Em cada western o herói encontra uma mulher, desde os tempos do granítico William S. Hart e de “Jack” Ford. Em Bargain (1914) Hart é um good badman armado com duas pistolas e salvo por uma mulher angélica. Hell’s Hinges (1916), western psicológico e clássico, é a mise en scène de um olhar feminino que – ainda mais que as Sagradas Escrituras – trespassa o coração do bandido dissoluto e, tal como um ditador irresistível, destrói a velha vida desordenada de Hart para inaugurar uma vida completamente nova, purificada do mal, não antes de Hart ter envolvido toda a cidade infernal, um furacão de pecado no deserto – onde já se sabe, a tentação é habitual –, nas chamas regeneradoras, como um cavaleiro de fogo, um anjo vingador que pisa a serpente, numa cena de grande sugestão. Nas cinco bobines de Ford em The Scarlet Drop (1918), Harry Carey, entrado no “dark command” de Quantrill, vai ser redimido pelo amor de uma mulher e em Hell Bent (1918) o descontraído wanderer, interpretado sempre por Carey, apesar de hesitar à beira do recinto, escolhe mudar de vida, casar-se e enraizar-se na casa e no lar familiar, substituindo a rude amizade viril pelo amor gentil pela jovem mulher que foi salva mas que, ao mesmo tempo, também o salvou. Mas poderíamos falar também de Straight Shooting (1917) em que Harry, sicário do villain “Thunder”, por amor de Joan (Molly Malone), passa para o outro lado, entra no contra-campo dos humilhados e ofendidos.
E não tão raramente como se pensa a mulher pode elevar-se às alturas da heroicidade do filme. Budd Boetticher dizia que a mulher como personagem tem a função de suscitar no homem amor e ódio, sentimentos e emoções, de modo que o leve a agir num sentido ou no outro, como em Decision at Sundown (Entardecer Sangrento, 1957) ou Ride Lonesome (O homem que Luta Só, 1959): emblemática sob este ponto de vista é a personagem interpretada por Jennifer Jones em Duel in the Sun (Duelo ao Sol, 1946). Barbara Stanwyck, estrela de Capra nos anos 30 e dark lady do noir nos anos 40, nos anos 50 especializar-se-á nos papéis de heroína do western, dura e forte, por vezes até masculina, como em Forty Guns (Quarenta Cavaleiros, 1957) de Sam Fuller. Vemo-la jurar vingança ao pai que lhe matou o homem que amava no “mitológico” The Furies (Almas em Fúria, 1951), o western de Anthony Mann – o realizador que um ano antes tinha atribuído uma função narrativa importante e invulgar (o advogado) a uma outra mulher no seu Devil’s Doorway (O Caminho do Diabo, 1950). Ela é desprezivelmente gananciosa, adúltera e uxoricida em The Violent Men (Homens Violentos, 1955) de Rudolph Maté. Vimo-la disparar como um homem em Cattle Queen of Montana (A Rainha da Montanha, 1954) de Allan Dwan, o qual deu sempre às suas actrizes papéis fortes e bem caracterizados, como em Surrender (1950) ou em Montana Belle (Flor Bravia, 1952), em que a veemente Jane Russell consegue enganar todos os desperados armados com pistolas. E de facto o próprio engenheiro Allan Dwan, como Raoul Walsh, colaborador de Griffith na Triangle Fine Arts, merece uma menção especial.
O canadiano Dwan, nascido em Toronto em 1885 e falecido em Dezembro de 1981, rodou filmes por meio século, como Walsh e Ford, Godard e Rivette e Stan Brakhage. Foi o realizador de “Doug” Fairbanks [A Modern Musketeer (1917); Robin Hood (1922); The Iron Mask (1929)] e de Gloria “Mundi” Swanson [Zaza (1923); Manhandled (1924)], mas também de Shirley Temple. Estreou-se nos anos dos new gods, como diz Kenneth Anger no seu Hollywood Babylon. Realizou uma versão do O.K Corral com Randolph Scott, cuja pedregosidade toma forma e calor, nervos e tensão, como se fosse a natureza a rebelar-se no limite do hediondo humano. O filme – escarnecido por Ford que evidentemente queria pôr uma distância entre aquele e o seu My Darling Clementine (1947) – é Frontier Marshall (A Lei do Mais Forte, 1939), em que o granited-face Scott aparece do alto – perfeito deus ex machina separado da massa impotente e indistinta – enquanto desce da varanda do saloon, fora do seu quarto em que estava simplesmente a tentar adormecer, um western em que, como escreveu Jean-Claude Biette, antes de 2001 de Kubrick, Dwan “jouer merveilleusement avec le bord supérieur du cadre”. Dirigiu também John Wayne em Sands of Iwo Jima (1949).
Dwan é conhecido também, se não sobretudo, por ter dirigido o futuro (e detestado) Presidente dos Estados Unidos de America Ronald Reagan nalguns daqueles fameux petit films admirados por Jean-Claude Biette e rodados nos anos 50 com o produtor Benedict Bogeaus: “o mais culto dos produtores de série B, junto com Val Lewton”, segundo as palavras de Miguel Marias. Pequenas produções (muitas vezes com a contribuição preciosa do director de fotografia John Alton) mas grandes filmes: Montana Belle, o anti-maccartista Silver Lode (Falsa Justiça, 1954), Cattle Queen of Montana, Tennesse’s Partner (Rivalidade, 1955), The River’s Edge (Matar para Viver, 1957) e depois o estupefaciente e sensual sci-fi Most Dangerous Man Alive (O Mais Perigoso Homem Vivo, 1961) que se abre e fecha de modo inesperado e espantoso, o seu último filme. Era 1961, 50 anos após a sua estreia “aventurosa”.
Técnico (nos primeiros anos 10 experimenta o uso do dolly), guionista, director de produção, improvisa-se realizador em 1911, a partir daquilo que conta a Peter Bogdanovich (o qual lhe dedica o seu Nickelodeon,em 1976, inspirado nos contos “heróicos” de Dwan e Walsh): apenas porque o realizador do filme, que se havia embebedado, não se apresentou no set. Parece um topos da literatura dos tempos heróicos do cinema já que John Ford contou alguma coisa de muito parecido ao mesmo Bogdanovich. Depois de uma festa, não apresentando-se no set nem o realizador nem os actores, ao chegar o produtor Carl Laemmle (fundador da Universal), os outros dirigentes preocupados pediram a “Jack” para fazer algo com os cowboys presentes. Ford tinha dormido debaixo do balcão e conhecia já o ofício, em suma tinha todos os pré-requisitos! Portanto, tomou os cowboys presentes no plateau e mandou-os fazer alguma coisa: fez com que fossem para cima e para baixo da rua. Foi um sucesso! E também Allan Dwan foi um realizador de sucesso, sobretudo considerando os poucos meios com os quais muitas vezes realizava os seus filmes sobretudo após os anos 20: além de 400.
Dwan foi por muito tempo considerado o realizador austero e seco dos bons sentimentos, segundo uma observação de Roger Tailleur. Era um optimista, contava – sendo um grande narrador – histórias de homens simples. Até a estrela Swanson foi reduzida a empregada que escolhe um mecânico em vez de a high society. E antes da rodagem de Manhandled Dwan abandonou-a num metro abarrotado de Nova Iorque para que experimentasse a vida quotidiana e as fadigas de uma simples shop girl – ao cujo tipo-ideal, de resto, Ezra Pound dedicou um poema. Um realizador rigoroso, com uma moral que ao bom cinema faz corresponder os bons sentimentos. Também Biette insiste na “merveilleux état de calme” do seu cinema e elogia o talento de um realizador capaz de se adaptar ao sonoro, à cor e a todos os géneros, inclusive as comédias sentimentais e os musicais. Um optimista que nos anos 50 olhou com amargura e desapontamento para o desenvolvimento sócio-cultural da sociedade americana.

Comparem-se dois dos seus westerns. Veja-se o conjunto e a musicalidade que ritma com a relação entre o herói-exemplo e a comunidade que corresponde ao gesto heróico em Frontier Marshal e a topologia do caranguejo de Silver Lode em que, ambiguamente, o acusador marshal que irrompe na cidade tem a insolente cara chapada do villain por antonomásia Dan Duryea nos noirs de Lang e em Winchester ’73 (1950), enquanto o acusado John Payne, respeitado e considerado até a pouco antes da chegada do villain, chega a ser embalsamado no preconceito, prontamente abandonado e apedrejado pela comunidade já fechada em si própria, encolhida na suspeita e na preguiça, como no célebre western de Fred Zinnemman protagonizado por Gary Cooper, High Noon (O Comboio Apitou Três Vezes, 1952), ou em Run for Cover (O Fugitivo, 1955) de Nicholas Ray, em que Jimmy Cagney é cercado pela nuvem de poeira na solidão de um deserto de pedra. É o retrato de uma comunidade fundada apenas na legalidade mais abstracta atestada por um pedaço de papel, seja no western do rebelde Ray que naquele do tranquilo Dwan.
De resto, o filme começa sintomaticamente com a interrupção da marriage ceremony que simbolicamente reúne as melhores qualidades do Leste e do Oeste, ligando uns aos outros, como acontecia nas tábuas de madeira de My Darling Clementine (A Paixão dos Fortes, 1946), comprometendo o equilíbrio que segura o excepcionalísmo americano. Nos anos 50 e também no início dos anos 60 muitas vezes o casamento é interrompido nos westerns. Veja-se os “casamentos” de Budd Boetticher e Sam Peckinpah, e mais antes aquele de Silver Lode, enquanto que o de High Noon é estragado logo acabada a celebração. Até aquele do fordiano The Searchers (A Desaparecida, 1956) não é poupado, assim como as celebrações religiosas de Run for Cover. Para se defender do lynch, John Payne transforma a mainstreet em festa num campo de batalha onde as mesas postas com as bandeiras com “estrelas e faixas” – filmadas com insistência – são derrubadas na poeira e utilizadas como trincheiras.
Com certeza, os westerns realizados nos anos 50 parecem quase uma erupção como aquela de uma garrafa por longo tempo agitada mas obstruída por muito tempo, uma explosão de cores que, embora não comprometa a segurança da linha narrativa, todavia entra quase em tensão com ela. Filmes muito livres, como os primeiros westerns de uma bobine, impregnados por uma espécie de lógica barroca, no fundo um regresso ao classicismo mas por outros meios. É suficiente pensar no Trucolor de Montana Bell que exalta a garra incendiaria de Jane Russell en travesti: morena e loira, dura e doce, pistoleira e cantante. A irrupção perturbadora da mulher suscita ciúmes e rivalidades no grupo coeso e fraterno dos Dalton. “Lady Bandit”, de facto, graças ao seu corpo e ao seu carácter forte, atrai bandidos e cavalheiros. Os primeiros para a tornar feliz sacrificam até as suas vidas para a entregar nos braços de um outro homem; os segundos transgridem as mesmas leis às quais prestaram devoção.

Nos westerns a cores e vivazes assinados por Allan Dwan nos anos 50 as mulheres talvez não sejam sempre melhores que os homens, ainda que por vezes os superam em habilidade e crueldade, mas com certeza desde o genérico – bastante explicativo – são as protagonistas principais. Em Woman They Almost Lynched (1953), as mulheres governam com punho de ferro e coração de pedra Border City, cidade dividida, em equilíbrio instável entre Norte e Sul, entre o Missouri yankee e o Arkansasn rebelde, durante a Guerra da Secessão e os assaltos de William Clarke Quantrill. Bebem whisky, sabem ser cruéis e cínicas, e, sobretudo, determinadas e decididas. Mas também nestes westerns, em que as mulheres fazem perder a cabeça dos homens e a história se desenrola através dos contrastes entre eles e o nó do poder que de qualquer modo detêm, no fim, a mulher salva o homem que ama, estando pronta para se sacrificar por ele. De resto, enquanto que os homens estão envolvidos nas suas guerras, as mulheres tomam o lugar deles, nem sempre melhorando a situação. Também no film noir dos anos 40 a femme fatale paroxísticamente encarnava os medos, as ansiedades, as indecisões dos homens que, de regresso das trincheiras de todas as guerras, se deparavam com a imagem de uma mulher inédita, mais agressiva e determinada, uma mulher que, tendo tomado quer na família quer na sociedade o lugar do homem envolvido na guerra, desorienta e subverte os hábitos e os esquemas mentais masculinos. Um processo que continua com formas ainda mais “fortes” também nos anos 50: veja-se o noir com tintas melodramáticas muito fortes como Niagara (1953) de Henry Hathaway ou Slightly Scarlet (O Anjo Escarlate, 1956) do mesmo Allan Dwan, de que ficam memoráveis as cores vivazes mas também as massas de sombra negra, um estudo acerca do preto nas suas relações com as cores mais quentes: as trevas da cor. Também o Technicolor de Passion (Onde Morre o Vento, 1954) é um formidável estudo acerca da cor e do preto.
Nos seus westerns dos anos 50, visualmente muito quentes, ricos e até garridos, ao contrário da sua reputação de realizador sem ornamentos, Dwan põe em cena um mundo feminino que não só é estranho por relação ao da iconografia tradicional, que sujeita a mulher ao lar doméstico, como também é estranho ao mundo estilizado da mulher angélica. Muitas vezes o universo delas não é diferente, nem melhor que o dos homens. Como mostra no verdejante Cattle Queen of Montana, há maçãs podres entre os Brancos tal como entre os Índios, entre os homens tal como entre as mulheres. As suas mulheres seguram a pistola desafiando-se na rua, dão murros, regozijam-se no oportunismo (Woman They Almost Lynched); passam de um homem para outro apenas por cálculos, embora depois saibam redimir-se fatal ou mortalmente, tal como a Violet em Surrender que no final, iluminada por um preto e branco trágico, dispara os seus últimos cartuchos contra os assassinos do seu homem escolhendo morrer junto com ele; um ao lado do outro, agora livres e distantes dos embustes do mundo. Os westerns femininos de Dwan são muito belos, quentes e rebuscados, até cintilantes, tal como uma bela mulher, dominados pelo verde esmeralda e o roxo, sobretudo em Tennessee’s Partner, em que até a amizade viril entre Tennessee/John Payne e Cowpoke/Ronald Reagan parece curvar em direção ao côté feminino, transformando-se numa relação de recíproco cuidado e numa implícita liaison homosexual. De resto, só com a morte do parceiro (Reagan), Payne desata o nó da sua vida e casa-se com a tentadora Elizabeth/Rhonda Fleming. As histórias articulam-se e desarticulam-se dentro de grandes casas habitadas e administradas por mulheres, mulheres muito belas, mulheres do mundo. Uma beldade quer cenográfica, do mobiliário, quer paisagística, em que a cor se torna personagem, em que a paisagem, luxuriante e majestosa, se revela também através das portas e das janelas que pontuam filmes como o “mexicano” Passion e alargam os interiores. As aberturas paisagísticas são distensões que fazem respirar e que atenuam as tensões e a violência também em filmes como Escape to Burma (Os Rubis do Príncipe Birmano, 1955), em que a paixão se acende na beldade exuberante e ameaçadora da selva, e Slighlyt Scarlet, com os seus planos com vista para a praia e o mar da California.

A paisagem nos planos de Dwan é como uma paleta animada. Um estilo que demostra um gosto para a composição elegante e um olhar pictórico. Uma beldade, em última análise, que se por um lado aguça e destaca a violência e as tensões que caracterizam as relações homem-homem, homem-mulher e mulher-mulher, por outro lado representa também um lenitivo destilado através da graça do realizador. Neste terreno, Dwan encontra John Ford e em particular os últimos filmes do grande realizador de origem irlandesa. Tal como para o Ford de 7 Women (Sete Mulheres, 1965), também Dwan faz própria a lição de Lessing de Laooconte. Referindo-se aos Gregos, cujos artistas não representavam outra coisa que a beldade, a perfeição do sujeito em si, Lessing eleva a beldade a lei da arte. Entre ataques, lutas e enganos, no cinema de Dwan situa-se sempre a vida silenciosa das coisas que aparecem nas pinturas claras das cores vivazes e de grande qualidade, tal como no azul marinho e na luz transparente de Cattle Queen of Montana.
Como observa Bertrand Tavernier, “la violence n’est pas son fort et l’on ne peut que remarquer le petit nombre de scènes d’action, de fusillades, l’absence presque totale de charges et de bataille rangées”; o seu forte é “la doceur du ton, la fluditè de la narration, l’importance accordée aux temps morts, l’élegance et la tendresse”. Apesar do seu Robin Hood estar repleto de torturas cruéis e gestos violentos, Sands of Iwo Jima ser atravessado por línguas de fogo e corpos fumegantes (como no final de The Most Dangerous Man Alive), Slightly Scarlet ser um noir feroz, pontuado por agudos sadomasoquistas, com mulheres brutalmente esbofeteadas, homens mandados pelas janelas e gangsters feridos e sangrentos, e finalmente em River’s Edge um descapotável cor-de-rosa pisar um policia de alfândega, trata-se sempre de acidentes re-absorvidos na calma maravilhosa, quase num estado de graça. Provavelmente a interpretação de Tavernier é demasiado pacificada e tranquilizadora: em Woman They Almost Lynched, Joan Leslie bate a cabeça loura-de-platina de Audrey Totter contra a tábua de madeira do saloon e em Passion quase lança fogo a um recém-nascido. Os soldados de Sands of Iwo Jima, no final, depois de terem perdido o seu sargento (John Wayne), voltam a combater acalmados e envolvidos numa nuvem vaporosa e quase fofa; John Lund e Joan Leslie abandonam as celebrações barulhentas do Norte vencedor atravessando o confim no silêncio de um Sul derrotado mas que lhes oferece o cenário de um beijo romântico; e finalmente em Passion, após a travessia da espiral de vingança, do deserto rochoso (como em River’s Edge) e da nevasca, Cornell Wilde e Yvonne De Carlo (num duplo papel) podem-se agarrar um ao outro deitados e livres da violência.

Mulheres e paixões fortes são as marcas também dos primeiros westerns de uma bobine de Dwan, apresentados nas versões restauradas no “Il cinema ritrovato” do Festival de Bologna numa retrospectiva com curadoria de Peter von Bagh e Dave Kehr: The Ranch Girl (1911), The Blackened Hills (1912), Maiden and Men (1912), Man’s Calling (1912), The Thief’s Wife (1912) e The Mormon (1912), que manifestam quer “a habilidade no que diz respeito à direcção de Dwan” quer “a hostilidade que os americanos apresentavam em relação àquelas pessoas no início do século” (Kevin Brownlow). Westerns primordiais, brutais e selvagens, com enquadramentos (planos gerais médios) suspensos na imensidão estratográfica de uma paisagem áspera e de pedras, atravessados pelo movimento provocado pelos conflitos entre clãs, pelas tensões eróticas e pelas fugas improvisadas das emoções. E pelo contraste entre natureza e cultura; nomos e logos, que regressará até no final rochoso do seu último filme, The Most Dangerous Man Alive, cenário íngreme e deserto em que toma corpo o impossível abraço mortal e extremo entre monstruosidade e amor, a besta e a bela, tão escandaloso que queima, irredutível à lógica, ao bom senso e às leis humanas, testemunhado provisoriamente apenas pelo traço da cinza que se dissipa no vento. O início e o fim da carreira de Allan Dwan inscrevem-se na rocha.
Os primeiros westerns de Dwan tendem a assumir a tonalidades de drama romântico, neles sopra um erotismo animal e são caracterizados por triangulações que provocam contendas, por exemplo Escape to Burma e River’s Edge, mas também o muito “rumoroso” e pouco “transparente” The Most Dangerous Man Alive, B-movie de autor e a(na)tomia do sexo atravessada por fendas e decotes vertiginosos, com uma Debra Paget antes “Vénus de vison“ e depois deitada na cama e presa com cordas. É La belle et la bête de Allan Dwan, entre sonho e pesadelo, um filme sensual, que se sente, um corpo suspenso como aquele do homem que se tornou atómico, atacado pelo lança-chamas por causa da sua alteridade, porquanto transformado e sobre-humano.
No cinema de Allan Dwan, há mulheres que lutam e batem o rosto no peito dos homens e homens que lutam perante uma mulher, dentro de enquadramentos sempre preciosos, até com uma montagem interna determinada pelo movimento dos actores e pela construção cenográfica, como no plano da caverna de River’s Edge em que se vêem ao longo da mesma trajectória a serpente escondida num buraco, Tony Quinn e Ray Milland agarrados rodeados de poeira e detrás deles Debra Paget, que segura uma espingarda para disparar contra a serpente. Também os primeiros westerns de Dwan são representações de mulheres audazes, mulheres com pistola. Nestas bobines o Oeste é mesmo um outro mundo, aparece até uma bruxa que o conota. É um espaço aórgico, perigoso, disponível quer ao encontro quer à morte. Ainda mais no posterior Passion, a Califórnia mexicana não é representada como o idílico estado de natureza rousseaueano com que alguém fantasiava.

Os poucos movimentos de máquina destes filmes de 1911-12 parecem um esforço notável, a mobilidade é um cansaço, uma epopeia, uma conquista extenuante como o caminho impérvio dos pioneiros, quase uma espécie de correlativo objectivo da conquista do Oeste. O homem e a natureza, o homem e a família, o homem e a mulher: corpos tomados no contacto que resistem, corpos que sentem como nos últimos extraordinários filmes de Dwan. Os westerns de uma bobine de Allan Dwan são fascinantes e sugestivos, não apenas como documentos de um passado que se pensava perdido, como fósseis, restos, traços, mas pelo vento que sopra nos planos e a respiração de um mundo já esgotado, o da Fronteira, que todavia ainda sopra neste primitivismo cinematográfico de que não se pode não admirar por um lado o uso metafórico do espaço (“un grand poète dell’espace”, dizia Biette), sólido e ao mesmo tempo ressoante, que quase se aproxima do sublime, um espaço belo e terrível em que os pioneiros se aventuram para encontrar uma difícil Stimmung, num percurso acidentado e repleto de insídias, e por outro lado o vigor e a força que a pouco e pouco se fundirão com a fluidez da narrativa, a profundeza da visão, a ironia e a elegância: o touch-Dwan.
Toni D’Angela
Fundador da revista La Furia Umana e autor de vários livros sobre cinema.
Tradução por Francesco Giarrusso.