Paulo de Brito Aranha (1904-1951) realizou alguns dos primeiros documentários sonoros portugueses e foi, desde a sua fundação e durante quase duas décadas, diretor da secção de som da Tobis Portuguesa (fund. 1932). Caso raro na história do cinema português, o seu interesse pelo cinema e a sua entrada naquele meio foi precedido em grande medida por uma carreira de docência e de investigação técnica e científica, desenvolvida a partir dos anos vinte no Exército, na Escola Militar e no Instituto Superior Técnico. No entanto, e paralelamente a estas atividades, Brito Aranha, desenvolveu também uma carreira jornalística na redação do Diário de Notícias, assinando desde 1924 inúmeros artigos de crítica literária, de arte e de teatro, bem como várias reportagens do estrangeiro enquanto enviado especial daquele quotidiano lisboeta. E publicou mesmo um romance epistolar intitulado Amantes, que alcançou um certo êxito. Nos seus últimos anos, ocupou-se ainda da indústria da margarinas, tendo sido o introdutor dos processos da margarinização das gorduras em Portugal.
Logo depois de concluir os cursos de Engenharia Militar e Civil da Escola Militar e de Engenharia Electrotécnica do Instituto Superior Técnico, Brito Aranha continuou no estrangeiro a sua formação técnica, cursando Engenharia Radioeletrotécnica na École Supérieure d’Eléctricité de Paris e Eletro-Acústica, na Alemanha. A sua carreira militar desenvolveu-se paralelamente à carreira na vida civil, tendo sido comandante do regimento de telegrafistas e, mais tarde, diretor do Laboratório Electrotécnico Militar. Os resultados dos seus trabalhos de investigação foram divulgados em diversos livros publicados entre 1932 e 1948, que reforçaram a sua reputação como um dos (ou “o”) melhores especialistas de eletrotecnia, radiotelegrafia e registo de som em Portugal.
Para além do Exército, tanto o Estado como o meio cinematográfico recorreram às suas competências técnicas. Assim, Brito Aranha representou desde muito cedo o estado português em conferências internacionais na sua área de especialização. Esteve ligado a dada altura ao Ministério das Obras Públicas, tendo sido membro da Comissão Permanente de Peritos em Matéria de Radiocomunicações (editando então o estudo O domínio actual das telecomunicações e a posição portuguesa, 1948) e secretário do Eng.º Duarte Pacheco quando este ocupou o ministério pela primeira vez.
O sector privado também recorreu a Brito Aranha e, por isso, o encontramos acompanhando de perto as negociações que levariam à fundação da Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm (depois Tobis Portuguesa), a empresa produtora que instalou em Portugal as infraestruturas e os equipamentos necessários à realização de filmes sonoros. Foi para a Tobis que Brito Aranha realizou Porto de Lisboa (1934), Sifões do Alviela (Mais água para Lisboa) (1934), Soldados Telegrafistas (1935), Mocidade Portuguesa (1937) e A Segunda Viagem Triunfal (1939), que se contam entre os mais antigos filmes sonoros realizados em Portugal de que subsistem materiais em arquivo. Brito Aranha seria responsável pela tomada de som destes documentários, mas também de muitos dos mais conhecidos filmes portugueses dos anos trinta e quarenta – filmes esses cuja direção de som foi da responsabilidade de Brito Aranha: A Canção de Lisboa (1933) de Cottinelli Telmo, As Pupilas do Senhor Reitor (1935) de Leitão de Barros, Bocage (1936) de Leitão de Barros, Maria Papoila (1937) de Leitão de Barros, A Revolução de Maio (1937)de António Lopes Ribeiro, Os Fidalgos da Casa Mourisca (1938) de Arthur Duarte, A Rosa do Adro (1938) de Chianca de Garcia, e tantos outros.
Do filme O Porto de Lisboa (1934), quase podíamos dizer tratar-se da resposta lisboeta a Douro, faina fluvial de Manoel Oliveira (1931). Também no filme de Brito Aranha pode notar-se um investimento plástico nos enquadramentos e no ritmo da montagem com o objetivo de apresentar um filme cuja forma rimasse com o bulício da vida portuária. No entanto, esta comparação apenas faz (algum) sentido uma vez terminada a longa introdução (na verdade, quase metade do filme) com um comentário em off sobre as vantagens e a capacidade do porto de Lisboa. Esgotada a informação que se pretendia transmitir sobre o porto, o filme pode então tirar pleno partido de uma montagem muito sincopada onde abundam os pontos de vista inesperados e a colocação da câmara nos mais diversos pontos móveis. Do mesmo modo, a música pode tomar então o seu justo relevo e surpreende mesmo pela sua modernidade (a comparar, sem dúvida, com a partitura de Luiz de Freitas Branco para a primeira versão musicada de Douro, faina fluvial).
Sifões do Alviela (1934) resolve já de uma outra maneira o equilíbrio entre a vontade de passar informação sobre o assunto do filme e a utilização de “som direto” e da música. Assim, depois de uma série de cartões de texto que explicam previamente o assunto do filme – a construção do novo sistema de abastecimento de água a Lisboa, prevendo o crescimento futuro da cidade até ao numeroso fabuloso de “um milhão de habitantes!” – o mesmo pode então iniciar-se com um verdadeiro simulacro de “som direto”: o automóvel do ministro das Obras Públicas anuncia a sua chegada ao estaleiro com buzinadelas sucessivas, depois do que Duarte Pacheco inicia uma série de cumprimentos e conversas de circunstância. Logo de seguida, a pergunta sobre o andamento dos trabalhos ao engenheiro responsável é o pretexto para, em off, mas ainda sob aquele pretexto narrativo, surgir a descrição e explicação pormenorizada de todos os trabalhos em curso naquele estaleiro. A solução é de um efeito surpreendente, transportando-nos para o pleno domínio do cinema documental, muito longe, portanto, das fórmulas rígidas que norteavam a realização de documentários e/ou de atualidades noticiosas em igual período.
Soldados Telegrafistas (1935) e Mocidade Portuguesa (1937) exploram, com diferente sucesso, o puro fascínio da audição de sons registados. Podemos ver estes filmes e recordar o fascínio que sobre os espectadores de cinema do final do século XIX exerceram as primeiras imagens animadas – fascínio esse sempre em tão grande, se não muito maior, medida que o próprio conteúdo das imagens. Compreender-se-á melhor, assim, a importância e a função das vozes de comando (no primeiro filme) e dos cânticos militares e nacionalistas (no segundo), registos sonoros que, na economia da montagem final do filme e na relação entre imagem e som, assumem um protagonismo de outro modo difícil de explicar.
Finalmente, A Segunda Viagem Triunfal (1939) regista a visita de Carmona e do então ministro das Colónias, Vieira Machado, em 1939, às antigas colónias portuguesas de Cabo Verde (S. Vicente), S. Tomé, Moçambique (Lourenço Marques, Marracuene, Magude, Magul, Beira, Quelimane, Ilha de Moçambique) e Angola (Luanda), mas também a Pretória e à Cidade do Cabo (na antiga União Sul Africana). No ano anterior, Carmona tinha feito uma primeira visita a Angola e São Tomé e Príncipe, viagem essa filmada por António Lopes Ribeiro para a Agência Geral das Colónias no contexto da Missão Cinegráfica às Colónias – trata-se da longa-metragem intitulada A Viagem do Chefe de Estado às Colónias de Angola e São Tomé e Príncipe (1938), de que Brito Aranha fora o responsável pela direção de som. Na segunda «viagem imperial», Brito Aranha assume a realização do documentário então produzido pela SPAC, uma vez que António Lopes Ribeiro ficara retido em Lisboa pelas filmagens de O Feitiço do Império. A experiência ganha no ano anterior permitiu-lhe, mais familiarizado com os condicionalismos da operação, dirigir não apenas a tomada de som, mas também as próprias filmagens de um documentário de significado propagandístico mais efetivo, sobretudo se comparado com o filme dirigido anteriormente por António Lopes Ribeiro sobre o mesmo assunto. Em A Segunda Viagem Triunfal, a sucessão de marchas, revistas de tropas, receções oficiais e garden-partys é animada por algumas impressionantes “concentrações indígenas” (Sul do Save e Beira), animadas por danças guerreiras dos Mossulizes ou pela vertiginosa dança dos Macondes do Norte de Moçambique, mas também por alguns discursos de inflamados funcionários coloniais e, sempre, muitas aclamações e banhos de multidão, desta feita ordenados e sem o carácter improvisado que caracterizara a viagem do ano anterior. Os camiões da Tobis são usados para vários travellings e, em muitas cenas, regressa o fascínio ostensivo pelos atos de registo e reprodução do som. De mão dada com o aperfeiçoamento do registo de som, o regime ia melhorando também o registo das encenações de si mesmo.
Todas as imagens: col. da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema