Também eu… em que depositava as minhas esperanças, que futuro rico previa para mim quando me limitei a despedir-me com um suspiro, com uma triste sensação, do fantasma efémero e momentâneo do meu primeiro amor?
Ivan Turgénev, O Primeiro Amor
No final de La mala educación (Má Educação, 2004), de Pedro Almodóvar, o protagonista Enrique Goded recebe uma carta da autoria do seu namorado de infância Ignacio Rodríguez, o qual nunca chegou a concluir a missiva porque morreu durante o processo de escrita, com uma overdose, sentado à secretária onde escrevia. O final retoma o início do filme, em que o mesmo Enrique recebe um outro documento – então, um conto – escrito por Ignacio. Considerando este efeito de repetição, percebemos que Almodóvar resolve o seu filme na potência dinamizadora destes dois textos: um conto autobiográfico, no início, e uma carta interrompida, no final. Isto acontece porque, na verdade, no centro deste filme reside Ignacio, uma personagem ausente, em larga medida inacessível, de quem estes textos constituem, por efeito metonímico, a forma privilegiada de subsistência no mundo dos vivos.
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Na abertura, os créditos sucedem-se sobre um fundo repleto de recortes que consiste – percebe-se retrospectivamente – numa primeira figura simbólica do próprio filme. Com efeito, a estrutura de La mala educación desenvolverá esta estética da cesura, pondo em relação bocados cuja conexão não é, pelo menos num primeiro momento, imediatamente perceptível.
No último movimento dos créditos, lê-se “Guión y dirección: Pedro Almodóvar”, passando-se daí para o universo ficcional, onde se lê: “Guión y dirección: Enrique Goded”. O efeito operado por esta transição é evidente e não passou despercebido pela crítica e pela maior parte dos espectadores: de alguma forma, Enrique Goded é Pedro Almodóvar. Esta equivalência é reforçada pelo facto de ambos serem cineastas e terem passado uma parte da infância num colégio católico.
Almodóvar desenvolve esta identificação em toda a primeira sequência, que se passa no gabinete de Enrique, transmutando em ficção aspectos da sua própria história profissional: a produtora de Enrique tem o nome “El azar”, ao passo que a de Almodóvar se chama “El deseo”; vemos o cartaz de um filme de Enrique intitulado La abuela fantasma que remete para um projecto então inacabado de Almodóvar, que viria a concretizar-se no filme seguinte, Volver (2006); vemos um outro cartaz de um filme intitulado La noche de Madrid, com Carmen Maura e Antonio Banderas, cuja estética reenvia para o cartaz de La ley del deseo (A Lei do Desejo, 1987), filme interpretado por Maura e Banderas, cujo título poderia perfeitamente ter sido La noche de Madrid.
Instigadas pelos vários elementos que, desde logo, trazem para dentro do filme a figura e a vida de Almodóvar, as leituras biográficas do filme acabaram por perder, no entanto, aquilo que realmente parece importar aqui: que neste processo de assimilação, identificação e referencialidade, aquilo que sobressai não é a semelhança entre as coisas, mas sim a diferença; e para reforçar esta ideia, basta reler o parágrafo anterior deste texto. A transição de Pedro Almodóvar para Enrique Goded deve ser entendida mais como algo que instaura uma ruptura, e menos como algo que se insere numa lógica da continuidade. Assim, que o segundo homem apresente características reconhecíveis no primeiro sublinha essencialmente a singularidade do segundo; uma singularidade, porém, que só pode ser realmente apreendida no confronto com o primeiro.
Ao longo da sua duração, o filme desenvolverá esta ideia avançada nos primeiros minutos: certos passos, figuras, diálogos, reenviarão para outros elementos aos quais se assemelham, apresentando sempre, em relação a eles, características diferentes que os singularizam.
Na primeira sequência, Enrique Goded está no seu gabinete, na companhia do seu assistente, procurando nos jornais ideias para um novo projecto de filme, quando um homem bate à porta com um conto que lhe quer dar a ler. Este homem apresenta-se como Ignacio Rodríguez, de quem o cineasta fora colega, na infância, num colégio católico, mas que já não via há cerca de quinze anos. “Foi o meu primeiro amor”, diz Enrique. Mas Ignacio está diferente: mudou muito fisicamente, e alterou o nome para Ángel. Sabendo que Enrique se tornou realizador de cinema, decidiu levar-lhe um texto da sua autoria, que relata a infância de ambos no colégio. Ángel conta que o texto tem duas secções, uma fiel à realidade, correspondente à infância, e uma ficcional, correspondente à idade adulta.
Em casa, Enrique inicia a leitura do conto “La visita”, e o plano aproximado sobre este título volta a promover o cruzamento de diferentes níveis de ficção, uma vez que o filme de Almodóvar iniciara efectivamente com uma visita, podendo bem ter recebido esse título (o qual, na verdade, até pareceria ser uma escolha mais adequada do que o efectivo La mala educación). Cria-se um efeito de proximidade quase palimpséstica entre o conto de Ignacio Rodríguez e o filme de Pedro Almodóvar, que será explorada no desenvolvimento.
Enrique inicia a leitura e ouve-se a sua voz em over. No plano da imagem, um fundido encadeado revela o lugar onde decorre a acção do conto. O formato da imagem muda, estreitando, e vê-se um plano de um cinema que, diz-nos o narrador pela voz de Enrique, “hoje em dia está em ruínas”. A câmara aproxima-se dos cartazes rasgados na fachada ruinosa do cinema, e foca um rosto num deles. Sinaliza-se então uma analepse através de um efeito de restituição dos cartazes rasgados. Isto permite-nos voltar aos créditos iniciais e refinar o nosso entendimento dos recortes: se, por um lado, eles podem ser entendidos como uma figura possível da forma (recortada) do filme, eles passam a possuir também, a partir deste momento, a possibilidade de serem restituídos à sua forma original, contínua, não recortada: e a maneira como isso se faz é através de um retorno ao passado. La mala educación é isto, um filme sobre a reconstituição de uma visão totalizante do passado através dos vestígios (recortes) que sobrevivem no presente.
Passamos a estar num filme dentro do filme, onde assistimos a um espectáculo drag. Depois da performance, Zahara, a performer, dá entrada num hotel com um homem da assistência, que, muito embriagado, acaba por adormecer rapidamente. Ao vasculhar os seus pertences, ela apercebe-se de que ele é Enrique Serrano. Antes de sair, e sem o ter acordado, Zahara deixa-lhe uma carta na qual lhe conta que ela é Ignacio, o seu amante de infância, deixando-lhe ainda um conto escrito por ela, “La visita”.
O filme dentro do filme termina, e regressamos a Enrique. Vale a pena, neste momento, recapitular a história: Ignacio reencontra Enrique (Goded), de quem foi colega e amante no colégio, e entrega-lhe um conto intitulado “La visita”. Enrique lê o conto. Dentro do conto, Zahara encontra Enrique (Serrano), de quem foi colega e amante no colégio, e entrega-lhe um conto intitulado “La visita”.
O movimento de sobreposição das duas histórias é evidente, havendo ainda uma primeira sugestão de que a vida imita a arte. Uma vez que o conto foi necessariamente escrito antes da reunião dos dois homens no início do filme, quando estes se encontram estão a reencenar o encontro entre ambos que havia sido escrito por Ignacio no seu relato, e que vemos no filme dentro do filme.
Na relação entre as duas narrativas (a real e a do conto “La visita”), é forçoso notar que as personagens são as mesmas, mas, ao mesmo tempo, diferentes: Ignacio passa a ser Zahara, e Enrique Goded passa a ser Enrique Serrano. Em ambas dá-se um reencontro, e também em ambas Ignacio dá a ler “La visita” a Enrique. Curiosamente, o texto é figurado da mesma forma, como se o conjunto de folhas fosse exactamente o mesmo. No entanto, à partida, ele não pode ser precisamente o mesmo, porque se o “La visita” que Zahara dá a Enrique Goded for igual àquele que Ignacio dá a Enrique Serrano, então Zahara escreveu, no interior da ficção, a própria história que está a viver e que Enrique Goded está a ler. Com isto, o filme sugere a possibilidade de um efeito droste, segundo o qual dentro de “La visita” há um “La visita” absolutamente coincidente, sendo que dentro desse “La visita” há outro ainda, etc. O que importa retirar daqui é que o filme está a jogar com uma certa promiscuidade entre diversos níveis de realidade, convidando-nos a aceitar que, até certo ponto, eles podem misturar-se. E misturam-se, efectivamente, neste filme de recortes que é La mala educación.
No entanto, neste estabelecimento de paralelismo entre os dois níveis narrativos, há uma diferença importante em que podemos reparar: Ignacio/Ángel e Ignacio/Zahara são interpretados pelo mesmo actor, Gael García Bernal, ao passo que Enrique Goded e Enrique Serrano são interpretados por actores diferentes (Fele Martínez e Alberto Ferreiro). Isto leva-nos a tentar perceber que estatuto têm as imagens que acabámos de ver, e a hipótese mais provável é estas terem sido activadas pela imaginação de Enrique, que está a ler a história. Seguindo esta hipótese, o filme dá-nos acesso à materialização em filme da leitura, num processo de enactement que remonta, por exemplo, a Das Cabinet des Dr. Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari, 1920) de Robert Wiene. Faz sentido, então, que Enrique não imagine a sua personagem enquanto ele mesmo, pois não se identifica inteiramente com ela.
A leitura prossegue. Na manhã seguinte, Zahara dirige-se à igreja do colégio onde passou a infância, e interpela padre Manolo. Ela apresenta-se como a irmã de Ignacio, dizendo-lhe que este morreu. Depois de o padre se recusar a conversar com Zahara, ela invade o escritório dele, surpreendendo-o com uma fotografia de Ignacio, em criança, nas mãos. “O que fazes aqui?”, pergunta ele. “O mesmo que você: recordo Ignacio”.
Este trata-se de um passo importante na caracterização da personagem de Ignacio enquanto protagonista do filme de Almodóvar. Ele é, no entanto, um protagonista da ordem de Rebecca no filme homónimo de Alfred Hitchcock [Rebecca, (Rebeca, 1940)], uma figura ausente que assombra todas as personagens enquanto memória. Quando, imediatamente antes, Zahara dissera ao padre Manolo que Ignacio estava morto, aquilo que ela dizia era claro para o espectador: “Ignacio está morto porque ele (eu) agora é (sou) Zahara”. Ignacio persiste no mundo apenas através de fotografias como aquela que o padre Manolo segura nas mãos, bem como no plano da memória (“o mesmo que você: recordo Ignacio”). No entanto, Ignacio é um protagonista ausente ainda noutros termos, que retomarei no final deste texto.
Zahara dá a ler a padre Manolo um conto da sua autoria, “La visita”, avisando-o de que: “para além de ser o professor de literatura de Ignacio, você é um dos protagonistas desta história”, no que se trata de mais um desdobramento de entre os muitos que o filme vem trabalhando desde o início, que aponta para a (des)coincidência entre personagens (mais ou menos) reais e personagens ficcionais (Pedro Almodóvar e Enrique Goded, Enrique Goded e Enrique Serrano, Ignacio e Ángel, Ignacio/Ángel e Zahara, o padre Manolo que Zahara visita e o padre Manolo no conto que Zahara lhe dá a ler).
O padre começa a ler “La visita” e dá início a um filme dentro do filme dentro do filme.
Somos transportados para o passado, e começamos a assistir à secção que Ignacio/Ángel afirmou, no início, corresponder aos factos, isto é, ao período que Enrique e Ignacio passaram no colégio. Neste novo “filme”, o padre Manolo é interpretado pelo mesmo actor que interpreta o padre Manolo que Zahara visita no “filme” anterior, e a criança que interpreta Ignácio é a mesma que víramos, momentos antes, na fotografia. Se aceitarmos a hipótese de que tudo isto é um produto da imaginação de Enrique Goded, que está a ler o verdadeiro conto, e que passamos a ver a parte do conto que diz respeito aos “factos reais”, então é forçoso acreditarmos que, tal como Enrique imagina Zahara com o corpo de Ignacio (Gael García Bernal), ele imagina o padre Manolo e Ignacio criança à semelhança de quem eles eram efectivamente. E, assim sendo, e uma vez que passaremos a testemunhar eventos que o próprio Enrique experienciou em criança, podemos supor que aquilo que vemos a partir de agora, embora seja activado pela leitura de um texto, é na verdade menos da ordem da imaginação criativa do que da memória efectiva. Em suma, somos levados a crer que, a partir de agora, vamos ver a infância de ambos tal como ela aconteceu, ou seja, que dentro do dispositivo (imaginário ou alucinatório) criado pela leitura de Enrique passaremos a ter a realidade.
Esta secção narrativa começa no dia em que padre Manolo tentou molestar sexualmente Ignacio pela primeira vez. O rapaz repudia os avanços do padre, cai no chão e bate com a cabeça numa pedra. Sobre um regard caméra, uma gota de sangue escorre pelo rosto da criança, dividindo-o em dois. Ouve-se a voz de Ignacio criança, como se este lesse o texto que o padre (e Enrique) está a ler: “um fio de sangue dividiu o meu rosto em dois, e tive o pressentimento de que aconteceria o mesmo com a minha vida”. Assim, no seguimento do assédio do padre, o rosto de Ignacio parte-se (simbolicamente), e a sua vida parte-se também. Esta ideia é enfatizada pelo trabalho sobre a imagem: após a gota de sangue escorrer pelo rosto da criança, cindindo-o, as duas partes resultantes são atiradas para os limites esquerdo e direito da imagem, dando a ver o rosto de padre Manolo, no presente, a ler o relato. O que este estranho raccord veicula, muito claramente, ao substituir um rosto pelo outro, é a ideia de que, desde aquele dia, o padre Manolo passará a residir debaixo da pele de Ignacio, dentro dele, como uma doença fatal que trará efectivamente a sua morte.
As imagens da infância são interrompidas, e regressamos ao escritório do padre Manolo, ficando então a saber que Zahara usa o relato como forma de chantagear o padre. Ela deseja completar a sua transição, e, para tal, precisa de um milhão de pesetas. No caso de o padre não lhe dar esse dinheiro, ela publicará o texto, expondo publicamente o caso de pedofilia.
A leitura do padre prossegue, e regressamos ao período da infância. Numa cena em particular, Almodóvar leva às últimas consequências a lógica da mise en abyme na qual constrói La mala educación, colocando as duas crianças no cinema, a assistir a Esa mujer (1969) de Mario Camus, com Sara Montiel. Nesse momento, estamos perante um filme (de Camus) dentro de um filme (o texto lido pelo padre) dentro de um filme (o texto lido por Enrique) dentro de um filme (de Almodóvar). Nessa cena, vemos Sara Montiel a regressar a um convento depois de ter sido uma freira nele e de ter abandonado o hábito para se tornar uma mulher do mundo. Ela diz: “não me reconhece, madre? O mundo mudou-me assim tanto?”, ao que responde a companheira de fé que a recebe: “madre Soledad!”.
Em primeiro lugar, esta cena do filme de Camus dá a ver uma visita que rima com todas as outras visitas a que temos assistido, e às quais ainda assistiremos no decorrer do filme; em segundo lugar, trata-se de uma cena de reconhecimento e ainda de nomeação, sendo também o filme de Almodóvar sobre reconhecimentos (a primeira coisa que Enrique diz a Ignacio, no início, é: “és mesmo tu? Se te visse na rua não te reconheceria”) e nomes (Ignacio/Ángel/Zahara, e, mais tarde, também Juan; Manolo vai tornar-se Berenguer, etc.); por último, e numa particularização da primeira ideia, esta visita é, na verdade, um retorno, sendo esse, com efeito, o tópico central de La mala educación, tanto ao nível mais imanente, com o regresso de Zahara ao colégio ou de Ignacio a Enrique, mas também, e essencialmente, do retorno ao passado e do retorno do passado. Acima de tudo – e voltarei a esta ideia no final – trata-se do retorno de Ignacio, o revenant que assombra o filme.
A sequência da infância termina com o padre Manolo a surpreender as duas crianças juntas durante a noite, o que desencadeia nele uma crise de ciúmes. No dia seguinte, Ignacio procura negociar com o padre: a criança entrega-se ao abuso sexual do padre, e este, em troca, não expulsa Enrique do colégio. Por amor a Enrique, para não ser separado dele, Ignacio oferece o seu corpo pela primeira vez. Contrariando o pacto, o padre expulsa Enrique do colégio, e os amantes nunca mais voltam a encontrar-se. A sequência da infância termina com Enrique a partir do colégio. Nesse momento, há um corte para o tempo presente da narrativa, por meio de dois raccords sobre os rostos das crianças, que se transformam nos rostos adultos.
Enrique comunica a Ignacio que deseja adaptar o seu conto ao cinema. Satisfeito, Ignacio afirma querer interpretar o papel de Zahara, mas Enrique responde que não imagina Ignacio como Zahara, porque não tem o corpo certo para esse papel. Percebemos então que as imagens que víramos do filme dentro do filme não podiam ter sido activadas pela imaginação de leitor de Enrique, uma vez que, nelas, era Ignacio (Gael Garcia Bernal) quem interpretava Zahara, e Enrique não vê Ignacio como Zahara. A identificação da proveniência daquelas imagens fica, assim, em suspenso.
Enrique começa a desconfiar da identidade de Ignacio, e visita a família deste na Galiza. Descobre que Ignacio está morto, e que o homem que se lhe apresentou como o seu amante de infância é, na verdade, o seu irmão mais novo, Juan, que responde pelo nome artístico Ángel Andrade. A mãe de Ignacio dá a Enrique uma carta que aquele lhe escreveu algum tempo antes de morrer. No regresso a Madrid, Enrique lê a carta, e ouvimos então a voz do verdadeiro Ignacio, que não ouvíramos ainda, a dizer o texto. Ignacio conta que é toxicodependente e um transexual a tentar poupar dinheiro para completar a transição, diz ter descoberto o paradeiro de padre Manolo, que já não é padre e trabalha numa editora, e conta ainda que escreveu um conto sobre a sua infância, intitulado “La visita”, que envia a Enrique juntamente com a carta, para que ele considere adaptá-lo ao cinema. O seu plano é usar o conto como instrumento de chantagem: se o padre não pagar a cirurgia, Ignacio publica o conto.
Aqui surge um novo espelho, o mais gritante e estrutural de entre todos, nesta já vasta galeria. A história pessoal do verdadeiro Ignacio é semelhante à história de Zahara, a protagonista de “La visita”: uma transexual que precisa de dinheiro para completar a transição chantageia, com um conto autobiográfico da sua autoria, um padre que abusou dela na infância. Isto é, a lógica auto-reflexiva que Almodóvar imprime ao seu filme não faz senão dar continuidade à mesma lógica que Ignacio imprime ao seu texto.
Enrique decide rodar o filme a partir do conto de Ignacio enquanto homenagem ao autor e, também, como forma de resolver “o enigma de Juan” (porque é que Juan se faz passar por Ignacio?). Juan/Ángel deseja, acima de tudo, interpretar o papel de Zahara, o papel do seu irmão. Não obstante não considerar Ángel o actor adequado para o papel de Zahara, Enrique contrata-o em troca de encontros sexuais durante a rodagem. De alguma forma, Ángel coloca-se na pele do irmão a partir deste momento em que sacrifica o seu corpo (Ángel não é homossexual; pelo contrário, é caracterizado como uma personagem levemente homofóbica) em nome de algo que deseja muito – interpretar o papel de Zahara –, tal como o seu irmão sacrificara o seu corpo em criança, para o padre Manolo, em nome de algo que desejava acima de tudo: manter-se próximo de Enrique.
Enrique insere uma alteração (ou melhor, uma correcção) no argumento de Ignacio, afirmando que o seu filme não pode ter um final feliz. Porque se “La visita” dá conta da história do próprio autor através do seu alter-ego Zahara, é natural que Ignacio inventasse para a sua personagem um final feliz, que é o mesmo que desejava e imaginava para si. Hoje, Enrique sabe que Ignacio morreu, não tendo, portanto, alcançado o seu final feliz. Por essa razão, para ser fiel ao espírito da obra que adapta, Zahara também terá de morrer.
Uma elipse leva-nos ao último dia de rodagem do filme. Enrique diz, em over: “no último dia de rodagem recebemos uma visita”. Vemos um homem, o padre Manolo, a chegar ao estúdio. Nesse momento está a ser gravada a última cena do filme de Goded: a morte de Zahara. Padre Manolo e um outro padre partem o pescoço da transexual, livrando-se, assim, da sua ameaça.
Ao assistir a esta rodagem, percebemos que o filme dentro do filme que nos foi dado a ver desde o início correspondia, afinal, ao filme realizado por Enrique Goded. Isto parece problemático porque vemos imagens do filme de Goded quando o cineasta inicia a leitura do conto pela primeira vez, ou seja, muito antes de o seu filme existir. Assim, as cenas de filme dentro do filmes são reveladas como algo da ordem da prolepse. Percebemos, também, que o actor que interpreta o padre Manolo é o mesmo que aparece nas sequências da infância, o que significa que também essas pertencem ao filme de Enrique Goded, e não se reportam a um plano da memória ou da realidade.
Padre Manolo – agora, Sr. Berenguer – espera Enrique no seu gabinete, segurando diapositivos do filme em curso (La visita), que recuperam cenas que víramos antes, nas prolepses. Os diapositivos pertencem, assim, não só ao filme de Enrique Goded, como também ao filme de Pedro Almodóvar, La mala educación. Numa obra plena de mise en abymes, este momento afigura-se como o caso paroxístico desse processo, pois o filme inclui-se a si mesmo no seu interior, chamando a atenção para a sua materialidade e, simultaneamente, para a sua qualidade falsa e mediada.
Quando Enrique surpreende o homem no seu gabinete, pergunta-lhe quem é ele. “Sou o vilão do teu filme”. Enrique expulsa-o, mas Berenguer permanece, perguntando: “não queres saber como morreu Ignacio? Ou quem o matou? E se coincide com o teu filme?” E assim, num momento em que se volta a sublinhar que coisas semelhantes, aqui, podem não coincidir inteiramente, dá-se início à narração do senhor Berenguer, abrindo um novo filme dentro do filme, desta vez um flashback.
A narração começa no dia em que Ignacio telefona ao senhor Berenguer, no seguimento da recusa de publicação do seu conto. Dá-se início à chantagem. Berenguer visita Ignacio, o qual vemos, pela primeira vez, tal como ele era na sua idade adulta. Antes disto, tínhamos visto Ignacio interpretado pelo irmão, Zahara (seu alter-ego) interpretada pelo irmão, Ignacio interpretado por um jovem actor no filme de Enrique, uma fotografia do verdadeiro Ignacio na casa da mãe, e tínhamos ouvido voz de Ignacio a ler a carta a Enrique. Aqui, porém, temos pela primeira vez um acesso não mediado (embora o seja, porque é activado por um flashback) ao corpo desta figura.
Berenguer entretém Ignacio com algum dinheiro, enquanto começa a apaixonar-se pelo irmão Juan/Ángel, tal como se apaixonara por Ignacio no passado (esta é mais uma instância em que os dois irmãos são apresentados como duplos). Os dois decidem eliminar Ignacio (“mais ou menos como acabaste de rodar”, diz Berenguer a Enrique, “mas não tão violento”), dando-lhe uma dose fatal de heroína.
No dia do homicídio, depois de deixarem Ignacio em casa a injectar-se, os dois refugiam-se no cinema. Aquela é a “semana de cine negro”, e estão em cartaz La bête humaine (A Fera Humana, 1938) de Jean Renoir, Double Indemnity (Pagos a Dobrar,1944) de Billy Wider, e Thérèse Raquin (Teresa Raquin, 1953) de Marcel Carné – isto é, três filmes em que duas pessoas planeiam em conjunto o homicídio de uma terceira. Ao sair da sala, Berenguer diz: “é como se todos os filmes falassem de nós”. Novamente, a vida imita a arte. E ironicamente, no momento em que Berenguer diz estas palavras, não sabe ainda que, no futuro, pelo menos mais dois filmes serão literalmente sobre ele: La visita, o filme de Enrique Goded, e La mala educación, o filme de Pedro Almodóvar.
Ignacio morre, Ángel desaparece da vida de Berenguer (que instrumentalizou para o ajudar a livrar-se do irmão; Ángel é a femme fatale deste film noir), e a narração de Berenguer termina. Depois dos factos narrados pelo editor, o espectador já sabe o que acontece: Ángel visita Enrique fazendo-se passar por Ignacio, dá-lhe a ler “La visita”, etc.
Depois de saber que Ángel foi carrasco de Ignacio, Enrique declara não querer mais vê-lo. Ángel parte, deixando a Enrique a carta que Ignacio escrevia no preciso momento em que morreu com uma overdose, numa altura em que acreditava estar a tomar a sua última dose antes de ir para uma clínica de reabilitação. Na carta lê-se apenas: “Querido Enrique: creio que consegui”. O filme termina neste ponto.
O conto “La visita” ocupa um posicionamento claramente fulcral na estruturação do filme de Almodóvar, originando uma série de espelhos deformados que, por um lado, põem em causa a estabilidade das relações entre níveis diferentes de realidade, e que, por outro lado, revelam as dinâmicas entre esses níveis, sendo o caso mais evidente disto o efeito de duplicação entre a história de Ignacio e a história de Zahara, que atrás discuti. Em contraponto ao peso simbólico do conto, a carta parece ser uma excrescência.
Porém, é ela que completa, no final, o protagonismo fantasmagórico de Ignacio. Como avancei antes, Ignacio é uma personagem ausente que, não obstante estar morta no início da narrativa, marca presença de diversas formas. Tal como Rebecca é uma presença espectral no filme de Hitchcock, ou – de uma forma diferente – Maria Vargas é uma presença espectral em The Barefoot Contessa (A Condessa Descalça, 1954) de Joseph L. Mankiewicz, também Ignacio Rodríguez é uma presença ausente, espectral, que assombra este filme que, em princípio, deveria pertencer aos vivos – que, porque estão vivos, podem agir.
Ignacio consegue tudo isto através da escrita. É um acto de escrita aquilo que está na origem de toda a narrativa do filme de Almodóvar: caso Ignacio nunca tivesse escrito “La visita”, este filme não teria lugar. A ser sobre alguma coisa, La mala educación é sobre a viagem de um texto que visava, desde a origem, o propósito de desencadear uma chantagem, isto é, de provocar acontecimentos no real, isto é, com efeito, de escrever o real. Aquilo que o texto desencadeará não é o objectivo pretendido, mas outra coisa: La mala educación. Ignacio age no filme através deste texto, que aliás o motiva.
De alguma forma, e dado o vínculo muito estreito entre a matéria narrativa de “La visita” e a vida de Ignacio, enquanto o conto viver, Ignacio viverá através dele. E assim se justifica que, neste filme em que esta personagem está fisicamente ausente, ela obtenha, na verdade, o papel mais importante, pois todo o filme se constrói em torno de “La visita”, a sua história, tornada conto e filme(s).
Em suma, para viver através de “La visita”, Ignacio precisa de Enrique, o qual, adaptando ao cinema a narrativa de Ignacio, não permitirá que a sua história morra, tornando-se Enrique uma espécie de ventríloquo – alguém que dá voz a um ser que não a tem. Torna-se, assim, significativo que Ignacio morra no momento em que escreve a Enrique. Morrendo ao dirigir-se a Enrique, Ignacio morre a falar com Enrique, escolhendo-o para ser o seu interlocutor na morte, numa estrutura próxima daquela a que assistimos em Letter from an Unknown Woman (Carta de uma Desconhecida, 1948) de Max Ophüls. Mas se no filme de Ophüls Stefan aceita a carta como um convite para a morte (a leitura da carta leva-o a escolher morrer num duelo marcado para a manhã seguinte), aqui Enrique aceita a carta como um convite para a vida, a sua e a de Ignacio, pela memória de quem, pode supor-se, ele passará a realizar os seus filmes, e em particular La visita, feito em co-autoria com Ignacio, com a ajuda de Pedro Almodóvar.
Ignacio escreveu “creio que consegui” num momento em que acreditava que iria curar-se da sua toxicodependência, que Berenguer lhe ia dar o dinheiro, que se transformaria finalmente numa mulher, tendo então o caminho livre para o seu final feliz, o qual partilharia com Enrique, o seu primeiro e único amor. Lidas no final, estas palavras devem ser reinterpretadas, embora não totalmente: não obstante tudo ter falhado nesta história de amor, Ignacio conseguiu efectivamente partilhar o seu final com Enrique, não acabando, assim, sozinho. Pois se Ignacio e Enrique nunca mais se reuniram efectivamente em vida depois da separação no colégio, Almodóvar reúne-os em La mala educación, cruzando as suas histórias de forma a torná-las inextricáveis.
Vale a pena lembrar, neste passo, que o filme começava com Enrique Goded em busca de uma história num jornal. Sabemos ainda que a história que chegará a ele é a de Ignacio (em duplo sentido: a história escrita por Ignacio e a história vivida por Ignacio, que se sobrepõem). Porém, antes da chegada de Ángel, Enrique lê em voz alta uma notícia de jornal que o intriga e fascina. São, aliás, estas as primeiras palavras proferidas no filme:
“Um motociclista morre congelado em plena estrada nacional n.º 4, e continua a conduzir durante 90 km depois de morto.”
Ainda antes de Ángel chegar com o conto de Ignacio, já este tinha sido introduzido no filme através da notícia do jornal, uma vez que o jovem morto que continua a conduzir (a mota, a narrativa, o filme) durante muitos quilómetros depois da sua morte não é outro senão o próprio Ignacio. A forma de La mala educación responde, assim, à conjugação das duas histórias que aparecem no seu início: “La visita” e a notícia de jornal.
O assistente pergunta: “onde iria esse homem, de madrugada, e em plena vaga de frio?”
Não sabendo estar a falar de si mesmo – o cineasta prestes a ser visitado por uma história e por um fantasma –, Enrique responde: “Ver alguém que não podia esperar até de manhã”. Efectivamente, Enrique não podia esperar mais, uma vez que La mala educación acabava de começar.