o, levanta-se e mostra a metralhadora que tem entre mãos).
3.
R. Emmet Sweeney («William Witney – Movie Action King»), na senda de Tarantino, considera Witney o inventor do “modern action movie”.

Nos serials (e tomamos como principal termo de referência Dick Tracy’s G-Men), a tendência é para cada vez mais se ter apenas acção: no início, os personagens “dizem” o que “vão fazer”, o que é uma forma “económica” de não ter que o mostrar, depois a acção simplifica-se, reduzindo-se muitas vezes a uma mera “inversão” da situação (os perseguidos perseguem, etc), deixando de haver espaço para a “intriga” ou a “psicologia” (romance). Cenas sintomáticas dessa “rarefacção” da intriga de que o efeito de cliffhanger é o tropo por excelência são os momentos em que os personagens (é o caso de Dick Tracy) são dados numa situação de “aperto”/“compressão” do espaço (a figura modelar dessa contracção narrativa)[6]. A “acção” (a “intriga”) é aqui puramente imanente à própria tekhnè (determinação = funcionalidade das situações) não dimanando a partir de si (de acordo com uma lógica de proliferação por desdobramento e reversibilidade de situações que leva à exploração exaustiva de todos os meios de locomoção e espaços) qualquer “transcendência”. Assim, de um episódio para o outro, no quadro de uma poética do bricolage, as situações de suspense (o cliffhanger) são resolvidas no início do novo episódio com a inclusão de novos planos, intercalados com os do episódio anterior, de modo a solucionar esses impasses (crises).
É sobre esta base que os filmes dos anos 50 e 60 vão trabalhar, reintroduzindo a continuidade no modo de dar a “acção”.
Pode-se dizer que o western, tal como Witney o pratica, constitui o modelo dos seus filmes.
Esse efeito de “continuidade”, “ligação” entre os elementos que constituem as imagens (e que faz dos filmes “one unbroken ribbon of action”, escreve Sweeney) é produzido tanto pela filmagem da acção (cenas de perseguição ou luta) a 22 imagens por segundo como pelo elaborado movimento da câmera (e dos actores) na unidade (de duração e expansão espacial) do plano-sequência (vd. a já referida sequência de abertura no bar em The Bonnie Parker Story); é essa base “ligada”, substancial, que vai ser esculturalmente modelada pela aspereza e brusquidão dos ângulos de tomada de vista e adensada pela proximidade dos planos (com efeitos de reenquadramento e zoom no movimento) que transmitem fisicalidade aos corpos (as lutas corpo a corpo, como referiu o autor, são “coreografadas”) e uma dimensão táctil (= háptica) às imagens (deste ponto de vista pode-se dizer que o western, tal como Witney o pratica, constitui o modelo dos seus filmes)[7].
Cria-se assim um efeito de “envolvimento” (imersão) do espectador (“He makes you accept everything on his terms […] What’s great is that you buy it, you absolutely buy it”, afirma ainda Tarantino) em que este, como num número musical de Busby Berkeley, se encontra no meio da acção (“placing the audience directly in the line of fire”, nos termos de Sweeney). Daí uma espécie de efeito de Hipnose, como o utilizado por Fu Manchu nos primeiros episódios do serial que protagoniza, que faz do espectador um decoy, ainda que distanciado e passivo-crítico, da engrenagem fatal do filme.

4.
Com efeito, pela tónica posta na “acção” e pelo “empowerment” da figura feminina (uma “Boss Lady”, como a designa Clyde já no final do filme), William Witney critica também o “fatalismo” do noir.
Se em Corman (Machine Gun Kelly) existe uma deflação e desaureolização do “trágico” do noir pelo acentuar da “fragilidade” do personagem de George [a superstição mórbida que o conduz ao acobardamento final, um pouco como com o gangster de The Rise and Fall of Legs Diamond (A Capital do Crime, 1958) de Budd Boetticher] em Arthur Penn, por contraste com a secura estóica do filme de Witney, insinua-se e adensa-se uma atmosfera de presságio de “morte” que conflui na fala da mãe de Bonnie que introduz o tema da inelutabilidade do “destino”. “You better keep running Clyde Barrow and you know it”.
No filme de Witney, mesmo que se caminhe para o fim, é sempre muito forte a afirmação do “desejo” de Bonnie – a sua vontade de viver, não acossada como um animal (como diz a Clyde), mas em “big [city] style” –, que conduz à assunção do infinito na finitude.
Deste modo, ao lirismo épico-trágico (e essencialmente romântico) do filme de Penn – que absorve (interioriza, subsume) e transfigura, reencarnando-a na plasticidade quase expressionista das imagens, a violência do real e dos obstáculos postos ao desejo (deriva) dos personagens –, contrapõe-se aqui um desenlace mais problemático em que persiste a tensão agónica sobretudo do personagem feminino.
Por um lado, verifica-se um “amolecimento” (emocional, sentimental) de Bonnie depois do encontro com o vizinho do motel que desperta nela – é essa a função das conversas entre eles sobre essa arte de “construção” que é a arquitetura – a nostalgia pelo real e pela “u-topia” [(im)possibilidade] de uma alternativa (saída) normal = feliz[8].
Modulação melancólica que se traduz numa quebra do registo do filme, a sua passagem a um nível mais profundo e exterior de enunciação, a alegoria, que se objectiva na cena do miúdo com a pistola de brinquedo, situação que dramatiza (pre-figura), numa espécie de acting out do impensado, o fracasso do assalto à carrinha com o dinheiro.

Trata-se não apenas de matar os corpos mas o seu próprio “fantasma” (“aura”).
Mas há um segundo final (o assassínio de Bonnie e Clyde) que, mesmo na ressaca (depressão) do personagem (vd. o ar triste/distraído de Bonnie a conduzir o carro: “Don’t tell me you lost your nerve”, insinua Clyde: “I didn’t loose it, I am right where I lefft it”, responde-lhe ela), afirma a persistência de Bonnie em a confrontar o destino: assim, em vez de guinar o carro para trás, como lhe recomenda Clyde (“Stop, it’s a trap, turn around”), ela hesita, continua em frente, acabando por ser atingidos pelos disparos dos polícias.
Desafio ou suicídio? Incerteza sobre a qual a sequência final mantém a reserva. Com efeito, devido à irredutibilidade do personagem, como é referido pelo chefe dos polícias, trata-se não apenas de matar os corpos mas o seu próprio “fantasma” (“aura”). “They are a mighty tricky pair. No matter how dead they look don’t stop shooting till I tell you”, diz.
Assim, ao excesso de “visibilidade” dos corpos em Penn[9], aqui, ostensivamente eles não se vêem, sendo tapados por um polícia que os cobre com um casaco. No seu lugar, em voz-off (e dito pela própria), a moral de Bonnie Parker: “We’ve got ourselves a one way ticket, there’s nothing you can do than ride right to the end of line”. Cortina negra com música rock no fundo.
5.
“He’s a visual stylist”, observa Quentin Tarantino a propósito de William Witney (“a real lost master”) e, para nós, na Bonnie Parker do filme (no trabalho da “forma” em torno e sobre ela) corporiza-se a sua ideia de cinema.
A experiência do serial do autor, através da desconstrução [e desmi(s)tificação] do suspense (o efeito de cliffhanger) e pela mise en abyme do “macguffin” (reenviando-o constantemente, de episódio em episódio e de uma situação ficcional para outra), conduz-nos a uma concepção (material) de “forma” (cinema) de que encontramos talvez uma das figuras no túmulo (nunca se sabe se cheio ou vazio) de Gengis Khan em Drums of Fu Manchu.
Trata-se, assim, sempre, de bordar na orla do vazio [nada (Lacan)], de acordo com uma ideia de cinema, já o referimos, não da representação = mimese (um cinema aristotélico, narrativo, da verosimilhança e da motivação, continuidade narrativa) mas da pura acção (“peripeteia”) que não deixa espaço para a psicologia e a intriga.

Na importância dada nestes filmes ao efeito de surpresa da “inversão” (reversibilidade) e do “golpe de teatro” (“peripeteia”) [Aristóteles, Poética (VI)], assim como no recurso a “efeitos mecânicos” [o mékhanè (XIV)] para fazer avançar a “acção” – efeitos não simbolizados nem pelo muthos (intriga) nem pelo logos (a linguagem) e que produzem menos mimemas do que fantasmas (imagens irracionais, sem ser ou realidade; simulacros, no sentido de Platão) –, pode-se talvez ver o regresso (reminiscência) do modo de acontecer “irracional” (selvagem) do real como “catástrofe” e da sua “verdade”, fatal e inumana, que é da ordem do “a[i]moral” e do “monstruoso” [critérios alheios, afinal, aos processos de “reconhecimento” (anagnôrosis) que podem conduzir à “identificação” e à “catarse”].
O movimento = cinema continua e encontra-se do lado dos eternos sobreviventes com os quais faz corpo e se identifica.
Daí a singularidade, e não apenas “exótica”, do discurso autonomista de Fu Manchu (episódio 14) sobre o valor simbólico do “ceptro” de Gengis Khan e a usurpação dos seus poderes pelos ocidentais (movidos pela sua intenção de estancar qualquer revolta). A ambivalência dos símbolos (neste caso, o ceptro) não anula a sua possível eficácia (capacidade de mudar uma situação). E, como o ceptro, também o serial, trabalhando sobre o vazio do “macguffin” e dos valores (retóricos e ideológicos) que o poderiam “motivar”, afirma a possibilidade e positividade de um cinema feito à margem da “doxa” dominante. A de uma tekhnè (mèkhanè) como poiesis e de uma poética da trouvaille (invenção) e do bricolage, capaz de encontrar as soluções técnicas e formais para os problemas que se levantam.
Já quase no final do 15.º (e último) episódio dos Drums of Fu Manchu, a imagem do ceptro de Gengis Khan é projectada no claro-escuro de um céu de tempestade com um efeito de “desmaterialização” (aerificação) e de “espectralização” (se não sublimação) do símbolo muito semelhante ao da “marca” de Batman [ele próprio objecto de serials de Lambert Hillier (1943) e Spencer Bennett (1949)].
Se Allan Parker consegue encontrar e destruir o projector (fonte de emissão) das imagens, num segundo final, ao mesmo tempo tópico e inesperado, o filme volta a Fu Manchu que, na câmara mortuária de Gengis Khan, promete recuperar o ceptro e libertar as tribos autóctones do poder dos brancos. No claro-escuro (expressionista) do túmulo, sem corte, a câmera aproxima-se de Fu Manchu enquanto ele fala e depois recua para captar (fixar: monumentalizar) a cena no seu conjunto.
Ou seja, o movimento = cinema continua e encontra-se do lado dos eternos sobreviventes (resistentes: Fu Manchu ou Bonnie Parker) com os quais faz corpo (= imagem) e se identifica.
Ao longe, do fundo do plano, ouvem-se os tambores do cinema (e da nova epopeia) a vir.
Fernando Guerreiro
Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

[1] No final do 14.º episódio de Drums of Fu Manchu, com a transformação de um dos “heróis”, Sir Leyland, em decoy (escravo) de Fu Manchu, o serial abre-se ao “fantástico” [presente também, enquanto maravilhoso de sci-fi, em Adventures of Captain Marvel (O Invencível Capitão Marvel, 1941)]. Um dos decoys, aliás, para lá do rosto-máscara que partilha com os outros, é provido de caninos de vampiro, o que acentua o seu carácter de figura protótipo, sincrética, que evoca as manipulações monstruosas de The Most Dangerous Game (O Malvado Zaroff, 1932) de Ernest Schoedsack e de Island of Lost Souls (A Ilha das Almas Selvagens, 1932) de Erle C. Kenton. O fantástico configurar-se-ia como o horizonte trans-genérico do serial, ele próprio sujeito, no seu corpo formal, a intervenções metamórficas, transformistas (adição de próteses e implantes, miscigenações orgânicas), afinal semelhantes àquelas por que passam os personagens desses filmes. Fu Manchu, “the Devil’s Surgeon”, como é designado, constitui o agente metamórfico da energia viral que percorre o DNA alterado (mas fertilmente doente) deste tipo de filmes e da ideia de cinema que lhes corresponde.
[2] O que contrasta com o tom mais retro (pela banda sonora vintage e a cor da época) do anacronismo mais de “imagem” (um glamour muito anos 50/60) de Bonnie and Clyde (Bonnie e Clyde, 1967) de Arthur Penn. É aliás através desse tom “retro” que passa a contextualização histórica e social e mesmo o carácter político (contemporâneo da guerra do Vietname) do filme de Penn. Os anos 30 da Depressão e do início da reforma do New Deal de Franklin Roosevelt (logo a abrir vêem-se cartazes da sua campanha presidencial) estão iconicamente presentes, em certos momentos, no lado foto da Farm Security Administration da sua cinematografia e em episódios como o da “carreira de tiro” aos cartazes do banco organizada por Clyde para os camponeses expropriados ou o do acampamento de migrantes que acolhe o par já no fim do filme. O próprio Clyde, na primeira tentativa de assalto a um banco, deixa um camponês ficar com o dinheiro e ao ser perseguido e alvejado por um pequeno comerciante que roubou, repete atónito: “I’m not against him”.
[3] Esse “realismo” do policial é bem patente, por exemplo, no 4.º episódio do serial Dick Tracy’s G-Men na sequência de perseguição e tiroteio numa doca. Não só a “acção pela acção” dá um tom seco, funcional, ao filme como os ângulos de tomada de vistas (planos aproximados de meio corpo em sets geométricos, recurso a picados e contra-picados) inscrevem de uma forma material e quase caligráfica a acção e os corpos no espaço (algo que também encontramos nos westerns em que os corpos, como em Allan Dwan, sobressaem como relevos/acidentes – equivalentes de rochas ou arbustos – na natureza).
[4] Essa dimensão icónica está também presente no filme de Penn mas de maneira diferente. Nele, temos uma visão anos 50, menos rock and roll do que rebels without a cause (e aqui mais Kazan do que Ray) dos anos 30: uma versão mais “glamourosa” (logo no início Bonnie e Clyde bebem coca-colas em grande-plano) do que “arque-tipal” (Witney). Assim, na sequência de abertura – que corresponde à do bar em Witney – vê-se Bonnie (Faye Dunaway), nua no quarto, num registo próximo das “Lolitas” (ou a sua versão-Bardot) desses anos. “I bet you’re a movie star?”, é a primeira frase de Clyde (Warren Beatty) para ela.

[5] Se a “romantização” do sexo é quase inexistente no filme de Witney (em que se tem, por assim dizer, desejo = sexo em estado puro), no de Penn ela é central e daí o carácter mais “imaginário” (figurado de acordo com imagens) e “fantasioso” (interpretado/vivido em função de fábulas = ficções) como ele é dado nos dois personagens. Se no filme de Witney não se comenta muito a sexualidade de Clyde, aqui esse motivo é mais elaborado, nomeadamente pelo próprio Clyde que se declara “impotente” (“If you want a stunt service go back to West Dallas. You can find a lover boy at any corner”) mas não ”homossexual” (“There’s nothing wrong with me, I don’t like boys”). Essa “falha” de realização do desejo (depois do primeiro assalto, face à “reserva” de Clyde, enquanto se maquilha Bonnie afirma: “The advertising it’s just dandy, wouldn’t never guess you have nothing to sell”) trabalha com efeito como um vírus a imagem – torna-a formalmente vulnerável, fragiliza-a – mas ao mesmo tempo permite a sua “superação” (mais do que “sublimação”) e sutura: os dois acabam por conseguir fazer amor, no campo, depois da leitura do poema de Bonnie num jornal. O lugar da poesia é o da costura visível, a cru mas feita com linha de cor, sobre essa ferida aberta dos personagens e do filme (e desse ponto de vista, sim, no final, os “espasmos” da morte estão pelos do “sexo”). A “morte” em slow motion do par no fim constitui a imagem de síntese dessa (ir)resolução dos contrários: nela dá-se a ver, ainda que por filtros, o ”excesso” do que “falta” e do que é “elidido” (a elipse sobre o “gozo” enfim conseguido). Em certa medida, como em Mallarmé, tem-se não a “flor” – a mimese – mas a “ausente” de todos os “bouquets” (figurações) – o que é imaginado e vivido no/pelo poema (“The Story of Bonnie and Clyde”, algo entre a letra de uma canção country, talvez de Johnny Cash, e um romance-popular).
[6] A “teoria” desta depuração da “peripécia” (em termos aristotélicos, temos aqui sempre mais mèkhanè e peripeteia do que acção e verosimilhança [drama]), encontramo-la no 2.º episódio dos Drums of Fu Manchu em que se cita explicitamente o dispositivo mecânico (determinista) de produção de “suspense” = ”angústia” (etimologicamente, em grego, sensação de aperto) de O Fosso e o Pêndulo de Edgar Allan Poe.
[7] Sintomaticamente, Bonnie, comparada por Duke a Jesse James, designa a carrinha do dinheiro no assalto final por “stagecoach”. William Winey escreveu mesmo um livro sobre a sua experiência no cinema: In a Door, into a Fight, Out a Door, into a Chase: Moviemaking Remembered by the Guy at the Door, McFarland & Company, 1996.
[8] Ao fim e ao cabo como sucede com a Bonnie Parker de Penn, também ela perdida num “no man’s land” entre a “rêverie” de um futuro (im)possível e o pressentimento do fim: “I got the blues so bad”, diz ela a Clyde depois do encontro nebuloso (e assombrado) com a família.
[9] Contudo, o último plano do filme de Penn é tirado do ponto de vista da “morte” (ou do “destino”): um plano trabalhado pela anamorfose, desfocado, visto a partir do interior do carro, olhar dos mortos sobre o mundo dos vivos, os mirones (polícias e espectadores) que rodeiam o veículo. Nos dois casos (Penn, Witney) é uma 3.ª pessoa, impessoal e em certa medida extra-humana, que tem a última palavra: um sujeito de enunciação mudo (o do cinema, filme?) no caso de Penn, ou cuja “voz” é a do personagem, Bonnie, agora constituído como absoluto, em que refluiu e ressoa – com o ruído do mundo, e a música rock é isso! – o próprio filme.