Havia chegado há menos de uma hora a Vila do Conde e veio-me à cabeça uma daquelas metáforas bem pobretanas. Passava a pé para o centro da cidade, e, olhando o Rio Ave à esquerda e à direita, foi como se, ao cruzar a ponte, passasse um portal para outro mundo. Um mundo habitado por quase tudo o que me torna a vida apetecível: bom tempo, cinéfilos afáveis, espectros malditos e cerveja gelada. Que boa parte do cinema português – e não me refiro apenas aos filmes, mas naturalmente aos seus agentes – se reúna anualmente ali, num dos festivais de cinema mais antigos do país, faz todo um sentido, sentido que menos se explica e mais se sente. Como disse alguém: o que acontece no Curtas Vila do Conde fica no Curtas Vila do Conde. Bom, mas mais ou menos verdade, pois vou ao menos tentar contar-vos algumas das (boas) impressões dos filmes portugueses que pude ver. Assim, como os dedos de uma mão, aqui fica a dezena de obras que em mim melhor deixaram a sua impressão digital.
Começo propositadamente pelo filme do Duarte Coimbra, como ele próprio referiu “uma comédia romântica sobre a falta de espaço”. Não vale a pena cerrar a sobrancelha e espetar neste belo pedaço de vida, excesso e incongruência o punhal da regularidade. Seria como desdenhar o sol pelo seu excesso de calor. Como não amar profundamente a sua honestidade? Como não sair dele meio esvoaçante, apaixonado por tudo aquilo que tem de poesia bruta, de diamante tosco e brilhante? As jovens aventuras de um Manel, de um rapaz de colchão debaixo do braço, de uma lisboa gentrificada, um street movie onde se cantam os pastéis de carne numa rodagem local, se descobre o amor nas fotografias dos pais ou no inesperado recato de um catering manhoso. É verdade que há algo de nostálgico neste Amor, Avenidas Novas, numa Lisboa de Lena D’ Água e que outrora podia ser tão confortável e romântica como um quartinho ameno e um belo colchão. Mas também é certo que aquilo que nos faz lembrar os universos vociferantes dos primeiros filmes de João Nicolau e Miguel Gomes, na fulgurante criatividade de Duarte Coimbra, é menos um sentido de ironia, e mais a capacidade de encontrar o inadiável, o importante (neste caso, o amor) num mundo que muda a uma velocidade da luz. E depois, convém lembrá-lo: estamos perante uma primeira obra. Não para desculpar nada, nem ninguém, mas para nos pormos a pensar nesta coisa de tentar tudo em pouco espaço e menos tempo. A escrita sobre as imagens fixas, o trabalho em estúdio, a dimensão meta, o som ausente e presente, o diálogo/monólogo, o cantar e o dançar, etc… Muitas coisas e quase todas bem feitas. E depois continua, como uma sede inesgotável… senão vejam só o trailer.
No primeiro plano deste filme de David Pinheiro Vicente vemos seis jovens em viagem num carro. Plano atravancado, um dos rapazes puxa a t-shirt do corpo, está muito calor, de outro vê-se apenas uma orelha, acolá uma mecha de cabelo, uma rapariga masca pastilha, outra, com a face brilhante do suor, conta-nos a história de uma serpente de estimação. Mais tarde outra cobra veremos, assim como uma maçã (um pêssego?), uma queda e tudo o mais que faça do Verão destes jovens um éden perdido. Mas volto ainda ao plano, no qual um dos rapazes tirou entretanto a t-shirt, outro busca do chão do automóvel uma garrafa de água fazendo levantar a perna de uma das miúdas, assim como uns segundos depois outro rapaz se esgueira por cima de outro para dar uma cacetada no rádio. Esta confusão de corpos apertados no plano é também outro sinal para onde vai este Verão, uma câmara atenta ao toque, ao mergulho, ao sabor, à saliva do beijo, ao sangue da ferida ou ao som omnipresente dos pássaros e das cigarras. O que mais me agrada neste espaço de descoberta e sensorialidade é que não podemos apenas falar do erotismo dos corpos — como no João Pedro Rodrigues de O Ornitólogo (2017), por exemplo —, ou só na longa cadência primitivista de Apichatpong Weerasethakul — como em Sud Pralad (Febre Tropical, 2004). Creio que é preciso ir mais longe. Olhar para aquele plano em que um dos rapazes mija de costas para a câmara e outro come um pêssego — confluência de sons, retorno à natureza, tudo sem hierarquias. Assim, ao mesmo tempo que vemos uma espécie de Call Me by Your Name (Chama-me Pelo Teu Nome, 2017) do qual expulsaram a intriga da descoberta juvenil, reafirma-se um estatuto geracional de “make love no war” telúrico, em que o love seja mais vasto e comporte animais, frutos, água, terra, árvores, seres humanos, homens, mulheres, tudo numa reordenação ontológica. De forma serena mais do que sensual, os corpos expandem-se, repensando as suas formas. Esse pode ser o efeito de um Verão, de uma temperatura quente, que faz alastrar (-se).
Do calor do Verão para o frio gelado do interior rural. Depois de em 2014, David Doutel e Vasco Sá terem levado do festival o prémio para melhor realizador português por Fuligem (2014), eis agora esta pequena obra-prima sobre a dedicação e o isolamento. Tal como o primo de Tadeu, catatónico junto à janela, que outro estado senão siderado, fica o espectador depois que Agouro começa? Tal é a minúcia visual e sonora deste breve conto acerca de um homem que resolve salvar o seu “desgraçado” primo, em troca do seu touro, fonte de sustento. Olha-se para a ecrã como pela janela daquela casa, perfeitamente imóvel e atento ao piar dos corvos, ao vento a dar na folhagem, ao som do leite a ser deitado numa tina de zinco, ao sino solitário ao longe, ou aos omnipresentes estouros do fogo de artifício. A imagem surge pintada com um manto de nevoeiro e nem o crepitar do fogo no interior da casa parece aquecer o que quer que seja. A história do cinema português está cheia de exemplos da exploração da atmosfera de mistério e fascínio do interior nacional. Quase ao calhas lembra-me d’ Os Lobos (1923) de Rino Lupo, do cinema de António Reis e Margarida Cordeiro, do Mal Nascida (2007) de João Canijo, do Fim do Mundo (1993) de João Mário Grilo. No filme de Doutel e Sá há a acrescentar um sentimento poderoso: ao mesmo tempo que o ciclo das estações se irá renovar — como esquecer o corvo a cutucar o copo na semente já germinada e os insectos que nadam no orvalho da manhã? — há esses quase quinze minutos de escuridão e gelo intensos que nos dão um palco escondido e único. Um palco escondido no qual as acções nobres não possuem plateia e por isso têm maior valor. Como esquecer ainda o touro caído, o som das patas resvalando no gelo, um espectador trazido pelos corpos que depois de cair à escuridão, nem sabe bem se viveu sonho ou pesadelo.
Cinco anos depois de Lacrau (2013), a longa metragem que venceu o IndieLisboa, João Vladimiro voltou à aldeia de Covas de Monte em São Pedro do Sul, desta vez para uma ficção em torno do mito de Anteu. Também eu regresso ao local do crime e releio o que por aqui se escreveu sobre o filme. Páro na frase em que se diz que “Vladimiro parece estar mais interessado nas pedras e nas plantas e nos animais do que nas gentes.” Lembro também uma frase sua, aquando da conversa que moderei consigo e com os realizadores Ana Moreira e Bruno Ferreira durante o festival. Perguntei-lhe por influências, pois que me parece que em Anteu está Tarkovski e Béla Tarr, entre outros, e ele disse-me que mais do que influências procurou ter presente na rodagem dois extremos, dois eixos: Bresson de um lado e Cassavetes do outro. Isto é, pensei, uma integridade para com as coisas, as geometrias, os espaços, mas também para com essas “gentes”. Simplificações à parte parece uma explicação demasiado conveniente. O filme de João Vladimiro, talvez o mais ambicioso a concurso este ano em Vila do Conde, não é propriamente bressoniano, nem cassavetiano. Talvez um tanto tavariano — o escritor Gonçalo M. Tavares é voz presente e ausente no filme — precisamente na forma como sujeita a subjectividade das suas personagens a uma cerebralidade da poesia, uma “poesia técnica” que procura refazer um ponto de articulação entre o homem e o avanço tecnológico. Um avanço que pode apontar para trás, um cavalo à chuva é um carro parado, um filme um traumatropo que roda entre o início e o fim, mas também entre o berço e a cova. Falando em termos mais prosaicos, Anteu dá-nos a ver uma luta mortal entre a literatura e o cinema, entre o peso da terra e a leveza do ar, entre a fluidez narrativa do último homem de uma aldeia que planeia construir uma máquina para se auto-enterrar [no subtema do isolamento, presente nos filmes nacionais a competição, é este aquele que leva a ideia mais ao extremo] e cada imagem telúrica que faz descobrir a luz, o poder da ceifeira ou a simbologia do lacrau. No final, ficamos algures entre uma afirmação de futuro — aldeias desertas, o expoente máximo do individualismo, pela solidão, no momento de descer à terra — e uma visão de passado — uma máquina ao estilo de Leonardo Da Vinci numa planície.
Imaginem que o camião que transporta as cores berrantes do próximo filme de Nicolas Winding Refn choca de frente com os characters studies, maduros e urbanos de João Salaviza. Já imaginaram? Não precisam, na realidade, basta irem ver este Sheila (2018). Uma adolescente grávida (outro nicho temático dos filmes nacionais a concurso este ano) tem um desgosto amoroso. Narrativa mínima, pois que o filme de Gonçalo Loureiro pretende antes filmar a diferença entre o real e o filtro onírico de uma geração. O filme começa precisamente com a nossa heroína, Priscilla, vendo-se ao espelho, ou antes, a um ecrã de um computador. As primeiras imagens são de uma webcam que a capta, em poses sexy, dançando com uma coroa de rainha, ajeitando as mamas, pintando-se, fazendo poses provocantes. Depois teremos acesso ao lado de lá do espelho-ecrã, a referida realidade, e depois as duas em conjunto, a cópia e o simulacro, ela e o seu reflexo. Essa dualidade nunca largará o filme, pois que temos sempre o ponto e o contraponto: o solário e o kekab ambos a queimar; as grades da escola e o voo livre durante o passeio de mota; o motel manhoso e o onirismo lynchiano; os momentos com o seu namorado e as selfies com filtros e boniquinhos. Talvez Sheila, mais do que querer abordar o tema social da gravidez precoce, ou mesmo mais do que retratar uma geração do sexy-chunga, com as suas unhas brilhantes e brincos de love,o que quer é dar a ver esse ínfimo espaço da dessincronia entre um sonho de perfeição e o choque do real. Depois do seu “filme de escola”, Marasmo, ter passado pelo festival em 2015, Gonçalo Loureiro prenuncia um olhar bastante esclarecido, atento ao detalhe e sobretudo consciente dessa distância e promiscuidade entre a ideia de um filme e o prazer sem nome, agrilhoado, absurdo, do espectador numa sala de cinema. Esperamos com expectativa pelo próximo, e sobretudo pela forma como poderá gerir formatos maiores.