Invoco, antes de mais, They Shoot Horses, Don’t They? (Os Cavalos Também se Abatem, 1969) de Sydney Pollack, para relembrar a posição ética de um espectador. Não querendo aferir ou inculcar qualquer tipo de moralidade desviante a um certo tipo de espectador, ser-me-à difícil no entanto, no decorrer deste texto, não questionar o lugar que este ocupa frente a uma obra e a um cineasta limite. Talvez nem todos terão presentes o magnífico filme de Pollack e o porquê da sua invocação, mas creio que nenhum outro filme possa melhor ilustrar a crueldade inerente do espectador e a indústria que este voluntariamente produz, quando aceita, mais do ver, compactuar com espectáculo do horror.
Algures no filme de Pollack um dos personagens principais questiona o porquê e qual o prazer daqueles espectadores em assistir ao definhar dos concorrentes, sendo que outro personagem lhe responde, “a vida deles é miserável, mas a nossa situação ainda mais miserável é, portanto isto dá-lhes algum conforto” (a citação é bastante livre, por isso lamento se incorro em algum tipo de erro grosseiro, mas creio que o cerne da questão é mais ou menos este). O que Pollack cria nesta situação são duas possibilidades, sendo uma a resposta ética do ver e a outra a sua rejeição absoluta, e tal como Deleuze afirmou, “a ética é estar à altura da situação”. Acredito que Pollack esteve à altura, privando o espectador do seu filme da crueldade que o espectador daqueles concursos procurava. Já Haneke, se a ele fosse proposto fazer um remake deste filme, dificilmente poderíamos conceber outro lugar, se não o coincidente entre o seu olhar e o olhar sádico do espectador do concurso.
É claro que esta suposição é um mero exercício especulativo, porém se tal suposição é verosímil quanto à eventual tomada de posição de Haneke, é porque o «jogo» já é de tal forma antigo e repetido, que escrever sobre este filme implica transcender o objecto e reflectir aquilo que caracteriza o cinema de Haneke, o lugar que este ocupa e sobretudo a necessidade de o denunciar. Não é minha intenção adoptar uma perspectiva puritana ou instigar algum auto-de-fé contra estes filmes e cineastas, ou seja, de os querer ver eliminados ou censurados de algum modo. Contudo, a sua visibilidade e programa estético, obriga-me a que haja uma contra-resposta. Se Haneke é duplo vencedor em Cannes, se a existência deste, assim como a de Lars Von Trier, Yorgos Lanthimos, Bruno Dumont, Gaspar Noé, Darren Aronofsky ou do grande mentor e predecessor, Kubrick, ocupam um suposto lugar “importante” na história do cinema, cabe então reflectir sobre esse lugar e o porquê da abjecção ter tomado uma parte considerável da produção actual.
Happy End não apresenta nada de memorável se não a sua própria abjecção, a evidência de tudo aquilo que nos é atirado à cara de forma pouco subtil.
Seria demasiado fácil da nossa parte apontar como causa principal que o motivo que leva este cinema e os seus representantes a adoptarem tal posição se deve a uma perspectiva cada vez mais acentuada na nossa sociedade da catástrofe. Isto não só legitimaria em parte este cinema, como tornaria esta época especial, ignorando no entanto que cada época, tal como Benjamin o pensou, se julga frente ao seu abismo. Não há qualquer indício de uma tomada de consciência colectiva mundial ou uma agudeza única da experiência, pelo contrário, estes cineastas tomam a parte [o eixo europeu-americano] e globalizam a sua experiência. Até porque, mesmo de forma deturpada, estes cineastas estão absolutamente centrados na condição humana e nos seus limites. Mesmo a deriva apocalíptica com base em acontecimentos exteriores de Lars Von Trier, em Melancholia (Melancolia, 2011), redunda numa análise das relações humanas e não envereda pelo caminho americano do apocalipse das condições da Terra e da sua habitabilidade (tão fulgurante foi a produção a partir de 2000 deste género em Hollywood). E tais limites são explorados através do tal «jogo» perverso a que os cineastas forçam os seus actores a compactuarem e a encenarem.
Não há limites a esta acção do cineasta-todo-poderoso que age como um deus vingativo capaz de exercitar e condensar todo o seu desprezo naquela figura. O actor fica então reduzido à figura de marioneta, sendo no entanto o responsável pela aceitação passiva da sua condição. Se é forçoso invocar o papel preponderante que William Dafoe ou Charlotte Gainsbourg tiveram no exercício levado a cabo por Trier, não poderei olvidar no entanto, do mesmo pacto que Huppert tem com Haneke. Independentemente da minha profunda admiração por Huppert, a aceitação de um papel implica uma escolha ética. La Pianiste (A Professora de Piano, 2001), é o exemplo máximo dessa aceitação passiva ao serviço de uma estética e de uma ética, na qual não revejo no entanto Huppert.
Retornando a Haneke e ao seu último filme, este não apresenta nenhuma novidade. Pelo contrário, o próprio aparente rigor formal tão salutado do cineasta de Das Weisse Band (O Laço Branco, 2009), aqui apresenta um carácter fragmentário, “experimental” e de absoluto desnexo, fazendo transparecer ao longo do filme um crescente desinteresse formal pelo seu próprio projecto. Tal como em Von Trier e o seu Nymphomaniac (Ninfomaníaca, 2015), a tónica arrogante já não está no empreendimento visual, pois este foi secundarizado na medida em que a obra se tornou alegoria de si mesma. Já não há a necessidade de recorrer à patine preto e branco, como a abjecta à lá Tarkovsky de Trier no preâmbulo Antichrist (Anticristo, 2009). Os elementos fílmicos foram depurados e inseridos numa outra categoria, a das imagens sensacionais. Tal como o sensacionalismo mediático, este não exige rigor formal, tempo ou leitura, as imagens são antes planas, querem-se evidentes, imediatas e consumíveis. Happy End (2017) não apresenta nada de memorável se não a sua própria abjecção, a evidência de tudo aquilo que nos é atirado à cara de forma pouco subtil. A ofensa burguesa, transforma-se em ofensiva burguesa, colocando os refugiados à disposição e fazendo equivaler a sua deriva física à deriva psicológica do patriarca da família. Assim o burguês-naufrago acaba a ser filmado pela câmara do telemóvel, porque este é suficiente para traduzir a sensação.
A sensação, ou melhor, o sensacionalismo das imagens de Haneke, são em súmula os mesmos «finais felizes» que os média nos dão diariamente. Não importa já o seu desfecho, tal como importou à crueldade de Funny Games (Jogos Perigosos, 1997 e 2007) nunca redimida. A perversão de Haneke já não é a de um cineasta-todo-poderoso, mas antes o exercício de um deus tanatológico. Se tal como em Dogville (2003), Dancer in the Dark (2003) ou Breaking the Waves (Ondas de Paixão, 1996) de Trier, o prazer sádico é exaltado através do massacre continuado, tal como em La Pianiste, Funny Games ou Das Weisse Band, nestas últimas obras de ambos os cineastas, o niilismo dá origem a um desprezo total que visa com a mesma dose de escárnio visual, comungar desse universo onde a banalidade da imagem quer tornar indiferente a nossa experiência cinematográfica. Se nos devemos preocupar com a suposta morte do cinema, ela começa aqui e com estes cineastas. Tal como Trier, Haneke quer transformar a nossa recepção, numa recepção passiva. A sua brutalidade é da mesma origem do mediático, sem força contra o nosso anestesiamento, apenas prontas a consumir à velocidade do digital, num continuum onde as 24 imagens perderam o seu significado e espessura e por consequência a experiência do cinema seria pior do que a rejeição, antes a indiferença.