Caro Andrew Haigh,
não me conhece, mas eu conheço-o, ou melhor, conheço os seus filmes. Sei que não é a mesma coisa, talvez até as duas coisas estejam muito distantes, mas tenho para mim que é fácil perceber nos filmes se o respectivo realizador é um bom tipo com quem tomar uma cerveja. Sinto que sim. Talvez não tanto uma cerveja, os filmes do Andrew dão-me a sensação que consigo teria um agradável serão a beber um vinho quente bem condimentado (ou, para não ser tão chique, um chá de camomila com cheirinho). De qualquer forma, isso pouco importa. Tenho simpatia pelos seus filmes, acho que o Andrew tem imenso talento, especialmente no desenvolvimento de personagens e consequente trabalho com os actores. Mas desculpe dizer-lho, um filme ser simpático não é necessariamente um grande elogio. Ou melhor, é, mas no reino dos elogios esse é o mais raquítico de todos eles. Simpática é a água morna. Isto para lhe dizer que apreciando o seu trabalho sou muitas vezes um espectador tépido defronte dos seus filmes: admirador na indiferença.
Certo é, no entanto, que Weekend (2011) foi um filme que me tocou. Creio que as lágrimas me escorreram pelo rosto (mas também, o filme apanhou-me numa altura propícia a essas reacções). E também é certo que poucas horas passaram, depois da sessão, para o balão do entusiasmo se esvaziar. Há nos seus filmes uma qualidade lacrimejante (um anglo-saxónico usaria a expressão tear-jerker – que não tendo uma tradução para português óbvia, apetecer-me-ia traduzir-lha directamente como punheteiro de lágrimas, porque acho-a muito apropriada) e um tendência para o bucólico delicodoce que tende a toldar-lhe o espectro do mundo. Não que os seus filmes não descrevam as relações humanas naquilo que elas têm de mais complexo (pelo contrário, fazem-no eximiamente). Mas há no tom dessa descrição do negro uma espécie de sorriso nostálgico-romântico que tudo apazigua (uma esperança que é, antes de mais, ideológica – e portanto choca com as sua pretensões de naturalismo). Pelo menos em Weekend e neste seu mais recente filme, Lean on Pete (O Meu Amigo Pete, 2017). Quanto a 45 Years (45 Anos, 2015) isso já não é tão verdade. Nesse filme a amargura pesava. Acho mesmo que é o seu melhor filme até hoje. Em grande parte devido aos dois grandes actores que dirigiu: Charlotte Rampling e Tom Courtenay. Como foi trabalhar com a maravilhosa Charlotte? Parece-me, nestes últimos anos, como uma das maiores atrizes desta década, ao lado de Huppert e da Rooney Mara. Não acha?
Lean on Pete é um filme sobre a perda da casa e portanto sobre uma identidade deixada ao relento. O rapaz do seu filme fica duplamente desabrigado, e portanto vê-se assaltado por vagas que o arrastam de um lado para o outro.
Mas retomando o fio à meada. Este seu novo filme marca o culminar de uma progressão narrativa e formal que identifico nos seus filmes anteriores. Não? Tanto Weekend, como 45 Years e até, de certo modo, o tele-filme Looking (2016), trabalhavam uma certa constrição espacial. O primeiro passava-se quase integralmente num apartamento, o segundo estendia-se um pouco à vila onde o casal residia e o terceiro alargava-se a uma cidade. Mas agora, Lean on Pete atravessa diferentes estados (dos Estado Unidos da América) e constrói-se em extensão geográfica. Certamente já se tinha apercebido disso… Se em Weekend o quarto era um micro-cosmos – réplica em ponto pequeno do mundo, ou projecto de um mundo em construção – agora o Andrew já não parece interessar-se pelos esquemas da representação do mundo através de um punctum, mas necessita que os seus esquemas de representação sejam mais directos, mais decalcados do real. Percebo então que o quarto era esse projecto de mundo em mudança, um mundo em que as pessoas poderiam não ter vergonha de si, um território de segurança no qual se estabelecia, uma muralha aparentemente intransponível entre o privado e o público (apesar de o filme se desenvolver exactamente no sentido de tear down that wall). Agora, parece que desaguámos no oposto disso: numa fusão assustadora entre o público e o privado. Parece-me que este seu novo filme, Lean on Pete, é, não acidentalmente, um filme sobre a perda da casa (no sentido arquitectónico, mas também no sentido emocional e afectivo) e portanto sobre uma identidade deixada ao relento (onde o privado não encontra um espaço de existência por se encontrar constantemente assacado pela imparável e multiforme torrente do público). O rapaz (que enorme descoberta este Charlie Plummer!) do seu filme fica duplamente desabrigado, e portanto vê-se assaltado (também nos dois sentidos) por vagas que o arrastam de um lado para o outro.
Acho esse o aspecto mais interessante o seu filme: o facto de o Charley (e a narrativa com ele) estar constantemente ao sabor de guinadas que o desviam do “bom” caminho. Como se ao bicho carpinteiro que o coloca em movimento se juntasse uma necessidade de não seguir um rumo linear e, em resultado disso, o seu filme fosse fustigado por uma sucessão de curvas e contra-curvas narrativas. Ao ver Lean on Pete pareceu-me que a cada 20 minutos o Andrew introduzia um obstáculo na frente do rapaz que o obriga a seguir por um caminho completamente inesperado. E é muito curioso que tenha seguido essa estratégia, porque ela serve perfeitamente o seu intuito de radiografar a América do interior de uma forma não esquemática. Este dispositivo semi-aleatório de percorrer dois pontos (as duas casas de Charley) infecta o filme de uma tensão sobre a rota a seguir (e os perigos a ela associados) que me colocou constantemente numa situação de tensão e surpresa. No fundo, é a estratégia do road movie só que aqui nem sempre há road e nem sempre é de carro que se segue o caminho. Juntamente com a iconografia do western, mas um western anti-especista, onde o homem e o animal caminham lado a lado (o Andrew é vegan, não é? Diga-me lá…). E achei muito interessante que tenha introduzido, a certa altura, um personagem que explica ao protagonista que “when you don’t have anywhere to go, you get stuck”, que é exactamente o contrário do que acontece com ele. Como que dando a ver que cada um reagiria de formas muito diferentes ao mesmo “input” inicial – focando assim na particularidade daquele trajecto e daquele personagem. Certamente não terá pensado nisso, mas fez-me lembrar o Jogo da Vida, o autómato proposto pelo matemático John Conway. Enfim, outras histórias.
Imagino que tenha muito que fazer e esta carta já se está a tornar maçadora. Por isso quero só dizer-lhe que gosto muito de certas estratégias que adoptou, nomeadamente: o simbolismo associado ao cinto (que é simultaneamente marco da idade adulta, descritivo do aperto económico e diário de viagem), a cena com os fortune cookies cujos “ensinamentos” nunca nos são revelados (porque são vazios e porque a sua interpretação só ao protagonista diz respeito) e o modo como descreve o meio rural (tendencialmente mais conservador – os denominados red states) sem qualquer ponta de condescendência [estava a ver o seu filme e só me recordava do quão distante está, para melhor, do péssimo Nocturnal Animals (Animais Nocturnos, 2016) de Tom Ford]. Ao ver Lean on Pete fui me recordando, em alguns momentos, dos filmes dos anos 1990 de Clint Eastwood e Robert Redford. Diga-me lá que não gosta imenso do A Perfect World (Um Mundo Perfeito, 1993) ou de A River Runs Through It (Duas Vidas E Um Rio, 1992)…
Atenciosamente,
Ricardo Vieira Lisboa