Há uns meses escrevi as seguintes linhas a propósito da primeira longa-metragem de Bertrand Mandico (exibida na última edição do festival IndieLisboa). Parece-me mais que adequado começar por elas para olhar, agora, para a nova longa de Yann Gonzalez, Un couteau dans le coeur (2018).
Jack Smith e Kenneth Anger, Borowczyk e Jodorowsky, Franco e Ruiz, Terayama e Wakamatsu. Este panteão de realizadores forma, certamente, o panteão de Bertrand Mandico, e Les garçons sauvages (2017) parece ser o resultado de uma dieta onde todos os hidratos foram substituídos pelo trash, a erotica, o pink, o exploitation, o survival e o body horror, a fantasia e o filme de piratas. Numa palavra: o excesso. Mas Mandico não é um cineasta da citação, pelo contrário, é um cineasta cujo universo é uma massa, onde as referências deixam de ser identificáveis para passarem a ser apenas sensações de vago reconhecimento. Daí os diferentes formatos e contrastes, a cor e o preto-e-branco, como se neste filme convivessem diferentes filmes, em tumulto. Expressão perfeita dos próprios personagens, também eles em tumulto, assaltados por diferentes identidades. E esta barroca rêverie pós-moderna faz-se metáfora sobre a identidade de género. O que não surpreende, quando já as suas curtas Notre-Dame des Hormones (2015) e Prehistoric Cabaret (2013) encontravam na gosmenta ficção científica dos anos 1980 reflexos de sexualidades não normativas.
Porquê começar por Mandico a propósito de Gonzalez? Vários são os motivos: a mesma filiação estética e cinéfila que os une, a pertença a uma mesma geração do “novo” (?) cinema francês, a coincidência de as suas longas terem estreado no espaço de pouco meses (entre o anterior Festival de Veneza e o recente Festival de Cannes), um semelhante percurso pelas curtas como balão de ensaio para a longa, a amizade que os une, o facto de Mandico ser personagem de Un couteau dans le coeur (interpreta um director de fotografia), a pouca surpresa de descobrir que na Carta Branca que o festival Curtas Vila do Conde ofereceu a Gonzalez se encontra um filme de Mandico [Depressive Cop (2016) – 18 Jul., 23h30, Teatro Municipal Sala 2] ou o caso de, em França, as últimas curtas de Mandico, Gonzalez e Poggi/Vinel estarem a ser distribuídas comercialmente numa sessão conjunta intitulada Ultra Rêve.
Mas Gonzalez não é estranho ao espectador português atento. Em 2007 a sua curta By the Kiss (2006) foi premiada no Curtas de Vila do Conde, iniciando-se aí uma relação entre o realizador e o festival que deu origem a Land of My Dreams (2012), curta filmada no Porto no âmbito do projecto Estaleiro (dinamizado pelo festival), à selecção de Nous ne serons plus jamais seuls (2012) no ano seguinte e, no ano passado, Les Îles (2017) venceria o prémio para melhor ficção em Vila do Conde e de melhor curta-metragem no QueerLisboa. Assim, é mais que natural que Un couteau dans le coeur figure na programação do festival de curtas, na sua secção Da Curta à Longa.
O que caracteriza o cinema de Gonzalez é o gosto decadente pelas imagens barrocas, pelas iluminações marcadas, pela encenação do excesso, pela subversão dos géneros cinematográficos, e, do ponto de vista da temática, o retrato da sexualidade na sua vertente mais performativa e a exploração do sexo como acto transitivo de relacionamento. Nos seus filmes o sexo faz-se palco onde se encenam as fantasias dos espectadores (e Gonzalez literalizava isto em Les Îles tanto com o palco de teatro, como com outros palcos, os do crusing, os do voyeurismo – que ali se fazia auditeurism com o seu gravador de cassestes – e os do próprio cinema, como agora Un couteau confirma), fantasias essas que substituem (ou catalisam) a própria experiência do sexo. Un couteau é a continuação natural dessa curta, onde agora o sexo (e o cinema) se torna assunto central, não fosse esta a história de um produtora de filmes pornográficos gay. Mas antes, e como estou em modo de auto-citação (em homenagem ao próprio cinema de Gonzalez – e Mandico), recupero outra linhas que estendi sobre Les Îles que servem bem de descritivo ao universo do realizador.
O filme organiza-se em três actos abstractos altamente cenograficos onde a influência do cinema erótico europeu dos anos 1970 e 1980 (à cabeça Jess Franco, mas poderiam ser muitos mais) é semelhante àquela que “atormenta” outros realizadores franceses contemporâneos como Bertrand Mandico ou Shanti Masud. Sexo (mais soft do que hard core), gore, freeze frames, encadeados fundidos longuíssimos, tintagem, banda-sonora electro-pop… tudo a favor dessa ideia fundamental em redor do intervalo que se estabelece entre o espectador e a vida. Gonzalez cria um filme de câmara (no sentido musical, entenda-se, mas também no sentido fotográfico), qual alegoria da própria posição do espectador: sempre distante, sempre desejoso de proximidade, incapaz de perceber que tudo não passa de um simulacro. Porque o cinema não tem toque, nem cheiro (do esperma e da merda, como se ouve a certa altura), nem dor, nem sangue. E no entanto Le Îles canta tudo isso, sabendo que o cinema é apenas a mais elaborada das masturbações.
Un couteau começa com uma montagem paralela entre o engate numa discoteca gay – que une um rapaz e uma figura mascarada – e a montagem de um filme pornográfico – protagonizado exactamente por esse mesmo rapaz. Isto é, o cinema e o teatro do engate encontram-se num mesmo espaço de possibilidades ficcionais, mas mais importante que isso, ao engate segue-se um sangrento assassínio e à projecção contínua dos filmes pornográficos na moviola segue-se o corta e cola da película. O esfaquear do anus do rapaz surge então equiparado ao “esfaquear” do filme enquanto objecto de montagem. Logo aqui, na sequência pré-creditos, inauguram-se pelo menos dois motivos que o filmes explorará durante a sua hora e meia de duração: a ideia de manipulação (que a montagem do cinema traduz e que o engate sempre carrega) e a violência (do cinema – no contacto com a película – e do sexo – no contacto com o amante).
Un couteau dans le coeur pode ser encarado como metáfora para a epidemia da sida, mas é, afinal, metáfora sobre o próprio cinema, cristalizada na figura do corvo cego.
Há portanto um assassino em série que vai matando vários actores pornográficos utilizando para isso uma pénis postiço que, no momento do clímax, ejacula uma lâmina: um falo de ponta-e-mola. Estamos nos anos 1970 e Gonzalez, por entre uma miríade de universos cinematográficos, remete-me muito para o cinema de Brian de Palma no início dos anos 1980, nomeadamente Dressed to Kill (Vestida Para Matar, 1980) e Blow Out (Blow Out – Explosão, 1981) – talvez as suas obras-primas. A investigação do homicida através do cinema, a relação do sexo e da morte, as identidades camaleónicas, o espectro de cores saturadas, os split screens, o voyeurismo hitchockiano [citação directa do olho que espreita em Psycho (Psico, 1960), só que aqui o olho está na boca e espreita a montadora, isto é, espreita outro voyeur – e voyeur que espia voyeur tem mil anos de perdão], tudo remete para De Palma. Mas também para algum do cinema japonês pink dessa mesma época e, inevitavelmente, para o giallo.
Mas o achado do filme passa pela ideia mórbida de a produtora dos filmes pornográficos (interpretada por uma espantosa Vanessa Paradis) resolver adaptar o caso de polícia que atravessa o seu elenco como trama do seu novo e mais audacioso filme porno. A pornografia encena os homicídios e a realizadora assume o papel de assassino mascarado, e nós, espectadores, somos cúmplices desse doentio jogo de espelhos que Gonzalez sabe muito bem baralhar – jogo de espelhos auto-reflexivo, não fosse o filme dentro do filme uma chamada de atenção para o próprio feitiço diabólico que Gonzalez conjura (também ele um realizador-assassino). Un couteau dans le coeur pode ser encarado como metáfora para a epidemia da sida, mas na verdade parece-me que ao realizador interessa muito mais o pastiche sobre as significações psicanalíticas (ao verem este filme Freud e Lacan teriam uma ejaculação precoce dupla e simultânea) que, de certo modo, pela sua falta de subtileza barroca acabam entorpecidas na torrente do excesso. Aliás, um dos grandes feitos do filme passa pela ideia de contínuo que a montagem encontra entre cenas muito díspares, que faz com que personagens saltem no espaço e no tempo e que, desses saltos, não surja uma ideia de fragmentação, pelo contrário, surja uma espécie de unidade onírica e hipnótica.
Un couteau dans le coeur é, afinal, metáfora sobre o próprio cinema, cristalizada na figura do corvo cego e da mitologia da floresta dos mortos. Conta-se, em certo ponto do filme, que em determinada floresta as pessoas deixavam os seus mortos queridos entre as folhagens porque nelas viviam um conjunto de corvos que absorviam a morte, subiam aos céus, aproximavam-se do sol e libertavam no clarão de luz e calor as almas penadas para que os corpos voltassem à vida (acabando os corvos cegos nesse processo). Esta é uma das mais belas metáforas sobre o cinema que já alguma vez ouvi: também ele absorve a morte – o cinema filma a morte a trabalhar –, também a sublima no confronto com um clarão de luz e calor – o projector –, também ele traz de volta à vida os corpos inanimados daqueles que aprisionou nos seus fotogramas e também ele corre o risco de se queimar no contacto com o sol.
O Curtas Vila do Conde exibe Un couteau dans le coeur de Yann Gonzalez no âmbito da secção Da Curta à Longa. O filme passa no dia 17 de Julho, às 23h00, no Teatro Municipal Sala 1. O festival ofereceu uma Carta Branca ao realizador intitulada Avand-garde Midnight Madness que passa dia 18 de Julho, às 23h30, no Teatro Municipal Sala 2.