Desde criança, Cindy Sherman sentiu-se fascinada por cinema, televisão, maquilhagem, figurinos e adereços, que se tornariam inspiração e matéria para o seu futuro trabalho artístico. O desencanto com a pintura, que via como uma linguagem esgotada, levou-a a enveredar pelo estudo da fotografia. Aquando da sua mudança de Buffalo para Nova Iorque, não participou na seminal exposição Pictures, que decorreu em 1977 no Artists Space, em Nova Iorque, com curadoria do influente crítico Douglas Crimp. Propondo novas perspectivas para a arte contemporânea, a mostra combinava as artes pop e conceptual, através da apropriação de elementos dos meios de comunicação de massa, uma reacção dos artistas, conforme Crimp explica, à importância crescente do modo como as imagens – dos jornais, revistas, televisão e cinema – definem a nossa experiência. Cindy Sherman partilhava uma abordagem semelhante, pelo que ficou ligada à Pictures Generation, grupo de artistas plásticos que, nascidos entre as décadas de 1940 e 1950, cresceram numa época próspera que reverteu na massificação do consumo, da fast food e da televisão – mas também na rebeldia social do rock, do flower power, da cultura Beatnik ou da contestação à guerra do Vietname.
A série Untitled Film Stills (1977-1980) é um conjunto de oitenta fotografias a preto e branco em que a própria Cindy Sherman é a personagem de uma montagem de estereótipos femininos inventariados a partir da sua cultura cinematográfica. Através da convivência com o cinema clássico, a artista plástica concebeu este corpo de trabalho, recriando cenas de filmes americanos, incluindo o noir e a série B, e europeus das décadas de 1950 e 1960, experimentando com maquilhagem, figurinos, cenários e poses, enquanto articulava a posição da câmara. Percorrendo a longa série de imagens, reconhecemos figuras femininas que frequentemente são fixadas pelo cinema, incluindo: career girls, objectos sexuais, mulheres suburbanas, smalltown girls, urban shoppers ou donas de casa. Untitled Film Still #21 (1978) é uma das mais célebres imagens da série, exibindo um contrapicado sobre uma jovem mulher que olha desconfiada para fora do enquadramento, enquanto ao fundo surgem, desfocados, topos de arranha-céus. A expressão dos lábios aponta para uma certa tensão e ansiedade. O pequeno chapéu deixa fugir parte do cabelo louro e contrasta com o sofisticado decote da blusa que cai sobre o casaco. A imagem oferece uma leitura paradoxal: a posição da câmara fornece à figura uma posição de poder, que é duplamente negada pela ingenuidade na postura e pela imponência do fundo.
Da pequena para a grande cidade
Tal como Jacques Tourneur e Robert Wise, a carreira de Mark Robson ficou indelevelmente marcada pela ligação à unidade de produção de cinema que Val Lewton dirigia na RKO Pictures, onde iniciou a carreira de realizador, após ter trabalhado como editor ou assistente de edição de Robert Wise, nomeadamente em três filmes dirigidos por Orson Welles, colossais conquistas artísticas e, na mesma medida, fracassos financeiros que abalaram a estrutura do estúdio: Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941), The Magnificent Ambersons (O Quarto Mandamento, 1942) e Journey Into Fear (A Jornada do Medo, 1942). A obra de Mark Robson na RKO é edificada segundo a nova gramática da sugestão, herdada das peças radiofónicas de Orson Welles e, posteriormente, afinada por Val Lewton. Referindo-se a Jacques Tourneur, Claire Johnston e Paul Willemen, citados em Jacques Tourneur: The Cinema of Nightfall (1998) de Chris Fujiwara, referem ser impossível considerá-lo como um artista que expressa uma coerente visão do mundo ou temática pessoal. Também os filmes de Mark Robson que não foram produzidos por Val Lewton sofrem do mesmo estigma, com a agravante de Robson, ao contrario de Tourneur, não ter actividade na realização antes dessa colaboração. São filmes de boxe e guerra, thrillers, noirs, westerns, melodramas ou comédias que, para além de se manterem desconhecidos ou esquecidos, se encontram dispersos por uma grande variedade de géneros, o que não facilita o levantamento de uma unidade temática.
A obra de Robson acompanha parte substancial da história do cinema norte-americano, desde o período dourado, atravessando a queda do sistema de estúdios, até à revolução da Nova Hollywood. Por outro lado, é uma radiografia inspirada da dialéctica entre a pequena e a grande cidade, bem como da passagem da cidade moderna para a pós-moderna. Terminada a Segunda Guerra Mundial, verificou-se um maior interesse do público por problemáticas relacionadas com a realidade social, algo impulsionado pelas consequências do envolvimento no conflito e pela vontade de reflectir sobre questões sociais prementes. Em 1946, apesar dos sucessos financeiros, é encerrada a unidade de produção de Val Lewton, sendo o produtor dispensado pela RKO. Com as condições de saúde a agravarem-se, encontra trabalho esporádico noutros estúdios, incluindo a Universal Studios, onde é produtor do western Apache Drums (A Revolta dos Apaches, 1951) de Hugo Fregonese, num último esforço para dar continuidade à linguagem pessoal que tinha apurado na RKO. Em 1951, com apenas quarenta e seis anos, um novo ataque de coração põe fim à sua vida, enquanto era assistente do produtor Stanley Kramer. Pouco tempo depois, Vincente Minnelli realizaria The Bad and the Beautiful (Cativos do Mal, 1952), obra maior sobre a indústria do cinema, com Kirk Douglas no papel de um produtor vagamente inspirado na figura de Val Lewton.
Com a saída de Val Newton da RKO, Mark Robson também perdeu a ligação ao estúdio, apenas voltando a lançar um filme em 1949, Champion (O Grande Ídolo), desta vez pela mão do produtor Stanley Kramer, um drama sobre a corrupção no mundo do boxe. Se no trabalho com Lewton, Robson é, porventura injustamente, considerado um tarefeiro que executa a visão do produtor, Champion poderia ser considerado o primeiro filme que realizou, ainda que evoque o trabalho na RKO. Em jeito de filme noir, num belíssimo preto e branco, por vezes até muito contrastado, é conduzido pela interpretação selvagem de Kirk Douglas no papel de Midge, um rapaz do interior que se dirige para a cidade com o intuito de facilmente ganhar dinheiro e sexo, sem olhar a meios. O mundo do boxe coaduna-se com os seus objectivos, mas também apresenta inúmeras armadilhas, que poem à prova a sua falta de escrúpulos.
são filmes de recomeços, correspondendo a momentos de mudança na vida das personagens, com a sua chegada à cidade. (…) É um boy ou uma career girl, posicionado entre a luz e a escuridão
Também a personagem de Kirk Douglas, como acontece com as fotografias de Cindy Sherman, é enquadrada com os arranha-céus em fundo, através da vidraça do apartamento, desta vez numa posição de igualdade. Olhando para baixo, para a rua onde os peões parecem formigas, o seu futuro agente (Luis Van Rooten) comenta a beleza da vista, assegurando que mesmo a capital do mundo poderia ser dele, bastando-lhe fazer a escolha, raramente oferecida, sobre a posição que quer ocupar, entre os grandes ou os pequenos. A tragédia deste homem é não compreender a limitação do seu poder, o facto de que será sempre um peão menor numa engrenagem maior, nesse mundo de sombras densas que o corroem por dentro até o poderem engolir por inteiro. Como o seu primeiro título, The Seventh Victim (1943), e muitos outros que se seguiriam, são filmes de recomeços, correspondendo a momentos de mudança na vida das personagens, com a sua chegada à cidade. Muitas vezes, é nos créditos iniciais que é operada essa mudança, através de uma montagem geradora da ideia de movimento e de mutação. É um boy ou uma career girl, posicionado entre a luz e a escuridão, numa escolha entre o sucesso e a desilusão, como o colosso argentino Toro Moreno (Mike Lane) que chega a Nova Iorque com vista a conquistar o título de campeão de boxe, em The Harder They Fall (A Queda de Um Corpo, 1956).
O filme começa com planos de Toro Moreno que, por um lado, fazem sobressair a grandeza vertical do corpo quando comparado com outros humanos e, por outro, ressaltam a sua pequenez se colocado contra a massa arquitectónica da cidade. Ao contrário de Champion, aqui a corrupção é vista pelo lado dos seus autores, contendo a última participação de Humphrey Bogart no cinema, na interpretação feliz do jornalista desportivo que é encarregado de criar o campeão através das habituais ferramentas ilegais. Ao contrário de Midge, mas como a Anne (Barbara Parkins) de Valley of the Dolls (O Vale das Bonecas, 1967), o musical de Robson onde a ideia de smalltown career girl está mais presente embora com resultados decepcionantes, o gigante é poupado porque escolhe regressar às origens, a uma ilusória inocência primitiva. Daddy’s Gone A-Hunting (Minuto a Minuto, sem Respirar, 1969), último regresso de Robson à mesma temática, é francamente melhor que Valley of the Dolls. Num argumento que segue a lógica da perversidade, da autoria de Larry Cohen, criador de clássicos low budget do cinema de terror – seja It’s Alive (O Monstro Está Vivo!, 1974), enquanto realizador, ou Maniac Cop (Maniac Cop – A Vingança, 1988) de William Lustig, como argumentista -, uma rapariga muda-se para a cidade onde é perseguida por um homem perturbado com quem teve uma breve relação amorosa.
Desde os seus primórdios, o cinema sentiu-se fascinado pela cidade, como sujeito, símbolo e cenário, apresentando-a como um organismo vivo que é percorrida por uma diversidade de géneros. Com Peyton Place (Amar Não é Pecado, 1957), Mark Robson desvia o olhar da grande para a pequena cidade, como se fossem faces da mesma moeda. Estamos em 1941, quando se regista o declínio das pequenas cidades norte-americanas, coincidindo com o movimento migratório para os grandes centros urbanos e de produção fabril, impulsionado por políticas que direccionavam a população para o apoio ao envolvimento na Segunda Guerra Mundial. Peyton Place é uma pequena cidade do interior, espaço superficialmente bucólico que esconde pequenos segredos potencialmente traumáticos quando descobertos, obrigando as personagens a refugiarem-se no anonimato dos grandes centros urbanos para escapar à mesquinhez quotidiana. Ao contrário de tendências prevalecentes em décadas posteriores, em que a cidade é a principal personagem da narrativa, o motor não é uma investigação policial, o tom não é misterioso, nem há elementos sobrenaturais ou personagens excêntricos. Da mesma forma, estamos distantes do universo de Val Lewton, conforme apresentado no documentário Val Lewton: The Man in the Shadows (2007), dirigido por Kent Jones e narrado por Martin Scorsese: “Um mundo paralelo em que tudo parece real e um pouco irreal, familiar mas estranho. As personagens e o espectador são conduzidos através de uma perturbadora zona cinzenta onde o plano real encara o dos sonhos”.
Peyton Place (…) progride “através de uma serena simplicidade nos diálogos e na narrativa, nos rostos e corpos de actores de segundo plano, que muitas vezes ficariam perdidos no fundo da maioria dos filmes. São actores que parecem ter ficado à beira do estrelato.
Protagonizado por Lana Turner, no entanto, Peyton Place parece aproximar-se de uma outra qualidade de Val Lewton, também identificada em The Man in the Shadows, no modo como progride “através de uma serena simplicidade nos diálogos e na narrativa, nos rostos e corpos de actores de segundo plano, que muitas vezes ficariam perdidos no fundo da maioria dos filmes. São actores que parecem ter ficado à beira do estrelato. Muitos dos atores principais não são particularmente expressivos. A expressividade é reservada aos actores secundários que, de repente, entram em cena. Personagens menores transcendem o estrelato de Hollywood, que nunca poderia transmitir uma experiência vivida”. Neste filme-mosaico, na passagem do grande centro para a pequena cidade, a alienação urbana abre lugar a um sentido de comunidade, mesmo que superficial, operado através da cordialidade e da honestidade. No desenho urbano, as casas rodeiam o centro, de modo a que os habitantes possam caminhar para fazerem compras em lojas administradas por comerciantes locais. Com um baixo índice de criminalidade, as portas não necessitam de ser trancadas, gerando uma sensação de grande liberdade e segurança, principalmente entre as populações mais jovens. Às diferentes praticas religiosas, sem grandes antagonismos pois todas são variantes do cristianismo, é imputada a única possibilidade de divisão, através de uma sequência de planos que apenas reafirma a parecença entre os símbolos e sinais dos diferentes credos. O momento de fractura na comunidade é produzido pelo assassínio de um violador e posterior ocultação do corpo. No tribunal, é a pequena cidade, cuja identidade é organizada a partir dos campanários das suas igrejas, que é julgada, por meio do levantamento público de um encadeado de pequenos segredos, desdobrados em grandes traumas pessoais.
Orson Welles e o poder da sugestão
Após uma carreira no teatro como produtor, encenador e interprete em ambiciosas produções teatrais, entre 1938 e 1939, Orson Welles ficaria célebre pelas adaptações radiofónicas de obras literárias que produzia, dirigia e interpretava para “The Mercury Theatre on the Air”, programa emitido pela CBS Radio. Numa das suas mais famosas adaptações, Dracula (1897) de Bram Stoker, Welles oferece a voz a Dracula e a Dr. John Seward, o psiquiatra responsável pelo asilo. Sem o apoio da imagem e um investimento na sugestão sonora, a adaptação brilha quando comparada com o clássico Dracula (1931), realizado por Tod Browning e interpretado por Bela Lugosi. No entanto, é a adaptação de The War of the Worlds (A Guerra dos Mundos, 1897) de Herbert George Wells, emitida durante o Halloween, que se tornaria num marco no imaginário popular, fazendo parte da primeira página de jornais e inflamando a imaginação e a reacção do público. Não só milhões de pessoas ouviram como acreditaram no conteúdo do programa, transformando-o num célebre caso da potencialidade da manipulação e do poder dos meios de comunicação. Em 1938, ao assumir o cargo de presidente da RKO, George Schaefer retomou a ideia de David O. Selznick de instalar unidades de produção independentes dentro do estúdio. Orson Welles e o The Mercury Theatre, emergentes celebridades nacionais pelo impacto de The War of the Worlds eram os potenciais candidatos a ocuparem uma das unidades.
Na sua transição para o cinema, Orson Welles começou por recusar papéis em remakes de The Hunchback of Notre-Dame (O Corcunda de Notre Dame), no papel de Quasimodo, e de Dr. Jekyll and Mr. Hyde, como o médico e o seu alter-ego, por não querer ficar conotado com o género do terror, uma vez que aspirava a posições prestigiadas que lhe permitissem a autonomia que possuía no contexto da rádio. Insistente e confiante na sua escolha, Schaefer ofereceu a Welles um contrato que lhe cedia um poder que, segundo se especulava, apenas teria sido entregue a Charles Chaplin, incluindo o controlo sobre o “final cut”, conquista que viria a dinamitar a sua relação com o estúdio. Entre os projectos em estudo foi escolhida a adaptação do romance Heart of Darkness (O Coração das Trevas, 1899) de Joseph Conrad. Por não estar familiarizado com o medium, Welles dedicou-se demoradamente a um estudo sobre a imagem em movimento, reflectindo sobre técnicas e estilos. Para tal, acompanhou inúmeros screenings, principalmente de obras de John Ford, o seu realizador favorito, do qual declarou ter visto Stagecoach (Cavalgada Heróica, 1939) mais de quarenta vezes. Depois de um caótico ano de trabalho, o resultado não foi Heart of Darkness mas sim o famoso Citizen Kane. Nasce aqui o envolvimento de Mark Robson com um dos momentos mais célebres da história do cinema, enquanto assistente na equipa de montagem de Robert Wise. Quando Wise e Robson foram convidados para a montagem de Citizen Kane, o filme ainda estava a ser rodado. Esta colaboração foi encarada como uma aprendizagem continua para ambas as partes: Welles contribuía com a sua experiência no som e a equipa de Wise com a experiência na montagem, utilizando técnicas que, embora nem sempre novas, atingiriam um grau de excelência.
Com o filme pronto, para além de ultrapassados o orçamento e o prazo de produção, não pararam os problemas com o estúdio. Sobretudo, porque a história de Kane tinha uma grande semelhança com a vida do magnata William Randolph Hearst, que fez tudo para impedir a exibição do filme, incluindo pagar aos produtores para o destruírem. Entretanto, Welles dividia-se entre três novos projectos: Journey into Fear, que acabaria por ser assinado por Norman Foster, o inacabado It’s All True e o assombroso The Magnificent Ambersons. Depois da rodagem de The Magnificent Ambersons, Welles viajou para a América do Sul para continuar o trabalho em It’s All True. Na montagem de The Magnificent Ambersons, Robert Wise e Mark Robson lutavam com os inúmeros takes, apenas comunicando com Orson Welles por meio de más ligações telefónicas. O final cut de Welles teria cento e quarenta e oito minutos, tendo sido testado perante uma audiência que ”ria nos momentos errados, falava durante o visionamento, troçava e fazia tudo o que se poderia imaginar”, como Schaefer referiu num telegrama para o realizador. Com Welles em parte incerta, o estúdio colocou Wise e Robson a trabalhar por turnos para remontar o filme, do que resultou uma versão sem a autorização do realizador com oitenta e oito minutos. Enquanto Wise finalizava a montagem, Robson foi alocado para Journey into Fear. O fiasco dos projectos de Welles levou à demissão de Schaefer e à chegada de um novo director do estúdio, Charles Koerner, que começou por despedir a equipa da Mercury Productions. Inspirado pelo renascimento dos filmes de monstros na Universal, cujo The Wolf Man (O Homem Lobo, 1941), realizado por George Waggner e protagonizado por Lon Chaney Jr., se manteve em exibição durante meses, Koerner reabilitou a unidade de produção de B movies da RKO, com a chegada de Val Lewton, vindo da David O. Selznick Productions.
A unidade de produção de Val Lewton
Marcando as principais tendências do cinema de terror que os outros estúdios seguiam, durante muitos anos, a produção deste género foi dominada pelos estúdios Universal, que se tornaram refúgio de equipas artísticas e técnicas que fugiam da Alemanha, enquanto os nazis instalavam um clima de medo e de perseguições. Para além de, primeiro, Lon Chaney, e depois, Bela Lugosi e Boris Karloff, enquanto figuras maiores do cinema de terror, os técnicos e realizadores alemães pulverizavam os filmes com toques expressionistas, quando chegava outro marco visual do cinema alemão: o actor Conrad Veidt, celebrizado pelo papel do sonâmbulo Cesare no clássico Das Cabinet des Dr. Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari, 1920) de Robert Wiene. No inicio da década de 1940, com Cat People (A Pantera, 1942) produzido pela unidade de Val Lewton e realizado por Jacques Tourneur, filho Maurice Tourneur, outro expatriado e importante inovador do cinema primitivo, na RKO recolhiam-se os ensinamentos da psicologia para inventar um novo estilo de terror baseado na sugestão e na atmosfera.
Emigrante da Europa de Leste, quando foi nomeado director da unidade de cinema de filmes de série B da RKO, Val Lewton recebeu três regras: para cada filme produzido, o orçamento não poderia ultrapassar os cento e cinquenta mil dólares, a duração seria inferior a setenta e cinco minutos e os títulos teriam a aprovação final dos seus supervisores. Para a realização, Val Lewton convidou Jacques Tourneur, Robert Wise e Mark Robson, estes dois últimos para dirigirem a sua primeira obra. Obcecado com a vertente visual dos filmes, Lewton supervisionava o trabalho de realização, direcção de arte, fotografia, cenários e figurinos. No entanto, segundo Robert Wise, nunca se imporia em demasia sobre o realizador e declarava-lhe sempre o seu o apoio. Os primeiros filmes foram Cat People, I Walked With a Zombie (Zombie, 1943) e The Leopard Man (O Homem Leopardo, 1943), todos dirigidos por Jacques Tourneur. Quando Tourneur foi promovido a filmes de classe A, cujos orçamentos ultrapassavam largamente os limites impostos à unidade chefiada por Lewton, este chamou Wise e Robson para a realização. Também a Val Lewton foi proposta a produção de filmes de classe A. A sua insistência em que Mark Robson realizasse The Seventh Victim impediu que se concretizasse a passagem para filmes de maior orçamento, tendo ficado a dirigir esta unidade de produção até terminar a sua ligação ao estúdio. Antes de dirigir The Seventh Victim, The Ghost Ship (O Barco da Morte, 1943), Youth Runs Wild (1944), Isle of the Dead (A Ilha dos Mortos, 1945) e Bedlam (A Casa Sinistra, 1946), Mark Robson foi editor de Cat People, I Walked with a Zombie e The Leopard Man. Entre os filmes realizados por Robson, The Seventh Victim e Isle of the Dead são marcos incontornáveis da história do cinema de terror.
“Numerosas, variadas, perturbadoras ou misteriosas, a maioria das personagens representadas no enredo [The Seventh Victim] tem uma relação particular e pessoal com a morte – abandono, atracção, medo fascinado, resignação, mais raramente repulsa – o que dá ao filme o seu carácter único.”
Sobre The Seventh Victim, em Dictionnaire du cinéma: Les Films (1992), Jacques Lourcelles não se contém na apreciação e escreve: “No interior desta arte fabricada na luz mas consumida na escuridão, esta categoria [fantástico e mórbido] refere-se a tudo o que é nocturno, maléfico, unido às forças do mal, do vazio, do não-ser, seja qual for o nome que lhe queiramos dar. Durante o mudo, Nosferatu [Nosferatu, o Vampiro, 1922, F.W. Murnau] é o filme chave, inegável e indiscutível, desta categoria. Durante a época do sonoro, a sua jóia secreta, o seu diamante negro, é certamente este filme de Val Lewton, assinado por Mark Robson”. Lourcelles apresenta Robson como braço, agente, intermediário de Lewton e acrescenta: “Lewton expressa-se como o faria num poema ou numa confissão […] Numerosas, variadas, perturbadoras ou misteriosas, a maioria das personagens representadas no enredo tem uma relação particular e pessoal com a morte – abandono, atracção, medo fascinado, resignação, mais raramente repulsa – o que dá ao filme o seu carácter único. Esta relação é a sua principal preocupação, e Lewton descreve-a, ou melhor, aflora-a, sem recorrer a qualquer cenário incomum, efeito de terror, representação de personagens monstruosas ou exteriormente anormais. […] Poeta do instinto da morte, da ansiedade, da consumação, dessas forças que invadem o ser para o desviar do seu desenvolvimento vital, Val Lewton, como o Murnau de Nosferatu, modelam a sua matéria no registo da aparição e do fascínio mórbido. Acrescenta-se uma nuance pessoal suplementar, de desespero polido, de romantismo apenas sussurrado, sem equivalente no cinema”.
A Rake’s Progress é um conjunto de pinturas e gravuras da autoria do artista plástico britânico William Hogarth, que exibe a ascensão e declínio de Tom Rakewell, filho libertino de um mercador rico que viaja para Londres, gasta a herança em práticas luxuosas, da prostituição ao jogo, sendo encarcerado na Fleet Prison devido à acumulação de dívidas e, posteriormente, no Bethlem Hospital (Bedlam), instituição destinada a doentes mentais. Na forma do típico storyboard utilizado na produção cinematográfica, a vida do perdulário tem equivalente em A Harlot’s Progress, também da autoria de Hogarth, a história de uma jovem mulher que morre prematuramente de uma doença venérea, aos vinte e três anos, após ter-se mudado do campo para a cidade, onde trabalha como prostituta. Para além de ter inspirado obras de dança ou de ópera, A Rake’s Progress, mais precisamente a gravura nº 8, foi o ponto de partida para o filme de Robson, Bedlam. A gravura exibe o ambiente demente da instituição que serve de palco para o freak show que aristocratas e endinheirados pagam para assistir.
Em Bedlam, Nell Bowen (Anna Lee), protegida de um aristocrata conservador, visita o asilo, ficando horrorizada com as condições sub-humanas em que vivem os doentes. Enquanto move influências para melhorar as condições de vida dentro do asilo, o seu director (um refrescado Boris Karloff) desenha um plano para a internar. Especula-se que Val Lewton, enquanto colaborador do produtor David O. Selznick, em Gone with the Wind (E Tudo o Vento Levou, 1939) de Victor Fleming, colaboraria na criação do célebre plano em que a câmara parte de um plano frontal de Scarlett (Vivien Leigh) aumentando o ângulo de visão até um plano geral em que revela o campo de batalha com os soldados derrubados. Em Bedlam, na primeira visita de Nell ao asilo, a câmara cria o mesmo efeito, mostrando o cenário dantesco que a aguarda. Entre 1945 e 1946, Boris Karloff foi a estrela principal em três filmes produzidos pela unidade dirigida por Lewton: The Body Snatcher (O Túmulo Vazio, 1945) de Robert Wise, Isle of the Dead e Bedlam. Karloff reconheceu o importante papel do trabalho que desenvolveu na RKO, ao impulsionar uma nova vertente na sua carreira, afastando-o da imagem de Frankenstein e dos filmes de monstros que o enclausuraram na Universal.
Ainda Lourcelles, acerca de Bedlam: “É, digamos com frontalidade, um dos filmes mais extraordinários do cinema americano. Pela sua crítica ao Iluminismo, apresenta um modernismo surpreendente e traduz com grande antecipação o conteúdo de certas obras de dramaturgos e ensaístas contemporâneos. […] Como em The Seventh Victim, podemos considerar que se trata inteiramente de uma obra de Val Lewton, na qual Robson serviu de intermediário fiel e compreensivo. Apesar do orçamento reduzido, a questão plástica é o elemento essencial da obra. […] A estrutura temática de The Seventh Victim repousa numa oposição maniqueísta entre o Bem, equiparado ao Ser, e o Mal (Satanismo) equiparado ao Não-Ser. Aqui, a oposição fundamental que alimenta o filme é mais moral, social e política do que metafísica. As principais peripécias da trama ilustram a antítese entre o egoísmo (coqueteria, frivolidade, cinismo, crueldade, voyeurismo e indiferença para com os outros, etc.) e a caridade (doação, interesse pelo outro, etc.). Essa antítese comanda toda uma série de outras, de carácter político e filosófico: os conservadores contra os liberais, a razão contra a loucura, o pessimismo contra o rousseauismo. A audácia do filme é colocar a razão do lado do egoísmo e do cinismo, enquanto a loucura se junta ao campo da natureza, da espontaneidade, da solidariedade e da esperança.”
A obsessão de Val Lewton pela pintura Die Toteninsel (Isle of the Dead, 1880) de Arnold Böcklin, não só deu o título a um dos filmes que produziu, Isle of the Dead de Mark Robson, onde é recriada para se tornar cenário da acção, como aparece no fundo de planos de I Walked With a Zombie, cujo enredo decorre noutro espaço que poderia ser equiparado a uma ilha da morte. Isle of the Dead decorre durante a participação da Grécia na Guerra dos Balcãs (1912-1913), que permitiu ao país duplicar a sua área territorial até à dimensão actual, tendo como protagonista Boris Karloff no papel de um general que se desloca até à Ilha da Morte para visitar a tumba da companheira, que é encontrada vazia. Ao passar a noite com um grupo abrigado na ilha é detectada a existência de peste septicémica, impondo-se uma quarentena até à chegada do siroco, vento quente e seco que sopra a partir do deserto do Saara em direcção ao Norte. Entretanto, é evocado o mito da vorvolaka, criatura do folclore grego que existe entre a vida e a morte, também associada ao lançamento de epidemias. Para além do título, a pintura de Böcklin inspira a definição plástica do espaço através da simplicidade do motivo, mas também a ligação complexa entre várias noções que convoca: terra/água, poder/submissão, chegada/partida, exterior/interior ou masculino/feminino. Isle of the Dead é exemplar na economia de meios e na utilização da sugestão como ferramenta na criação de tensão. Com o exterior reduzido ao corredor entre o cais e a casa que abriga o grupo que, cercado pela epidemia, vai auto-impondo uma série de novos cercos até reduzir as áreas de circulação à limitada dimensão dos quartos.
O filme The Ghost Ship vem provar que numa boa obra produzida por Val Lewton, mesmo as premissas realistas conduzem aos recantos mais sombrios da psicologia humana. Obra negligenciada, passada num meio masculino com contornos homoeróticos, resguarda-se num ambiente onírico para se distanciar dos patrióticos filmes de guerra lançados ao longo dos anos de 1940, através da ausência dos típicos tons de celebração, competência, disciplina e respeito pela hierarquia. Ainda durante a Segunda Guerra Mundial, numa tentativa de afastamento da zona de conforto, Lewton produz e Mark Robson dirige Youth Runs Wild, filme de mensagem em que o comentário social advém de uma história em torno do desleixo a que são sujeitas as crianças, enquanto os pais se envolvem no esforço de guerra. A censura não gostou da aproximação à realidade que poderia desmotivar a população, pelo que obrigou a cortes, nomeadamente nos aspectos mais mórbidos. De certa forma, Youth Runs Wild antecipa algum cinema do pós-guerra, quando o público mostrou um maior interesse em filmes virados para a realidade e a problemática social. O desmantelamento da unidade de produção de Val Lewton e mesmo o trabalho futuro de Mark Robson em Champion, na forma como espelha a migração entre meio rural e o centro urbano, são sinais desta mudança de percepção.
Segregação racial
O épico The Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação, 1915), de D. W. Griffith, é considerado um marco, também no sentido de ter retido a imagem da condição negra, promovida por uma América branca e racista em luta contra a população negra, que não só era remetida para certos espaços (i.e. cozinha, copa e átrio), como lhe eram entregues papéis secundários, muitas vezes associados a actividades criminais. Como Manthia Diawara nota em Black American Cinema: The New Realism (1993): “A população branca deve ocupar o centro, deixando aos negros uma única escolha – a sua existência em função da condição branca. The Birth of a Nation é o texto icónico que suprimiu os contornos reais da história e da cultura negra nas telas de cinema, que eram monopolizadas pelas principais empresas da indústria de cinema da América. […] Por outras palavras, não há histórias simples de negros a amarem-se, a odiarem-se ou a gozarem os seus bens pessoais, sem a alusão ao mundo branco, porque os espaços em que as histórias acontecem são ocupados por novas formas de relações raciais que foram sobredeterminadas pelo texto icónico de Griffith”. Em 1920, o realizador negro Oscar Micheaux, proprietário da sua própria companhia de produção, lançou Within Our Gates, resposta a The Birth of a Nation, num retrato da questão racial nos Estados Unidos, a partir das leis de segregação racial, o reaparecimento do Ku Klux Klan e a grande migração de população negra das zonas rurais para os centros urbanos. Retratos contemporâneos da população negra, questão racial entre brancos e negros e desafios impostos aos negros que lutam pelo sucesso, eram alguns dos temas explorados por um conjunto de realizadores, produtores e argumentistas de origem negra que operavam dentro de um sistema integrado de produção, distribuição e exibição que apenas foi abalado pela integração racial e o aumento dos custos produtivos.
Na segunda metade da década de 1940, intensificava-se o abismo entre brancos e negros devido a históricas políticas de intolerância e a leis de segregação racial. O esforço com que a população negra contribuiu para o desfecho da Segunda Guerra Mundial foi assinalável, o que não impediu que, independentemente da posição que ocupava, fosse sujeita a acções discriminatórias. O fim da Guerra não correspondeu à renovação social que se esperava. A Hollywood branca, numa tentativa de tranquilizar a consciência social, respondeu com a exploração e discussão destes comportamentos divisivos, lançando um conjunto de filmes conhecidos como problem pictures, cujo objectivo principal era abordar a questão racial. Baseado numa peça teatral, protagonizada por um judeu no lugar de um negro, Home of the Brave (Páginas Gloriosas, 1949) foi dirigido por Mark Robson e produzido por Stanley Kramer. A narrativa acompanha um grupo de militares norte-americanos numa missão de reconhecimento a uma ilha ocupada por japoneses.
Quase inteiramente filmado em estúdio, há um certo engenho na forma como Robson filma o cerco do grupo na ilha não dando a ver a presença dos militares japoneses, para além dos sons que emitem.
Home of the Brave é um dos primeiros filmes que, em Hollywood, no período a seguir à Segunda Guerra Mundial, aborda a questão da tensão racial, neste caso dentro do exército norte-americano. Através de uma sessão de terapia, o filme recorre a flashbacks conduzidos pelo militar negro Peter Moss (James Edwards), atacado por uma neurose que o impede de andar, causada por um incidente que o faz sentir responsável pela morte de um amigo de longa data, que numa discussão lhe chamara nigger, um termo pejorativo de carácter racista. Quase inteiramente filmado em estúdio, há um certo engenho na forma como Robson filma o cerco do grupo na ilha não dando a ver a presença dos militares japoneses, para além dos sons que emitem. No entanto, ao juntar a questão racial com a terapia psicológica, o filme aproxima-se perigosamente da ideia de que a segregação poderá ser apenas fruto da mente de Moss. O final, em que Moss já curado parte com um colega que perdeu um braço, para fundarem um restaurante, também não ajuda a causa. Como James Baldwin brilhantemente resume em The Devil Finds Work (1976): “Porque é tão alto o preço do que, afinal de contas, deveria ser uma relação tão simples? É realmente necessário perder uma mulher, um braço ou o juízo para poder dizer olá?”. Ainda a tocar a questão racial, mas também os desafios levantados pela chegada do comunismo, Robson alcançaria resultados mais gratificantes em Trial (A Fúria dos Justos, 1955), filme de tribunal em que a personagem de Glenn Ford é instrumentalizada na defesa de um latino acusado de um assassinato.
Terramoto em Hollywood
Embora tenha nascido em França, o sistema de estúdios foi rapidamente implantado em Hollywood através da integração vertical do controlo da produção, distribuição e exibição, associando a divisão de trabalho ao desenvolvimento massivo e em simultâneo de filmes. Os poucos estúdios que existiam monopolizavam a indústria, organizando a produção em departamentos diferentes que eram confiados a especialistas. Cada estúdio criava a própria identidade, a partir da exclusividade de equipas artísticas e técnicas, incluindo actores, realizadores, argumentistas ou designers. Os filmes de género surgem ligados ao sistema de estúdios, com o seu conteúdo organizado segundo tipos reconhecíveis definidos por regras especificas, cuja definição não é estática porque se baseia nas expectativas do público que podem variar com o tempo. Ao longo da década de 1970, enquanto os “easy riders, raging bulls” (Peter Biskind), ou a “Nova Hollywood” procuravam alternativas ao fim do sistema de estúdios – que curiosamente tinha culminado com o fim das actividades da RKO – e à consolidação da televisão, empreendendo uma revolução técnica e estética na produção e distribuição cinematográfica, os grandes estúdios tomavam o desastre como matéria de trabalho, renovando um género que tomara o nome de cinema-catástrofe. Terramotos, arranha-céus incendiados, navios afundados ou aviões desnorteados, eram alguns dos expedientes que geravam receitas substanciais, enquanto convidavam para cabeças de cartaz actores envelhecidos, com carreiras prestigiadas construídas durante o período clássico, aqui protagonistas de mortes trágicas. Humilhação foi o termo que a crítica Pauline Kael utilizou para descrever o expediente, enquanto criticava a qualidade estética e assumia que o único divertimento era o jogo de prever quem iria morrer primeiro. Earthquake (Terramoto, 1974) é um dos mais célebres filmes do género, assinado por Mark Robson, em final de carreira, antes do eficiente thriller Avalanche Express (O Expresso Avalanche, 1979).
[Earthquake é] Como um longo adeus a Hollywood, um último exercício de catarse, nada é poupado para que possa estimular a imaginação. Tudo é mostrado, desde o arranha-céus a quebrar, até ao pedaço de vidro enfiado na face de um desconhecido. A terminar, uma personagem lamenta: “This used to be a hell of a town!”.
Enquanto abordava outro tipo de cinema-catástrofe, os filmes de ficção científica dos anos de 1950, Susan Sontag escrevia: “Em vez de um exercício intelectual, podem oferecer algo que os romances nunca poderão – elaboração sensual. Nos filmes, é por meio de imagens e sons, não palavras que precisam de ser traduzidas pela imaginação, que se pode participar na fantasia de viver a própria morte e mais, a morte das cidades, a destruição da própria humanidade. Os filmes de ficção científica não são sobre ciência. São sobre o desastre, que é um dos mais antigos assuntos da arte. Nos filmes de ficção científica, o desastre raramente é visto intensamente; é sempre extensivo. É uma questão de quantidade e de criatividade. Se preferirmos, é uma questão de escala. […] Assim, o filme de ficção científica interessa-se pela estética da destruição, pelas belezas peculiares encontradas na devastação, na produção do caos. […] Algumas das gratificações primitivas dos filmes de ficção científica – por exemplo, a representação do desastre urbano numa escala colossalmente ampliada – são compartilhadas com outros tipos de filmes. Há pouca diferença visual entre a devastação representada nos velhos filmes de terror e monstros e a que encontramos nos filmes de ficção científica, excepto (novamente) a escala. […] Estas sequências também não diferem na intenção estética das cenas de destruição na espectacular orgia de cor dos sword & sandal passados nos tempos bíblicos e romanos – o fim de Sodoma em Sodom and Gomorrah de Aldrich, de Gaza em Samson and Delilah de DeMille, de Rhodes em The Colossus of Rhodes, e de Roma numa dúzia de filmes com Nero. Começando com Griffith na sequência da Babilónia de Intolerance, até hoje não há nada como a emoção de ver todos aqueles cenários caros a desmoronarem-se”.
As transformações de ordem económica, social e física do espaço urbano, influenciam o modo como as cidades são percepcionadas no cinema. Enquanto Nova Iorque se tornou num paradigma da cidade moderna, Los Angeles é o protótipo da metrópole pós-moderna. Se na cidade moderna, os diferentes grupos sociais e étnicos moram em áreas diferentes, na cidade pós-moderna, os mais variados estilos de vida existem lado a lado, de forma caótica e fragmentada (Ewa Mazierska e Laura Rascaroli). Los Angeles, metrópole pós-moderna, capital do cinema, é o espaço híbrido que serve de cenário para Earthquake. Após planos aéreos da cidade de Los Angeles, a câmara desce à terra para enquadrar a personagem de Charlton Heston a praticar jogging, enquanto se afasta do letreiro de Hollywood, em Mont Lee. Um pouco mais à frente, numa perseguição desenfreada pela polícia, uma viatura enfia-se na sebe de uma casa que pertence a Zsa Zsa Gabor, actriz com carreira curtíssima em papéis principais, mas que se tornaria numa celebridade de Hollywood, mais pela glamorosa vida social e pelo número de maridos. Os efeitos do terramoto começam a sentir-se, precisamente, numa sala de cinema que exibe o título de um género defunto, o western: High Plains Drifter (1973), realizado e protagonizado por Clint Eastwood e filmado numa cidade totalmente construída como cenário, na área de Mono Lake. Enquanto privilegia a vertente artificial do cinema, Earthquake fala-nos de dissimulação e de morte. Visualmente, é a pura negação do modelo de sugestão herdado de Orson Welles e aperfeiçoado por Val Lewton. Durante longos minutos, em que a nova técnica do sensurround transforma o desastre numa experiência imersiva, toda a cidade é destruída. Como um longo adeus a Hollywood, um último exercício de catarse, nada é poupado para que possa estimular a imaginação. Tudo é mostrado, desde o arranha-céus a quebrar, até ao pedaço de vidro enfiado na face de um desconhecido. A terminar, uma personagem lamenta: “This used to be a hell of a town!”.