Continuam, nesta segunda parte, as impressões sobre os dez filmes nacionais que mais gostei este ano no Curtas Vila do Conde. Para lerem sobre os primeiros cinco cliquem aqui.

Já aqui fizemos o elogio da delicadeza e precisão sonoras de um filme como Agouro (2018) de David Doutel e Vasco Sá. A mesma coisa acontece com este Placenta (2018) de Paulo Lima, no qual a natureza é um fabuloso catálogo de ruídos evocadores: o piar longínquo do mocho, o coaxar da rã, os diversos piares dos pássaros da manhã, uma avioneta ao longe. O assobio do vento ou o ranger de uma porta. Um mundo natural que, como em Anteu (2018), isola os seus protagonistas. Mas enquanto Vladimiro trabalha sobre a literatura e a política do isolamento, Lima procura entrar no mundo do maravilhoso e do onírico. Lembram-se das sequências em que as irmãs de El espíritu de la colmena (O Espírito da Colmeia, 1973) de Erice vão ao bosque? Aos poucos, neste passeio mágico vamos encontrando, quase sem nos apercebermos, fiapos de narrativa, quiçá como a nossa-senhora-fada-adolescente vai encontrando indícios da presença de outras pessoas. Falei do som, mas importa falar do ritmo sereno de Placenta, um portal que dá espaço e tempo a um exímio controlo e precisão do gesto. Tudo somado, talvez não valha a pena acertar os sons e os gestos de Placenta pelo diapasão do simbolismo, mas antes acertar-nos com a sua cadência, como quem descobre um tesouro numa toca de uma árvore. Há que dizer que, em certo sentido, Placenta é o grande filme deste festival, a sua jóia escondida, aquela cujo brilho é mais precioso porque difícil de vislumbrar. E quem arrisca tocar o absurdo para poder filmar o sublime, merece o paraíso.

Dominado que está o impulso de salientar o raccord de roxo entre este filme de João Gonzalez e o de Gonçalo Loureiro [no caso de Sheila (2018), o roxo flirta com o rosa; mas quem nunca flirtou?] diga-se que ele também tem em comum com vários outros filmes nacionais nesta edição do curtas, o tema do isolamento. Mas, ao contrário de Anteu, de Placenta, ou mesmo de À Tona (2018) e até, de certa forma, Declive (2018), o problema não é haver pessoas de menos, mas sim gente a mais. Um cenário urbano, ao contrário dos filmes anteriores, uma agorafobia que domina o nosso pianista de olhos em formato de sobrancelha cerrada. Tendo passado por vários festivais nacionais e internacionais, e tendo inclusive ganho prémios no BFI Future Film Festival e na Monstra, o que me conquista nesta breve viagem à farmácia por parte de um jovem músico, para quem a sua casa é fortaleza, é precisamente o talento de nos mostrar um espaço transfigurado. Pequenos detalhes em The Voyager (2018) são fulcrais para percebermos os edifícios de uma cidade como torres oblíquas, a distância entre os objectos que se agiganta, tudo é mais alto, mais longe, mais pontiagudo do que parece. O já referido olhar é um traço negro no qual nos são vedados os detalhes de uma subjectividade além do transtorno e do pânico, o 71A, a sua caixa do correio, é a única vazia, o seu andar é altíssimo, como uma torre, dizia, lá em baixo os carros passam de forma uniforme. Detalhes de uma construção urbana que transformam esta breve viagem de pouco mais de 4 minutos, numa viagem mais intensa, a todo um mundo no qual queremos permanecer mais tempo. E lentamente começamos a ansiar pelo sol…

Nesta curta metragem de Marco Amaral sobre a separação e o afastamento, apetece separar e afastar cada elemento como num jogo de paciência. Enumeremos. Três actores — Ana Moreira, Francisco Soares e Custódia Gallego — que serão supostamente, eventualmente, mãe, filho e avó, e que nunca aparecem juntos no mesmo plano [O único plano de conjunto é de dois pratos]. Depois, uma grande fogueira que incendeia todo o filme, sobretudo o olhar de Ana Moreira, um carro que a traz e uma casa de pedra. Casa que vemos primeiro desvelada, janelas e portas abertas de par em par, para deixar entrar quem virá e, mais tarde, uma dessas janelas, como disse, incendiada pela esplêndida luz (responsabilidade da fotografia de Carlos Lopes) e de cortina ao vento. Finalmente, três fantasmas ausentes/presentes. O Golias, supostamente, eventualmente, um cão desaparecido, depois uma tempestade que se anuncia com a vinda da mãe, e, por último, o marcante fantasma deste 3 Anos Depois (2018): todo o tempo que passou desde que mãe e filho se olharam desde a última vez. Tempo em que se habituaram a estar cada um em seu enquadramento. Tempo em que o menino deixou de gostar de futebol. Feitas as contas, pequenos indícios, pequenos momentos, e eis uma bela porta de entrada num envolvente e misterioso universo familiar. Que Marco Amaral seja feliz nesta sua passagem pela competição este ano no Festival de Locarno.

Olhando assim de chofre para o filme de Miguel Fonseca podíamos ser tentados a sublinhar o seu lado doutrinador, na medida em que a sua sinopse se dá a isso precisamente. Uma jovem com pouco afecto familiar, que passa o tempo em frente de ecrãs – computador, telemóvel, videojogos – que se vê vítima de cyberbullying e que serve de pretexto para uma crítica sobre a alienação audiovisual, promovida sobretudo pela proliferação dos ditos cujos. Duas cenas ilustram mesmo uma certa dimensão didáctica do argumento assinado pelo próprio Fonseca. Numa delas, quatro jovens, um deles a protagonista Rute, “estudando” na biblioteca: os livros em fundo nas estantes, outros abertos sobre a secretária, todos olhando para o telemóvel. Noutro momento ainda a mesma Rute e a sua amiga vão ao cinema num shopping e Fonseca nunca filma o ecrã, mas sim os rostos iluminados pela tela. A amiga vê uma vez mais o telemóvel — a crítica prolonga-se — mas, e aqui começa a desvelar-se Sara F. (2018) como algo mais do que um simples filme-tese, temos um grande plano do rosto de Rute e ouvimos muito presente o som do mastigar de uma pipoca, juntamente com os sons e brilhos do filme nos óculos da rapariga. Surge então um dos SMS em letras garrafais, enchendo todo o ecrã e toda a mente da nossa heroína. Sara F. é precisamente isto: uma obra acerca da invasão de umas imagens pelas outras, de um lado a anorexia emocional da vida da adolescente e, do outro lado, a animação e entretém constantes, dadas através de segmentos de imagens retiradas da internet. Polvos em jarros, mãos biónicas, quedas aparatosas, bombas caseiras, explosões, vídeos de gatinhos, bebés não menos fofos e perversos, redemoinhos. Esta é a cobertura de pasta de açúcar, corante audiovisual e bizarria amestrada que vem transportar este quotidiano para um outro sítio. Se isto fosse um filme de Michael Haneke certamente haveria neste momento menos patinhos e visitantes no jardim da Gulbekian, décor da última cena do filme. Mas, resumindo, aonde quero chegar é que, onde é mais eficaz a crítica audiovisual de Sara F. é nesse dar a sensação de um grau de desfasamento entre o quotidiano e o fora de campo – mental, omnipresente – construído pelo fluxo ininterrupto destas imagens, aqui trazidas para a visibilidade e para o choque intencional.

Depois de em 2015 terem vencido o prémio do público do festival, a dupla Mónica Santos e Alice Eça Guimarães volta a brindar-nos com mais um pedaço do seu romantismo elegante e imaginativo. Desta vez um mergulho no universo noir e na estética retro dessas décadas, um trabalho acerca do negro e da sombra. Logo a seguir ao terror, o saco de pancada mais consensual dos últimos anos tem sido o realismo mágico, sobretudo por via de uma certa confusão entre o feel good das narrativas e a superficialidade que logo lhes é assacada. Basta recordar os fabulosos abismos de negro e porcaria no qual quase toda a gente hoje gosta de banhar o Le fabuleux destin d’Amélie Poulain (O Fabuloso Destino de Amélie, 2011) de Jean-Pierre Jeunet. Seria assunto certamente para grandes conversas saber até que ponto faria sentido relacionar este Entre Sombras (2018) ao dito realismo mágico. Talvez, contudo, uma discussão um tanto estéril pois sente-se no filme sobretudo um esforço de investimento na revisitação, e menos uma história; mais um universo e menos uma intriga. A haver algo a apontar é precisamente a existência de um trajecto longo demais para a funcionária do banco dos corações, Natália, percorrer (isto é, emocionalmente percorrer) em pouco mais de dez minutos. A voz off calorosa de Margarida Vila Nova tem um pouco a função de guia para não nos dispersarmos pela entrada no universo dos detectives privados, heist movies, mulheres fatais, twists, cabarets misteriosos, sequências de amor, perseguições e tórrido funcionalismo público (uma cena a quatro mãos, que é deliciosa). Mas, no conjunto de ideias vindas da imaginação das realizadoras brotam pormenores maravilhosos: o peito como gaveta e o coração com chave, ideia central do filme, o homem cabeça de lábio, a entrada do bar em forma de fechadura, o colchão da cama como um elemento líquido onde os corpos literalmente se afundam, as pétalas da lapela do galã, as frases marotas como o “ele mostrou-me a sua chave”. Enfim, um conjunto de elementos que fazem de Entre Sombras um dos mais agradáveis filmes nacionais do festival deste ano.