Entrou no cinema com a bênção de um mestre, Éric Rohmer, mas os seus filmes, mais cruéis e desencantados, baseiam-se menos na comunicação pela palavra do que na linguagem do corpo – da palavra como corpo ao corpo como palavra. Pelo sexo, Jean-Claude Brisseau coreografa um jogo muitas vezes fatídico entre as suas personagens. Como um bisturi, a sua câmara parte da sugestão sensual do corpo para abrir a cabeça das personagens e fazer-nos mergulhar nos mais profundos mistérios da psique. O cinema de Brisseau, uma experiência por vezes radical que tem desafiado os nossos mais empedernidos padrões (est)éticos, exige toda a nossa atenção. Ele é um dos grandes herdeiros não só de Rohmer como de Ingmar Bergman. Um cineasta que ainda acredita que, pelo cinema, podemos atacar as “grandes questões”: os limites do corpo, a crença em Deus e a fé no nosso modelo de sociedade. Por tudo isto, apetece-nos dizer – e esqueçamos os escândalos – que Brisseau é mesmo um dos últimos grandes representantes do “cinema da crueldade” tal como teorizado por André Bazin. Foi também por causa de toda esta pungente e admirável crueldade que quisemos chegar à palavra com o próprio, quando se estreou em Portugal o mais recente, e outrossim brilhante, Que le diable nous emporte (Que o Diabo nos Carregue, 2018). A entrevista, realizada por telefone, foi-se desenhando sob o signo da beleza, do sexo, da cinefilia e das novas tecnologias.
Carlos Natálio (CN) – Existe uma expressão muito sugestiva de Fabrice Revault sobre o seu cinema: “beleza transgressiva”. Procura essa beleza na transgressão ou antes a transgressão na beleza?
Os dois, elas estão ligadas. A mim interessa-me tudo o que tenha a ver com a transgressão, pois ela está ligada ao começo do meu cinema. Quando decidi começar a fazer filmes queria a transgressão dos géneros, misturando-os através de formas novas. Mas também como naquele livro de Marguerite Yourcenar [Le Tour de la Prison] procurei percorrer os limites da nossa prisão, enquanto moral que nos encerra em determinadas visões do mundo. Por isso, interessa-me as pequenas transgressões, como por exemplo aquelas que atribuímos ao sexo. No início, fazia filmes em Super 8 e comecei a preocupar-me desde logo com a forma como as coisas iriam surgir na projecção. Por exemplo, toda a gente sabe da importância do sexo e eu odiava a ideia de fazer dele uma coisa suja, medíocre, desagradável. Interessava-me sobretudo, a partir da minha forma de filmar, captar a beleza nesse contexto de transgressão. E por isso não consigo separar a beleza da transgressão, sempre estiveram ligadas para mim.
Luís Mendonça (LM) – Georges Bataille escreveu em Ma mère: “É apenas quando o nosso prazer se enche de veneno que se torna delicioso”. Qual é o seu “veneno”?
Não sei se consigo responder. Tudo o que pudesse atribuir a um veneno, não o sinto como tal. É um pouco como aquela frase de Jacques Lacan que se tornou simbólica: “Antes da lei não existia o pecado e foi a lei que nos fez reconhecer o pecado e nos deu a vontade de o transgredir.” Aquilo que me interessa está para lá desse julgamento. O meu “veneno”, se assim lhe quiserem chamar, é o de fazer filmes. Filmes que por vezes tocam em coisas interditas, quer pelos temas, quer pela forma impura, misturada. Há uns anos tinha que filmar uma sequência de amor entre duas mulheres e perguntava-me pela primeira vez como o fazer sem trair uma noção verdadeira de erotismo e toda a dificuldade que isso encerrava. Um tema que me interessa muito é o do sofrimento dos jovens, muitas vezes motivado pela sua ligação a algo ou alguém que procuramos e que depois desaparece. A questão do erotismo e da sedução está para mim muito ligada a essa tentativa de compreender a mecânica do sofrimento.
CN – O absurdo da vida moderna, o erotismo cosmológico, o sobrenatural e o terror, os mistérios da natureza e de Deus, o universo feminino… Estes são os temas constantes no seu cinema, mas o seu olhar parece ter mudado bastante. Por exemplo, os seus últimos dois filmes são muito mais privados, nus, quase naïfs e primitivos. É o efeito do digital?
Não creio. Gosto sempre de tentar fazer as coisas o mais simples possível e de facto com o digital tenho por vezes mais liberdade. Por exemplo, em La fille de nulle part (A Rapariga de Parte Nenhuma, 2012) tentei dizer um conjunto de coisas com quase nada, fazer com que as emoções fossem dispostas de forma quase visceral. Tento ser sempre simples e o mais sincero possível e digo isto aos jovens que começam a filmar. O que não quer dizer que depois não existam coisas mais enigmáticas.
CN – Considera que existe uma atitude de ironia na relação que estabelece nos seus filmes com a tecnologia?
Se sim, talvez apenas no meu último filme: aquele riso da mulher no fim. Podem interpretar isso de muitas maneiras, inclusive pela via da ironia. É como no Treasure of the Sierra Madre (O Tesouro da Sierra Madre, 1948) do Huston, com aquelas gargalhadas do Walter Huston e do Tim Holt no fim. Uma ironia face à sociedade e à vida. Mas pessoalmente não tenho nenhuma ironia em relação à técnica, eu por exemplo adoraria fazer um filme com muitos meios técnicos. Mas também gosto de mostrar que é possível filmar grandes emoções com muito poucos meios.
CN – Vivemos um tempo de grande conturbação relativamente a questões muito diversas como, por exemplo, a moral sexual. De que forma o digital, que permite apagar e criar tudo o que desejamos ex novo, pode ser visto como um modus operandi adequado a um pensamento ou tendência que por vezes prefere simplesmente erradicar as coisas difíceis, controversas, divergentes?
Creio que essa é uma questão que deve ser posta a vocês, os mais jovens. Mas é verdade que a correspondência pela Internet permite um conjunto de coisas que eu reprovo totalmente. As pessoas enlouquecem por vezes e começam a insultar, a dizer aquilo que lhes vem à cabeça e as coisas ganham por vezes contornos meio fascizantes. Creio que é preciso estar alerta em relação a isso. Talvez seja precisa a criação de uma certa regulação para que a lei não seja a lei da selva.
LM – Alguma coisa parece ter mudado neste seu último filme, Que le diable nous emporte. A mulher é a sua própria musa, ela filma-se, pega na câmara e realiza o seu cinema. Trata-se de uma musa criativa que desafia as normas?
Sim, é uma hipótese. Existem coisas inconscientes quando criamos. O facto de ter escolhido pôr as duas mulheres que filmam é simples, porque encontrei isso na minha vida. Mas em relação à personagem interpretada por Fabienne Babe há uma sublimação das coisas duras que ela vai vivendo, pois é uma mulher traumatizada, que se prostituiu. Em relação à outra, a que encontramos no início, ela não consegue ultrapassar a situação e procura algo de melhor. Mas repito: quando comecei a escrever o argumento retive um conjunto de coisas que encontrei e que me deu vontade de fazer um filme.
CN – Frequentemente, as personagens principais dos seus filmes são mulheres. Vê-se como um “cineasta de mulheres” na linha de Mizoguchi ou Cukor?
Um pouco, mas a minha influência, creio, é mais vinda de Ingmar Bergman. Em relação ao olhar, com as personagens masculinas sempre um pouco fracas, em contraposição às mulheres triunfantes. Muitos filmes do Bergman partem daí. E mesmo em relação ao poder da palavra, creio que as longas cenas de diálogo nos meus filmes mais recentes partem dessa admiração pelo cineasta sueco. Na relação com Mizoguchi, ele fazia melodramas, tecnicamente muito diferentes dos meus filmes. Em relação ao Cukor, não era ele que escrevia os seus argumentos e por isso, de uma certa perspectiva, não era um autor, era um cineasta que trabalhava por encomenda. Mas as mulheres adoravam trabalhar com ele.
CN – A cinefilia habita o seu cinema e, sabemos, também a sua casa. Podemos vê-la como uma personagem extra dos seus filmes, um fantasma, uma presença que o assombra e que quer convocar no seu cinema?
Aos 16 anos recebi um exemplar dos Cahiers du cinéma e comecei a interessar-me pela parte dos autores, não tanto pela política. Depois continuei a ver tudo! Ou quase tudo. Alguns não consigo. Por exemplo, os filmes de caraté, um pouco infantis… Actualmente continuo a ver muitas coisas na minha sala de projecção, às vezes, dois, três filmes por dia. É um pouco disso que podemos ver em La fille de nulle part. E o engraçado é que hoje conseguimos ver cópias de DVD num estado que é impossível ver em sala, numa projecção em película.
O cinema trouxe-me esse lado fantástico. Algo presente, por exemplo, num filme que fiz chamado Céline (1992). A presença de um mundo paralelo sempre me fascinou. O cinema também é isso: a capacidade de produzir um mundo. Mas a cinefilia também intervém no momento em que faço a investigação, quer face a uma personagem, quer em relação à observação da própria vida. Isto porque a cinefilia proporciona um mundo de mistura de elementos, algo que me interessa trazer para os meus próprios filmes. Por exemplo, na cultura anglo-saxónica (Shakeapeare ou outros), existe (ao contrário da cultura francesa) esta tradição de relacionar coisas muito diferentes e de forma mais directa. Sejam elas o tom dramático mais sério ou o tom cómico, por vezes a roçar o mau gosto, o erotismo, o fantástico, etc.
A cultura francesa é mais alusiva, mas eu prefiro um cinema mais directo. Claro que há sempre nos meus filmes qualquer coisa que remete para algo, uma tradição, de problemas abertos pela história do cinema. Mas isso sempre sem condicionar o espectador, é importante que ele consiga sentir determinadas emoções, mesmo sem perceber as alusões, as referências. Os meus filmes partem sempre de qualquer coisa que remete para o sentido da vida, e a cinefilia, estando lá, não impede a construção de um caminho pessoal para o espectador.
CN – Em Que le diable nous emporte cita, através de planos de DVDs e livros, Hitchcock, Rohmer, Ford, Walsh… São estes os seus fantasmas favoritos ou há outros?
Tantos são esses fantasmas! Em França, por exemplo, tenho uma grande admiração por Robert Bresson. Entre Les dames du bois de Bologne (As Damas do Bosque de Bolonha, 1945) e Procès de Jeanne d’Arc (O Processo de Joana d’Arc, 1962), penso que Bresson foi o maior cineasta ao nível mundial. Também gosto muito do Melville. Tenho grande admiração por Fellini. Lembro-me de na Cinemateca ter visto 8½ (Fellini 8½, 1963) e de ninguém ter gostado muito e de eu ter sentido uma profunda alegria perante tamanha obra-prima. Lembrei-me agora também do Sam Peckinpah, que fez algumas obras-primas. Depois há nomes como o de Walsh. Não fazendo oficialmente parte da galeria de “autores”, ele fez, claro, grandes filmes. Posso continuar a dar-vos nomes, mas receio que irei sempre deixar, por esquecimento, realizadores de fora desta lista.
CN – E cineastas contemporâneos?
Bom, aí é mais complicado. Não gosto de falar dos meus colegas de trabalho. A verdade é que genericamente não sou um grande admirador do cinema contemporâneo. Mesmo no cinema americano, há um conjunto de filmes que hoje já não se vêem, ou então estão escondidos. Há uma “interdição” qualquer. Grande autores como Hitchcock, Anthony Mann, Walsh, não vamos esquecê-los, sempre foram também de certa forma alternativos. Sou um admirador de Clint Eastwood, mas não tanto dos seus últimos filmes.
LM – Seja pelo ensino, seja pela psicanálise, o seu cinema crê na regeneração do ser humano. Crê que o cinema pode salvar-nos dos nossos demónios?
Não sei. Eu tenho bastante estima pelos meus demónios [risos]. O cinema, como todas as artes, tem um efeito catártico. Graças ao cinema recuperamos um conjunto de emoções e fazemos sair certos impulsos que de outra forma poderiam ser perigosos. Coisas que não conseguimos fazer ou sentir de outra forma por fraqueza. Existe uma ideia muito interessante em Baudelaire que nos diz, salvo erro, que a música desperta as emoções violentas, fá-las vir, elas, as tempestades emocionais, à superfície. Mas que para isso acontecer é preciso perfurar essas mesmas emoções. Penso que é isso que a arte faz, incluindo o cinema. Por isso é que é importante penetrar na linguagem, seja ela a da escrita, da música ou do cinema. As obras de arte são feitas para despertar em nós coisas secretas ou violentas.
Os autores da entrevista querem endereçar um agradecimento especial ao Ricardo Vieira Lisboa e à Susana Bessa (da Leopardo Filmes). Sem eles, a entrevista seria outra ou nem seria.
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[…] Jean-Claude Brisseau. Essa casa foi décor dos seus dois últimos filmes, espaço que este herdeiro de Bresson e Bergman tem dedicado ao amor e ao exorcismo. Fantasmas à parte (será que nos podemos ver livres deles?), […]
[…] revelar menos uma oportunidade de conhecer Brisseau que um motivo para reouvirmos as suas ideias, muitas já nossas conhecidas, nomeadamente a propósito dos mestres da sua cinefilia, como Ingmar Bergman e Alfred […]
[…] menos uma oportunidade de conhecer Brisseau do que um motivo para reouvirmos as suas ideias, muitas já nossas conhecidas, nomeadamente a propósito dos mestres da sua cinefilia, como Ingmar Bergman e Alfred […]