La photographie c’est la vérité. Et le cinéma c’est vingt-quatre fois la vérité par seconde.
Le Petit Soldat (O Soldado das Sombras, 1963), Jean-Luc Godard
Quem viu o episódio dedicado a Abel Ferrara da série Cinéastes de Notre Temps lembrar-se-á, certamente, do momento delicioso em que o realizador encontra uma fotografia de Godard nas páginas de um jornal e diz: “That’s my oncle”. Esta situação peculiar poderá passar na cabeça de quem vir The Blackout (Sentiste a Minha Falta?, 1997), onde o figurado elo de parentesco entre os cineastas está na evocação, verbal e implícita, do eterno aforismo “E o cinema é a verdade 24 vezes por segundo.”
Filme de excesso imoral (sexo, álcool e drogas) movido pelo excesso plástico (sobreimpressões e diferentes texturas visuais), The Blackout gira em torno de Matty (Matthew Modine), um actor ex-alcoólico e ex-toxicodependente abandonado pela namorada, Annie (Béatrice Dalle), e assolado por pesadelos sobre uma noite que recalcou, onde conheceu uma adolescente (a segunda Annie do filme) e partiu para o estabelecimento underground de um realizador de vídeo independente (Dennis Hopper). Pela montagem elíptica e impressionista ocorre aquilo que Nicole Brenez definiu, na monografia que dedicou ao realizador, como “o funcionamento de um complexo de abandono”, onde o protagonista “vive num estado de trauma contínuo que se prolonga em múltiplas repetições [replays] da experiência que desconhece.” Isto é, Ferrara procura representações fílmicas capazes de transmitir as imagens mentais que assolam periodicamente Matty e a forma como estas se alimentam da sua angústia inexaurível.
Há, de facto, um parasitismo entre a necessidade construtiva da imagem fílmica e a salubridade psicológica do protagonista, sucintamente explícito na forma como o “plano que falta” no vídeo (o do asfixiamento) dá lugar à recordação que falta na sua memória.
Essas imagens são as do aparente homicídio da Annie 1, e que Matty tenta entender ao escolher recair no estado de inebriação daquele dia. Luís Miguel Oliveira, na sua folha da Cinemateca, repara em como “a personagem conserva sempre muito maior dignidade aos nossos olhos do que aos dos seus comparsas (a cena em que Dalle e o Hopper o encontram estendido no chão, rodeado de garrafinhas e sabe-se lá mais o quê): o homem não se deixou ‘cair’, ‘caiu voluntariamente’.” E, com efeito, apesar da humilhação a que o protagonista está sujeito nesta cena, Ferrara recusa-se a olhá-lo com uma postura condescendente. Tal é perceptível pelo facto de, ao dar-se a descoberta de Matty ressacado pela Annie 1 (1), a câmara ser colocada ao nível deste no plano 2. Ferrara poderia tomar um plano picado à altura de Annie, mas a consequência dessa opção cénica provocaria uma perda inevitável do sentido de identificação com o actor, para partilhar do olhar de repulsa com que ela o contempla. Ao mesmo tempo, eles nunca partilham um enquadramento (ao contrário do que acontecia na primeira parte, onde diversos planos médios permitiam a união deles), pois, psicologicamente, não conseguem habitar o mesmo espaço, estando inalcançáveis um para o outro. A excepção parece ser o plano 3, onde a esquerda do enquadramento é ocupada pela perna dela, enquanto na metade superior prevalece o corpo inteiro dele. Mas, se o observarmos atentamente, entre um e outro está tudo aquilo que os afastou em pequenos cacos e garrafas de álcool vazias, representações dos vícios de Matty que o levaram ao comportamento pernicioso para Annie e que, para ela, nunca poderá ser completamente extinto. É, portanto, um plano necessário para representar as causas deste afastamento, o complemento para a série de grandes planos que enfatizam a separação deles no restante desenrolar da sequência (a título de exemplo, 4 e 5), reforçando-a.
É chegado o momento de retomar a frase de Godard (Hopper havia-a citado perto do começo) para mencionar que, aquilo que aparenta ser a “verdade” do filme (a revelação do homicídio, cometido pelo actor, da Annie 2), chega no pequeno ecrã onde é exibido o vídeo daquela noite. Talvez o ponto mais complexo de analisar seja esta relação entre o protagonista e o cinema/a câmara. Relacionado com ela, Luís Miguel Oliveira parte do realizador de Hopper para referir o “vampirismo da imagem cinematográfica ou videográfica, e todo o ‘faustianismo’ tantas vezes associado ao próprio ‘star system’ (…).” Há, de facto, um parasitismo entre a necessidade construtiva da imagem fílmica e a salubridade psicológica do protagonista, sucintamente explicitado na forma como o “plano que falta” no vídeo (o do asfixiamento) dá lugar à recordação que falta na sua memória. Mas esta relação é confrontada com a de outra câmara, a do psicanalista que Matty consulta já em período de recuperação. É então ambivalente o elo câmara-actor, pois enquanto o realizador prejudica Matty ao roubar-lhe imagens (o trauma), o psicanalista auxilia-o ao tentar reavê-las (a superação). Só há um aspecto em comum: o uso da máquina enquanto aparelho de estudo da componente psíquica de Matty. Daí que ele, ao colocar-se diante de um ecrã, sofra sempre da mesma maneira, ajoelhando-se e tocando-lhe de forma desesperada: primeiro, quando vê um pequeno filme com Annie 1 a dançar (reconhecimento da ausência), depois, quando assiste ao homicídio da Annie 2 (revelação, menos de que matou do que de é capaz de matar). Gradualmente, Matty descobre-se e paga com isso o preço da auto-destruição (o mergulho suicidário no mar estelífero, com o qual o filme encerra).
É por isso que não nos deixam de vir três frases à cabeça: a primeira é a de Godard; a segunda, do The Addiction (Os Viciosos, 1995) de Ferrara, é a teoria do “self-revelation is annihilation of self” (aqui retomada à letra); e a terceira, reminescente das outras duas, vem de uma entrevista que ele concedeu há uns anos em Locarno: “a câmara não mente, ela reflecte o que tu és e o que são aqueles que te rodeiam”. A “verdade” em The Blackout que destrói Matty não é sobre o que ele fez, é sobre o que ele é. E que essa verdade só chegue pela via do cinema faz-nos, francamente, gostar cada vez mais deste filme.