Junho e Julho foram meses que nos trouxeram alguns dos filmes que facilmente serão elevados a melhores do ano daqui a uns meses: o novo de Paul Schrader, o marcante título de de Valeska Grisebach ou a estreia de Kogonada na realização de longas-metragens. Os walshianos olham para os dois primeiros e juntam-lhes uma revisão da nova incursão de Andrew Haigh pela tela grande e um olhar provocador sobre o cinematográfico videoclip “surpresa” de The Carters, Apesh*t, filmado no Louvre.
First Reformed (No Coração da Escuridão, 2018) de Paul Schrader
Assumindo o risco de repetir ideias avançadas pelo walshiano Duarte Mata no seu magnífico texto, apetece-me começar por dizer o que me parece óbvio: este é um filme sobre martírios, do corpo e das instituições, de um padre como da congregação que representa, como de uma nação poluída pela corrupção da indústria e do dirty money, das fortunas ganhas à custa da condenação do planeta a um fim precoce. Será que Deus nos vai perdoar? Ele que no alto se mostra tão impotente quanto os protagonistas, eles que estão aqui em baixo, connosco, bem ao nível destes olhos que a terra há-de comer? Eis as “lições da escuridão” de Schrader, um cineasta que (re)nasce quando já poucos davam alguma coisa por ele – lembro o modo como o seu cinema acabara tomado por um histrionismo pedante nos últimos anos, que teve como expressão máxima (máxima vulgaridade) Dog Eat Dog (Como Cães Selvagens, 2016). Ora, First Reformed (2018) é um call for action – para Schrader como para o seu protagonista, brilhantemente interpretado por Ethan Hawke – não muito distante dos filmes de Scorsese escritos por esse seu então argumentista, Taxi Driver (1976) e The Last Temptation of Christ (A Última Tentação de Cristo, 1988). Mas também este é um cinema do corpo, um ritual de “(re)consagração” que passa por tormentos muito concretos (escrever, beber, envenenar-se com palavras implacáveis e o álcool que queima o estômago) – é o Yûkoku (Patriotism, 1966), filme premonitório realizado por um dos heróis de Schrader, o escritor-mártir Yukio Mishima, que os nossos tempos pedem?
A acção, de suplício e martírio, que o filme convoca é sempre inexoravelmente baseada na fé. Ao contrário do que se tem dito e escrito, e apesar das sugestões bergmanianas vindas de um Nattvardsgästerna (Luz de Inverno, 1963), este não é um filme sobre a perda da fé. Pelo contrário, como o próprio padre confidencia em over durante a conversa com o activista que perdeu a fé nos homens, o embate com os argumentos científicos sobre o fim do mundo são abraçados como uma oportunidade por este homem “fora do mundo”. Uma oportunidade para servir uma causa maior. Mesmo que a interrogação aponte para uma dúvida inquietante – será que Deus nos vai perdoar? – ela acaba na realidade por mobilizar o protagonista para a acção – Duarte Mata refere, e muito bem, a instância da “acção decisiva” no muito citado livro de Schrader Transcendental Style in Film. Quem – ou o que – se move é o corpo do presbítero da igreja, que foi também capelão do exército – a instituição que a personagem integrou “numa vida passada”, antes da morte do filho. Algo muda nesse momento, diria, de epifania, naquele em que se coreografa, espantosamente, uma projecção cósmica – Jean-Claude Brisseau, és tu? – sobre imagens desoladoras do “suicídio do planeta”, que lembram os planos aéreos dos poços de petróleo em chamas no deserto do Kuwait em Lektionen in Finsternis (Lessons of Darkness, 1992) de Werner Herzog. A viagem do protagonista é interrompida perto do fim. Entra em cena, com crueldade, a figura do amor, mas não sabemos ao certo se este amor salva. Ele interrompe a morte, faz suspender o movimento do filme, um rodopio que lembra Hitchcock (e os seus beijos 360º), mas essa interrupção é como um delírio, como um “O Jeanne, pour aller jusqu’à toi, quel drôle de chemin il m’a fallu prendre!” furtado de Robert Bresson, mas com uma dose extra de veneno. De repente, zás: um corte para preto. Somos empurrados para a escuridão. Apetece dizer: um corte que nos faz cair no abismo de nós mesmos, do nosso fim, individual e colectivo, aquele que tanto escreve e faz escrever no decurso desta obra de transcendente beleza.
Luís Mendonça
Western (2017) de Valeska Grisebach
Um título pode ser, desde logo, uma primeira indicação do que esperar de um filme, e neste caso, ao evocar o género clássico de Hollywood, Valeska Grisebach traz à memória todo um imaginário distinto popularizado pelos westerns americanos, repleto de retratos de masculinidade, de exploração de novos territórios e até de um certo colonialismo, adaptado aos tempos actuais, mas também de um certo declínio desse imaginário. Western (2017) acompanha um grupo de trabalhadores germânicos numa missão de construção de uma central hidroeléctica, algures nos arredores de uma aldeia da Bulgária, perto da fronteira com a Grécia, como se tratasse de um terreno selvagem por desbravar (economicamente), como se tratasse de um grupo de colonos a marcar território. Os primeiros momentos do filme dedicam-se precisamente a mostrar a vida nesta espécie de colónia improvisada, com a chegada de máquinas industriais, a construção de habitações provisórias, as dinâmicas entre os diferentes homens que tentam afirmar a sua posição no grupo e os primeiros problemas com os locais. Grisebach aplica desde o início uma abordagem naturalista, uma composição demorada, que dirige a atenção para os pequenos gestos, para comportamentos subtis, e que, em particular nos momentos em que pouco acontece, fixa-se nos olhares e faces das personagens à procura de significado num presente que esvazia-se com a monotonia do dia-a-dia.
Entre o grupo de trabalhadores, sobressai pelo seu comportamento distante e plácido, pela oposição ao carácter abrasivo dos seus colegas, Meinhard, uma espécie de esguio cowboy solitário, um anti-herói que aventura-se para fora do campo onde estão instalados. Meinhard descobre mesmo um cavalo branco selvagem que adopta como seu, como se aos poucos encarnasse a tal figura mitológica evocada das planícies americanas. Meinhard sobressai também, e outra vez, por oposição aos seus colegas isolacionistas, pela sua interação com os locais, com quem acaba por passar bastante tempo, apesar das dificuldades de comunicação. Grisebach dedica grande parte do filme a estas dificuldades de comunicação, às conversas quebradas entre Meinhard e os locais, meios entendimentos e meios silêncios, frases de meias palavras e interrogações: muitas vezes os olhares de volta como respostas de Meinhard acabam por dizer tudo, e nisso Western é uma maravilhosa construção da procura de pontos em comum, mesmo que ténues, entre estranhos. Na verdade, Meinhard fala muito pouco, e as poucas frases que diz surgem como murros secos: a morte do irmão, a experiência da guerra. Western acaba assim por ser também sobre códigos, de conduta e de honra, sobre a conquista de território, físico ou pessoal. Se perante um olhar estrangeiro, esta pequena aldeia parece parada no tempo, também os trabalhadores alemães parecem apegados a um certo moralismo e superioridade arcaicos. Meinhard parece alheado a tudo isso, mas ao mesmo tempo e apesar do espaço que o filme lhe permite para a exploração, à medida que Meinhard cria ligações afectivas, vai encurtando as possibilidades de escapar ileso da toxicidade masculina à sua volta, de encontrar o seu caminho sozinho, deixando-o numa encruzilhada. É uma imagem-espelho de uma Europa fracturada, a duas velocidades, mas também da esperança em resgatar algo através do humanismo, num filme delicado e fraternal.
João Araújo
Lean On Pete (O Meu Amigo Pete, 2017) de Andrew Haigh
“A tarde prolonga-se para além de si mesma, e a hora, contagiada pela eternidade, é infinita, pacífica, insondável…
– Vamos, Platero…”
Roubo este excerto ao poema em prosa de Juan Ramón Jiménez, Platero e Eu – sobre a afeição de um jovem andaluz pelo seu burrito –, servindo-me dele como porta de entrada para umas breves palavras sobre Lean On Pete (O Meu Amigo Pete, 2017). Podemos dizer que este sentimento de quietude imorredoura de que fala o poeta é o véu com que Andrew Haigh reveste o seu mais recente filme, para o suspender num tipo de luz: a tarde. Pensamos em Lean On Pete como uma fita que se move nessa lentidão da hora avançada, atirando um adolescente, Charley (interpretado por Charlie Plummer, com uma tocante secura lírica) na geografia severa do deserto americano. Este puxa o seu cavalo – “Vamos, Pete…”, parece dizer também – e fala com ele como quem se nutre da confidência do animal, para continuar a acreditar que ambos têm futuro. Charley está sozinho no mundo, à procura da tia que é o único familiar que lhe resta (e que lhe tem amor), e o cavalo de corrida está obsoleto, perdeu valor… São os dois seres estranhos às leis do ritmo moderno.
É verdade que Lean On Pete não é apenas a imagem do rapaz e do cavalo na paisagem. Mas é esse eixo do filme que nos permite não só compreender o seu sentido de “viagem de crescimento” (sem os excessos narrativos da maior parte dos filmes sobre adolescentes), como dialogar com a beleza de um retrato de solidão. E é aqui que este título americano do britânico Haigh se corresponde com Lonely Are The Brave (Fuga Sem Rumo, 1962), de David Miller, o filme protagonizado por Kirk Douglas, que o próprio ator confessou, no seu livro de memórias, ser o seu favorito. Esse western moderno, com um cowboy em fuga na paisagem árida, como orgulhoso símbolo da recusa do novo mundo, é o elogio pleno da solidão do inadaptado. Também Charley é aqui uma figura inadaptada, à sua maneira. E isso tem que ver com uma honra que já não é a do cowboy: “Nunca montei um cavalo”, diz ele a certa altura, acrescentando que não quer aprender, porque Pete, apesar de ter sido um cavalo de corrida, “não deve ser montado”. Só aí compreendemos a dimensão do respeito por este Platero, traduzida numa atitude constante de olhar diretamente nos olhos, tratando-o como seu semelhante. O certo é que, antes desse momento, não nos tínhamos bem dado conta de como Pete se afigura uma primorosa criação literária. Ele acompanha Charley na sua expedição como mero ouvinte, sem nenhuma fabricada expressão de correspondência. Mas é justamente a sua serenidade animal, só perturbada pelos carros na estrada (tal como em Lonely Are The Brave), que nos permite auscultar a solidão de Charley e crescer com ele.
Este não é o Andrew Haigh que labora emoções acutilantes, como em 45 Years (45 Anos, 2015), embora haja aqui pelo menos um momento que faz apertar o músculo do coração. Contudo, é nessa tepidez de que fala o meu amigo Ricardo, na sua carta ao realizador, que lhe encontro o charme de um bom conto americano, placidamente à procura de uma certa luz da tarde. Infinita e insondável.
Inês N. Lourenço
Apesh*t (2018) de Ricky Saiz
Enquanto do outro lado do oceano a semiótica se ocupava freneticamente em analisar o videoclipe de Childsh Gambino – This is America (2018), de Hiro Murai, e o seu cavaleiro do apocalipse, surge a contra resposta dos The Carters em Apesh*t (2018), de Ricky Saiz. Talvez não seja propositado o aparecimento sequencial, contudo o seu nexo temporal deve suscitar uma análise mais rigorosa. Sabemos que desde Kanye West e o seu megalómano projecto My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010), que a indústria nunca mais poderia ser a mesma. O single perdeu o seu significado, assim como a unicidade do videoclip. Outros projectos seguiram o mesmo rumo, como Lemonade (2016) de Beyoncé, mas um pouco por toda a indústria pop o videoclipe deixou de ser uma simples ilustração bacoca, abrindo-se a novos significados e composições visuais. É claro que podemos mencionar o caso mais paradigmático de todos, a banda Massive Attack e os seus vídeos, como Karmacoma (1995), de Jonathan Glazer, ou Angel (1998) de Walter Adrian Stern, exemplos de quem sempre quis equivaler a palavra à imagem. Porém, a importância do vídeo no mundo pop foi muito posterior, mas rapidamente se generalizou. A actual atenção dada é tanta, que o deslocamento do foco passou da música para a imagem. Se a MTV possibilitou o nascimento desta indústria, a emergência posterior do Youtube consolidou-a e tornou possível a sua reprodutibilidade infinita. Tal como o vídeo havia destabilizado a experiência do cinema em sala, o Youtube mudou radicalmente a forma como o videoclip é hoje visto. Actualmente sempre que um vídeo pop sai, a música é algo secundário, dando lugar a uma parafernália visual que tenta destronar o anterior. Assim foi o canibalismo visual com o aparecimento de Lady Gaga, Miley Cyrus, Lana del Rey ou de Taylor Swift, onde já pouca importância se dava à música e onde se discutia apenas a bola demolidora, os outfits extravagantes ou o erotismo que denunciava a nova era da escrava da indústria.
Mas retomemos ao nosso ponto de partida, o videoclipe This is America (2018). Se do outro lado do oceano Childish Gambino decretava o fim dos Estados Unidos da América, o casal Carter vinha à Europa afirmar e celebrar a hegemonia da cultura americana. Parece um paradoxo, mas a coincidência entre o início da decadência de uma nação, corresponde sempre ao pico da sua exultação máxima. Roma ou França são os exemplos históricos mais visíveis, onde podemos aferir a simultaneidade do fim e da sua máxima forma. Neste sentido, o aparecimento em paralelo de dois objectos assim, como são os videoclipes de Childish Gambino e do casal The Carters, não são antitéticos, mas antes a súmula de um mesmo fenómeno. Gambino dá forma à violência nos EUA, o casal Carter denúncia essa mesma violência como matriz da cultura europeia. Se as invocações gospel negras contrastam com o tom seco do rap, é porque a actual resistência é de outra ordem do discurso. Se a religião foi o refúgio dos oprimidos, as vozes do coro a denúncia dos abusos e a invocação da esperança, o hip-hop surge com uma outra solução, ou resistimos com a mesma violência ou resta apenas acender um charro e partir para esse lugar de alienamento total. Gambino sai ileso no fim, porque ele é a figura que se contorce, que dança e ritualiza, é constante devir de formas, de culturas, ele é a personificação de São João Baptista sem Deus, sem redenção.
O casal Carter, por oposição, representa um outro tipo de redenção messiânica. Frente ao símbolo máximo da cultura ocidental, a Vitória de Samotrácia, Beyoncé quer impor-se como uma outra figura do discurso. A violência contida no mármore branco pelo qual toda a cultura europeia foi erigida, contrasta com o tom de pele da cantora, que vaticina o fim de um símbolo para ela própria devir o novo símbolo. O novo símbolo é negro e chega do outro lado do oceano, liberto por fim. A Europa é inventariada historicamente através da sua própria iconografia, tornando o Louvre num autêntico museu dos horrores. Os negros “decorativos” ganham por fim o lugar de figuras principais, são eles os personagens resgatados da opressão que os condenou ao lugar de figurantes, quer na composição histórica, quer na composição pictórica. Mais revolucionário ainda é pensar que tal movimento tenha surgido através da aparente inocuidade inofensiva da pop, que enquanto produto cultural sempre evidenciou o lugar do vencedor e nunca do vencido. A cultura pop americana através do casal Carter, quer afirmar o seu estatuto ex-líbris, tal como a estátua da Vitória de Samotrácia é para os Europeus o seu máximo ex-líbris. O videoclipe quer ele mesmo destabilizar as noções entre alta e baixa cultura, ao fazer emergir dos quadros figuras vivas, ao transformar o pictórico em moda, ao tornar o êxtase estético em carnal. Se de um lado Gambino anuncia o fim num armazém, esse lugar sem identidade ou territorialidade, o casal Carter vêm à Europa ocupar o lugar mais identitário e territorializado de todos, o museu do Louvre. Num anuncia-se a terra do no man’s land, no outro a conquista derradeira dos americanos sobre os europeus.
Bernardo Vaz de Castro