Gus Van Sant há muitos anos que desejava adaptar a biografia do cartoonista John Callahan, que, aos 21 anos, devido a um acidente de viação, ficou tetraplégico. É graças a este incidente que Callahan, alcoólico desde tenra idade (13 anos), decide aderir aos AA e tomar as rédeas da sua vida. Eis que, por fim, o filme chega às salas portuguesas, após uma incursão pelos festivais de Sundance e Berlim. Desde Promise Land (Terra Prometida, 2012) que Gus Van Sant não via os seus filmes serem distribuídos em Portugal. E sem surpresas, pois nada há a acrescentar desde Milk (2008), e agora apenas temos o caldo informe a que os seus filmes estão reduzidos, não deixando ver sombra ou rasto daquele que foi um realizador maior.
Se Promise Land poderá ser desculpado em parte a Gus Van Sant pelo seu papel de tarefeiro – numa parceria que contava inicialmente ter o próprio actor Matt Damon na realização -, em nada poderemos desculpar Restless (Inquietos, 2011) ou Milk (2008). Assinalo Milk como esse ponto derradeiro, onde Van Sant abandona por completo a economia e a linguagem que lhe eram características, em detrimento do contador de histórias. Se Milk ou este Don’t Worry, He Won’t Get Far on Foot (Não Te Preocupes, Não Irá Longe a Pé, 2018) são filmes justos para com os seus personagens? São. Se transcendem essa dimensão? Não. O próprio Last Days (Últimos Dias, 2005), filme absolutamente exasperante, parece hoje, com o devido distanciamento de 13 anos, uma proposta mais válida, mesmo que absolutamente inócua, em relação a estas duas obras. Se Last Days (Últimos Dias, 2005) não atinge a sublimação a que Elephant (Elefante, 2003) ou Gerry (2002) ascendem (redundando num projecto absolutamente circular e monótono), poderíamos pelo menos contar com o reconhecimento de uma tal linguagem e economia a que Van Sant nos tinha habituado.
Entre slow motions, animação, estilo documental e ficcional, tudo lhe serve para contar, e, esta falta de consistência, dá ao filme uma incoerência formal e um resultado de manta de retalhos.
A linguagem a que me refiro é a de um estilo absolutamente depurado, onde a palavra e a narrativa linear dão lugar às relações entre corpos e espaços. Esse trabalho de enquadramento dá ao cinema de Van Sant uma concretude e fisicalidade única do desejo masculino. Desde Mala Noche (1986), a sua primeira longa-metragem, que Van Sant soube determinar a acção dos espaços sobre os corpos e é essa contingência capaz de revelar a subtil e brutal violência que o desejo neles despoleta. A escola em Elephant, o parque em Paranoid Park (2007), a casa em Psycho (1998) e sobretudo o deserto em Gerry, são exemplos máximos de como o espaço determina a acção, sem o necessário engajamento narrativo a que My Own Private Idaho (A Caminho de Idaho, 1991), por exemplo, se socorre.
Mas estamos longe dessa abstracção tão bem conseguida. E quanto mais longe estamos dessa abstracção, mais Van Sant carrega na tónica narrativa e nos seus elementos idiossincráticos para evidenciar aquilo que já não vemos. Resta apenas a este filme fragmentos tanto linguísticos como discursivos. Don’t Worry, He Won’t Get Far on Foot, não consegue estabilizar-se nunca, recorrendo a diversas linguagens para montar um filme que, na sua coesão, a única coisa que lhe resta é a narrativa deste homem. Entre slow motions, animação, estilo documental e ficcional, tudo lhe serve para contar, e, esta falta de consistência, dá ao filme uma incoerência formal e um resultado de manta de retalhos.
Primeiro, a reunião nos AA filmada em estilo documental; em seguida a animação que pretende ilustrar as relações entre os seus desenhos e a vida do autor; a seguir os slow motions no acidente e nos tratamentos; depois o lado ficcional da obra e a narrativa em peso, um momento ainda para um flashback inserido a martelo, aludindo à infância que até então tinha sido um dos motivos principais da sua dependência, nunca exibida; voltando por fim à animação, sem que tenhamos compreendido as mais-valias desta inconstância linguística. Os próprios elementos idiossincráticos, de tão demonstrativos que são, transformam o filme em inventário van santiano. A alusão ao rock (quer nos actores convidados, quer pela constante banda sonora), o seu fascínio pelos espíritos (algo que em Restless (2012) era já o centro do filme) ou a homossexualidade (quer no personagem negro, poeta e alcoólico, quer no próprio conselheiro, vítima do HIV), são os elementos que pretendem a todo custo tornar reconhecível o filme enquanto um filme de Gus Van Sant.
Talvez a ausência de The Sea of Trees (2015) das salas portuguesas, seja o sintoma do desinteresse generalizado que a actual obra de Van Sant detém junto do público e dos críticos. No início deste Don’t Worry, um dos membros do grupo dos AA a que Callahan pertence, uma mulher burguesa e alcoólica, parece querer avisar o espectador ao afirmar que a sua história não parte de nenhum drama profundo e que, por isso, talvez seja entediante para quem a ouve. De facto esta subtileza de Van Sant deveria ser escutada por todos aqueles que tal como eu o admiram, optando por abandonar a sala ao preterirem ficar para estas duas longas e intermináveis horas de uma banalidade, didactismo e moralismo confrangedor.