É uma das histórias mais singulares a de Paul Schrader com o cinema. Privado dele na sua juventude pela imposição de uma educação rígida calvinista (o primeiro filme só chegou aos 17 anos, e com o sabor do pecado), construiu a sua cinefilia de uma maneira mais intelectual do que emocional, vincada por interpretações teológicas nas obras de alguns cineastas que, segundo ele, eram capazes de captar algo para lá do imanente e do visível, realizadores que caracterizou como portadores de um “estilo transcendente”. Esta filosofia estética foi teorizada no seu livro seminal Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer. No entanto, ao ter-se tornado argumentista e realizador, pelo desejo de abordar a acção, a empatia, a violência e o sexo, Schrader rejeitou sempre a hipótese de fazer um filme segundo os dogmas estudados. Chega agora às salas First Reformed (No Coração da Escuridão, 2017). E First Reformed é a corporalização do estilo transcendente na obra de Paul Schrader.
Pela sua depuração formal e minimalismo de recursos, este estilo veio a ser associado ao “cinema contemplativo” (ou, mais prosaicamente, “lento”): um enredo comedido, enquadramentos maioritariamente fixos, representações inexpressivas dos actores, abstenção de uma banda sonora não-diegética (a não ser num momento inesperado – as missas musicais de Mozart que encerram os filmes de Bresson) e uma maior presença do tempo. No entanto, a diferença entre as obras “transcendentes” e outras mais abstractas ou meditativas reside no seu desenvolvimento narrativo em três partes: um retrato pesado do quotidiano (1), a introdução da disparidade entre o protagonista e o seu meio, que culmina numa acção decisiva (2), e o encerramento do filme em estado de estase (3). Discutimos cada parte desta estrutura no mais recente filme de Schrader (portador de todas as opções estéticas acima enumeradas) pelo recurso a excertos do seu livro e exemplificando o uso de cada uma em Journal d’un curé de campagne (Diário dum Pároco de Aldeia, 1953) de Bresson.
- O quotidiano: “uma representação meticulosa das trivialidades fastidiosas e banais da vida diária.” (A rotina do pároco bressoniano na comunidade e respectivo registo no diário.)
É esta a beleza e a singularidade de First Reformed: a capacidade de misturar a agonia e a paranóia características da Nova Hollywood com a espiritualidade e austeridade do estilo transcendente.
O dia-a-dia do reverendo Ernst Toller (Ethan Hawke), antigo capelão militar que perdeu o filho na Guerra do Iraque, é semelhante ao do padre de Journal…: o ascetismo levado, a devoção litúrgica, a escrita e a alimentação restringida a pão mergulhado em álcool. No quotidiano nada é expressivo, a indiferença, a previsibilidade e a monotonia são absolutas. Schrader transmite esta sensação por planos em interiores onde o despojamento das paredes e escassez de bens no lar de Ernst criam a sensação de vazio, e pelo doubling, isto é, a sobre-enfatização da acção visual pela repetição verbal, explícita na forma como as palavras do diário de Ernst (lidas por ele) dominam a banda sonora enquanto decorre o acto da escrita delas. O quotidiano surge-nos como uma redoma fria e hermeticamente fechada, onde a entrada do Sagrado parece impossível.

- A disparidade: “uma desunião autêntica ou potencial entre homem e ambiente que culmina numa acção decisiva.” (A doença, a reclusão social e sacra do pároco que o conduzem a uma morte santa.)
Esta fase inicia-se pela relação entre Ernst, Mary (Amanda Seyfried) e o seu marido ambientalista radical, Michael (Philip Ettinger), que leva o prior a descobrir um colete de bombas, o qual tenciona utilizar para aniquilação das corporações sem ética ecológica que estão, indirectamente, associadas à sua igreja. É redutor dizer que Ernst o veste por motivações políticas. A acção aqui não surge como resposta a uma situação (o estado ambiental), mas sim a dois factores psíquicos: a culpa paralisante e uma questão interna que pode ser colocada da seguinte maneira: “Quando tudo aquilo em que acredito – o meu filho, o meu Deus, o meu mundo – desapareceram ou estão à beira do colapso, deverei continuar a existir?” É nesta perspectiva que faz todo o sentido as comparações a Taxi Driver (1976) que se têm encontrado. Ambos contêm anti-heróis sartreanos, vítimas daquilo que Schrader tem vindo a designar como “a patologia da glória suicidária”, onde a única maneira de poderem silenciar a crise existencial que atravessam é pelo catapultar extremista dos seus impulsos auto-destrutivos contra uma parte corrupta da sociedade. Não é suficiente para os protagonistas de Schrader obter a morte, é necessário morrer por uma causa que justifique a alienação que os encarcera, tornarem-se mártires e com isso, talvez, encontrar a redenção. É esta a beleza e a singularidade de First Reformed: a capacidade de misturar a agonia e a paranóia características da Nova Hollywood com a espiritualidade e austeridade do estilo transcendente. [Lembramo-nos ainda de Le Diable, Probablement (1977), com semelhantes questões de fé diante do cataclismo ambiental e onde o suicídio surgia como a única escapatória; e Nattvardsgästerna (Luz de Inverno, 1963) de Bergman, na relação entre um padre e um depressivo receoso de uma guerra nuclear, adaptada para as inquietações pós-quebra Acordo de Paris.]
Esta disparidade culmina naquilo que Schrader define como “a acção decisiva”, isto é, algo inexplicável, inesperado e com a capacidade de perturbar a estrutura apática do quotidiano, cuja aceitação pelo espectador depende do seu prévio grau de entrega ao filme [a mostra de amor em Pickpocket (O Carteirista, 1959), a ressurreição em Ordet (A Palavra, 1955)]: uma hierofania (a manifestação do Sagrado). Inibir-nos-emos de referir sob que forma esta surge, mas diremos que, para além de evocar uma obra de Bresson, é uma catarse não só emocional como também formal, onde os sentimentos até aí reprimidos são libertos em união com a câmara, num gesto imparável e desenfreado que mais não é que a materialização da Graça. É ela que, como escreveu Truffaut a propósito dos finais dos filmes de Bresson, provoca “uma espécie de êxito milagroso que desafia a análise e que, se for perfeito, suscitará no espectador uma emoção mais nova e mais pura.”

- A estase : “uma visão paralisada da vida que não resolve a disparidade, mas transcende-a.” (A enorme sombra da cruz na parede, após a morte do pároco.)
Esta fase expõe uma visão quiescente do quotidiano, com a disparidade transcendida e onde o Sagrado mostra estar sob as superfícies invariáveis do dia-a-dia. Para isso, segundo o livro de Schrader, é necessário o recurso a uma figura imóvel que acarreta um peso simbólico. Para além da sombra da cruz, outros exemplos apontados são o pilar inquisitório desocupado no final de Procès de Jeanne d’Arc (O Processo de Joana d’Arc, 1962) ou o rosto calmo de Michel contra as grades da cadeia de Pickpocket. Não há semelhantes no derradeiro instante de First Reformed e, por conseguinte, a estase está ausente, algo idêntico ao que Schrader apontou a Dreyer: “Como Ozu e Bresson, Dreyer usa elementos do quotidiano e disparidade, mas não mostra inclinação para criar estase como eles (…) mas a sua arte da disparidade é distinta e com a capacidade de se aguentar sozinha (…) imediata e completamente realizada quanto as estases de Bresson.” Ora, foi justamente a carnalidade do final de um filme de Dreyer, Ordet, a inspiração para o desfecho do de Schrader. E é igualmente realizado aquele final ambíguo que, para responder às perguntas que levanta (é a salvação ou uma visão?), só pede do espectador um pouco de fé. Se a estase está em falta, o equilíbrio é restabelecido por uma intensidade acrescida na acção decisiva onde esta, seja pelo amor ou pela morte, prova-se suficientemente capaz de transcender todas as disparidades apresentadas. Acabar com um símbolo só causaria a perda do impacto final e uma redundância de um gesto, por si, sublimado.
Schrader já disse que este poderá ser o seu último filme. Se assim for, a sua carreira termina em círculo com o mesmo pensamento que o levou à escrita do livro: a possibilidade de uma câmara aproximar-se do inefável. First Reformed é a obra-prima que, mais tarde ou mais cedo, tinha que fazer. Que estranhos caminhos teve de percorrer para chegar até ela.