Mine are the Dead who died possessed of me.
Henry James, The Altar of the Dead
Gérard, uma figura no espelho
La Chambre verte (O Quarto Verde, 1978), de François Truffaut, começa com um cenário que materializa o espanto dos vivos face à aparente evidência da morte. O protagonista Julien Davenne entra na casa do amigo Gérard Mazet, onde decorre o velório da esposa deste último. No canto da divisão onde jaz o corpo, chorando, e encarando o cadáver deposto sobre o caixão no centro da sala, Mazet diz para si: “não é verdade”, negando a si mesmo, e ao espectador (o único que ouve estas palavras), a factualidade da situação que experiencia. E, no entanto, não há dúvida, para o espectador naturalmente insensível ao sofrimento da personagem, de que “é verdade”: aquela mulher está efectivamente morta.
Dois homens começam a preparar o caixão para ser transportado até à sua morada final, mas Mazet impede-os de colocar a tampa, agarrando-se à falecida. O padre intervém, garantindo-lhe que a mulher não morreu, uma vez que foi batizada. Segundo este, agora ela dorme, incorrupta, e assim prosseguirá até ao dia em que o marido se juntar a ela, no “dia da ressurreição”. Como resposta, o viúvo parte uma jarra e tenta suicidar-se com um vidro estilhaçado, mas é impedido de fazê-lo. Se a sua ideia fora apressar o encontro, a tentativa falha: a reunião terá de ser adiada. Davenne interpõe-se então, insurgindo-se contra o padre: “A culpa é sua. Aqueles que choram os seus mortos não querem esperar vinte ou mil anos para vê-los. Eles querem vê-los agora. Aquilo que esperamos de vocês é que digam ‘Levanta-te e anda!’, e os mortos levantam-se e andam. Agora, se você é incapaz de fazer reviver Geneviève Mazet, hoje, neste momento, não tem nada que fazer aqui”. E expulsa-o. No seguimento do conflito, os presentes abandonam a sala, deixando Davenne e Mazet sozinhos junto do caixão agora fechado.
Davenne relata então a sua história pessoal, através da qual se revela ao espectador que Gérard deve ser entendido como uma espécie de reflexo do amigo: “Sei o que sentes. Querias estar no lugar dela, ou junto dela”. Ficamos a saber que Davenne casou onze anos antes, e que a esposa morreu pouco depois do casamento. “Tal como tu, pensei que não conseguiria continuar a viver. Tal como tu, quis morrer”. Mazet pergunta ao amigo como conseguiu encontrar a coragem necessária para prosseguir a sua vida sem a presença da mulher que amava e que o abandonou, e ele responde: “Decidi que, não obstante ela estivesse morta para os outros, para mim continuaria viva”. “Depende de ti, e unicamente de ti, que Geneviève continue a viver” [a propósito do nome Geneviève (je ne vis…), remeto para a esposa morta de Les Parapluies de Cherbourg (Os Chapéus-de-chuva de Cherburgo, 1963, de Jacques Demy)]. E chegamos finalmente ao núcleo desta primeira sequência:
“Para os indiferentes, os olhos de Geneviève estão fechados, mas para ti eles estarão sempre abertos. Não penses que a perdeste; pensa que não mais poderás perdê-la. Consagra-lhe todos os teus pensamentos, as tuas acções, o teu amor. Os mortos pertencem-nos a partir do momento em que nós aceitamos pertencer-lhes. Acredita em mim: os mortos podem continuar a viver.”
Enquanto se ouve as últimas palavras, “os mortos podem continuar a viver”, um fade to black obscurece o rosto de François Truffaut (que interpreta o papel de Julien Davenne) e a sequência termina.
A sequência inicial de La Chambre verte anuncia simultaneamente os substratos psicológico (ou dramático, se preferirmos) e teórico, quase filosófico, sobre os quais o filme se constrói. A situação narrativa da morte de Geneviève e a personagem de Gérard Mazet funcionam como elementos que, devido à sua qualidade especular, permitem desde logo adquirir um conhecimento privilegiado da personagem principal, Julien Davenne. Este conhecimento dá-se em pelo menos dois níveis: por um lado, dir-se-ia que, no que toca à estrutura narrativa, a identificação total entre a circunstância presente de Gérard e uma circunstância do passado de Julien nos permite o acesso ao momento fundador do próprio filme: a morte da esposa de Julien Davenne e o início do seu luto. Isto é, se o filme de Julien começa in medias res [Julie, a esposa, já morreu há onze anos – sendo que, veremos, a matriz do filme é essa morte ocorrida no passado – encontramos um esquema semelhante noutro filme de Truffaut, La Mariée était en noir (A Noiva Estava de Luto), de 1968)], ele começa também no princípio de tudo, se aceitarmos que, ao nível simbólico, a morte de Geneviève e a dor de Gérard repetem a morte de Julie e a dor de Julien, tornando a situação da perda e, mais especificamente, da viuvez, algo da ordem dos arquétipos.
Por outro lado, ao nível do discurso, devemos perceber que não há propriamente um diálogo entre os dois homens. Tudo o que Gérard diz visa criar as condições para que Julien Davenne possa prosseguir na exposição das suas ideias. E este diálogo, que na verdade é uma espécie de solilóquio, consiste essencialmente – aparte os brevíssimos momentos de narração, em que o homem nos conta o seu passado – na descrição de uma ideia poderosa e desafiante, com contornos teóricos ou conceptuais mas também com possíveis efeitos na vida prática (o filme será justamente sobre a aplicação de uma ideia à vida prática): “os mortos podem continuar a viver; para tal, devemos pertencer-lhes”.
No fim desta sequência, aquilo que ficamos a saber, em suma, é que, onze anos após a sua morte, Julie está viva em Julien (note-se que ele a inclui no próprio nome: Julien). Deste modo, reconfigura-se o nosso olhar sobre o que Gérard Mazet dissera no canto da sala e que apenas o espectador ouvira: “não é verdade”. Contrariamente ao que se pudesse à partida pensar (“sim, é verdade, ela morreu, e o seu corpo inerte no meio da sala é prova disso”), Julien explica-nos que ela pode, afinal, não ter inteiramente morrido. Em suma, somos transportados para um domínio em que a existência dos homens não se rege necessariamente pelas regras da evidência: estar morto não tem nada de evidente. Porém, se a morte dos mortos não é evidente, a vida dos vivos também não o é. Este, em particular, é o aspecto que La Chambre verte desenvolve e que me interessará aqui contemplar.
Julie, uma morta viva
Pouco depois da sequência inicial, Julien deambula por um armazém em que estão expostos objectos pertencentes à família Vallance, os quais serão vendidos proximamente em leilão. Abordado por um funcionário, Julien diz procurar um anel, mas não um anel qualquer, e sim uma jóia particular: “de prata, em forma de oito [de infinito: ∞], e com duas ametistas no interior de cada buraco do oito”. O anel acaba por ser adquirido por ele.
Após a compra, Julien entra num quarto que, num primeiro momento, está de tal forma escuro que se torna impossível ao espectador distinguir quaisquer formas. Julien roda a chave na fechadura, encerrando-se na divisão. Lentamente, à medida que o homem percorre o quarto e a câmara o segue em travelling, passa a tornar-se possível distinguir algumas formas: luz que entra pelas janelas ilumina uma mesa onde estão um castiçal com velas, um retrato e uma mão esculpida. Parando sobre a mesa, o protagonista diz: “encontrei o teu anel, Julie”, e um grande plano mostra-o a inserir a jóia na mão artificial. Puxando uma cadeira para o centro do quarto, ele senta-se de frente para a mesa e para a parede por detrás desta. Diz: “não te esqueci, Julie. Não te esqueci, não obstante os anos passados. Pelo contrário: penso em ti cada vez mais. Vamos passar esta noite juntos”.
Do plano geral em que se vê a personagem de costas, passa-se para um novo plano, aproximado e em travelling, sobre os elementos dispostos em cima da mesa: o retrato, a mão com o anel, o castiçal. Um corte revela um plano aproximado do rosto de Davenne a observar, e daí passa-se para um novo plano, desta feita sobre a parede na direcção da qual ele olha. A câmara mostra uma fotografia pendurada, em que se vê o casal e, após o início de um travelling sobre a parede, uma fotografia de Julie sozinha e um retrato pintado desta. Um corte traz-nos para o rosto de Davenne, e um novo plano devolve-nos a parede, onde se vêem vários novos retratos; corte para Davenne; e finalmente um corte para um retrato de Julie em perfil. A câmara aproxima-se lentamente deste último retrato e, quando chega muito perto, a imagem começa a desfocar e há um raccord, por fundido encadeado, para a mesma fotografia de Julie, porém disposta noutro espaço. A câmara afasta-se, a imagem é progressivamente focada, e percebemos estar perante o túmulo da esposa, no cemitério. À medida que a câmara se afasta, aumentando o campo, vê-se primeiro a totalidade do retrato oval de Julie, lê-se depois “Julie Davenne”, em seguida, também, “née Vallance”, finalmente “1897-1919”, e a câmara inicia um travelling lateral que termina numa cruz de pedra sobre a qual há um fade to black.
Com economia e uma grande eficácia, esta sequência permite-nos compreender o estatuto de Julie – a morta viva (lembro: “os mortos podem continuar a viver”) – neste filme, oferecendo, a este respeito, diversos aspectos que merecem comentário.
Em primeiro lugar, ficamos a saber que o anel adquirido por Julien num leilão da família Vallance pertencera a Julie. Em segundo lugar, e com mais importância, vemo-lo a encaixar o anel de Julie numa mão. Somos convidados a entender esta mão como um ex-voto, portanto, como um objecto para sempre indicialmente ligado a uma mão original, da qual ele passa a ser um substituto privilegiado. Na ausência da mão de Julie, o molde da sua mão passa a representar essa mão ausente. No entanto, devido à sua natureza indicial, o objecto representativo é efectivamente dotado de uma porção de realidade, que faz com que ele se torne um substituto fisicamente mais próximo do seu referente.
Porém, não é exactamente isso – ou isso por si – que nos permite dizer que Julie está viva. O que nos permite dizer que Julie está viva é que Julien fala com ela: “encontrei o teu anel, Julie”. Note-se que o nome é proferido: o vocativo reforça a identidade do interlocutor. Julie está viva porque Julien se relaciona com ela como se ela estivesse viva. Ela está viva nele (“penso em ti cada vez mais” – e não esqueçamos, ainda, a importância simbólica do jogo dos nomes) e também nos objectos, à partida meramente representativos, que ele dispõe naquele quarto de paredes verdes: em particular, um molde da mão e retratos. Tal como os restos mortais de Julie estão no túmulo, os restos vivos estão (simbolicamente para nós, mas efectivamente para Julien, que se prepara para passar uma noite, não tanto com um fantasma, mas sim com a sua mulher) no quarto verde – algo que o raccord final entre o retrato no quarto e o mesmo retrato na pedra tumular torna evidente.
Gostaria de fazer notar, por fim, que toda esta sequência se constrói como se Julien se preparasse simultaneamente para três coisas que, não obstante muito diferentes entre si, parecem concorrer de alguma forma: passar uma noite com a sua mulher; participar de uma séance (o escuro e as velas); e assistir a uma sessão de cinema (o quarto escuro penetrado por feixes de luz; o plano geral em que o vemos de costas, sentado no escuro, a olhar para a parede como se visse um filme). Se Julie pode ser a mulher, o fantasma e o filme da vida de Julien, é interessante atentar na forma como Truffaut monta a cena, alternando entre planos aproximados da mulher/dos retratos/do filme, e planos do homem/corpo/espectador. Trata-se, em suma, e segundo os pressupostos da montagem clássica, de um campo/contra-campo. Ora, sendo que o campo/contra-campo é, por definição, reservado essencialmente a momentos de diálogo entre personagens, e acrescendo a isto o facto de que também Julien conversa com a sua mulher nesta cena, então podemos estar perante uma situação em que, através da montagem, o filme nos prova que este diálogo entre vivos e mortos não é inteiramente, afinal, o monólogo de vivos que o espectador céptico pode querer ver. Tal como o viúvo olha para a esposa, esta olha para ele; tal como Julien olha para os retratos, estes devolvem o olhar; tal como o homem vê o filme, o filme vê o homem. Assim, como Julien sabiamente anunciara no início, ao habitar os vivos, os mortos adquirem efectivamente vida. Através da forma, o filme assimila e reforça subtilmente esta ideia.
Aquilo em que importa verdadeiramente atentar aqui, no entanto, é que, tal como os mortos ganham vida através dos vivos, os vivos ganham morte através dos mortos. Tal como Julien chama Julie ao mundo dos vivos, Julie chama Julien ao mundo dos mortos. Regressarei adiante a este aspecto.
Cecilia, uma história alternativa
Algum tempo depois da morte da esposa, Mazet visita Julien Davenne nos escritórios do Globe, o jornal em que este trabalha. Davenne chega no momento em que Mazet já está a abandonar os escritórios, ouvindo então, sem se dar a ver em nenhum momento, a conversa entre o amigo e o seu chefe. Ele toma então conhecimento de que Mazet veio visitá-lo para lhe apresentar a nova esposa.
Na cena seguinte, Davenne narra este episódio a Cecilia, uma profissional ligada ao universo dos leilões que conhecera entretanto e da qual se tinha aproximado. Indignado, revela não aceitar que Mazet tenha encontrado uma mulher que substituísse a primeira. Cecilia pergunta-lhe porque nega ele ao amigo o direito de refazer a sua vida e lembra-lhe que, em princípio, não existe nenhuma interdição à existência de um segundo amor na vida de um homem. Na opinião de Davenne, Mazet não tinha o direito de substituir uma mulher que lhe consagrara a vida, como se estivesse meramente a trocar de empregada doméstica. Cecilia avisa-o de que a segunda Mme. Mazet não apaga necessariamente a memória da primeira, podendo inclusivamente o novo casamento constituir uma forma privilegiada de honrar o primeiro. Porém, o seu interlocutor não aceita a lógica da substituição, oferecendo o contra-exemplo de todos os companheiros com quem lutou na Primeira Guerra, e que ele nunca procurou substituir após as suas mortes, reivindicando para si o direito de manter viva a memória dos mortos que o mundo insiste em esquecer.
Se lembrarmos a hipótese avançada anteriormente, de que Mazet deve ser visto como uma espécie de duplo de Davenne, percebemos agora que o primeiro não é um duplo positivo do segundo – ou seja, eles não são exactamente iguais –, mas sim um duplo negativo. No início do filme, Mazet coincide absolutamente com o Davenne de há onze anos atrás (“a tua história é exactamente a minha” dissera-lhe este a certa altura); contudo, eles passam a descoincidir a partir do momento em que algo de radicalmente divergente acontece nas suas narrativas pessoais: ao passo que um escolheu nunca mais se unir a uma mulher após a morte da esposa, o outro escolheu casar uma segunda vez. A função de Gérard Mazet, neste passo do filme, é oposta à que tivera no início: num primeiro momento, e por um efeito de anamorfose, ele pudera ser entendido pelo espectador como Davenne há onze anos atrás; agora, ele deve ser visto como um Davenne hipotético, aquele que este podia ter sido, mas que não foi. Um anti-Davenne, portanto.
Estamos em pleno universo conceptual de Henry James, que Truffaut adapta aqui. O filme segue a narrativa de The Altar of the Dead, mas este encontro com um eu hipotético, prometido mas não cumprido, remete ainda para outras narrativas do mesmo autor, tais como The Beast in the Jungle ou, de forma mais eloquente, ou pelo menos literal (neste encontro com um si mesmo hipotético), The Jolly Corner.
Mazet é um anti-Davenne porque, em suma, escolheu substituir os mortos pelos vivos, ao passo que o outro escolheu manter vivos os mortos, reservando os vivos para um segundo plano. É importante que Mazet ressurja neste ponto da intriga, não só porque nos permite lançar este olhar jamesiano sobre um Davenne alternativo que o filme não faz existir, mas também porque estamos no momento em que Cecilia adquire um certo peso na vida deste homem solitário, que já não mantém laços substanciais com quaisquer pessoas vivas.
É evidente, desde o primeiro momento em que Cecilia aparece, que esta tem um interesse particular por Davenne. Na cena em que eles se conhecem, ela vê-o muito antes de serem apresentados. Ele, por seu turno, não a vê porque está em busca de um anel que pertencera à sua mulher. No segundo encontro, ela conta-lhe que se conheceram no passado. Ele, subitamente, lembra-se: foi há onze anos, estavam em Roma e o pai dela (que também se chamava Julien) estava presente. Ela corrige-o: foi há catorze anos, estavam em Nápoles, e o pai estava ausente. Portanto: ela vê-o quando ele não a vê de volta; e ela lembra-se dele, e ele não se lembra dela (num passo interessante em que o filme mostra que este homem que vive de memórias, afinal, não tem uma memória particularmente forte).
No primeiro encontro, Cecilia conta que trabalha no negócio dos leilões porque despreza coisas novas, sem marcas, sem peso e sem história – coisas em segunda mão. Percebemos assim, desde logo, e porque já conhecemos a obsessão de Davenne com a esposa morta, que estão reunidas as condições para que Cecilia se apaixone por este homem envelhecido, marcado, agrilhoado à história. Contudo, contrariamente aos objectos que perdem os seus donos quando estes morrem, Davenne não perdeu o seu dono (Julie) quando este morreu, porque ele próprio – como vimos no início – rejeitou a sua morte. Contrariamente aos objectos que vão para leilão, ele não está livre, disponível: ele é possuído por uma morta.
Tal como a mulher loira de Fallen Angels (Anjos Caídos, 1995, de Wong Kar-Wai), Madeleine em Les Parapluies de Cherbourg, ou Judy em Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958), Cecilia é apresentada, desde logo, como uma “mulher desconhecida”, uma intrusa numa história de amor à qual é alheia. E, contudo, é Yvonne, a nova mulher de Mazet, que nos lembra (e a Cecilia) que ela poderia ter vivido a sua história de amor, caso Davenne tivesse, como Mazet, escolhido manter-se entre os vivos, tornando-se disponível para amar (“é possível amar uma segunda vez” é um alerta que ela lhe lança, mas que ele, na sua opacidade obsessiva, não tem a capacidade de compreender).
Cecilia e Julien, um encontro de ausentes
Cecilia não obtém um lugar na história de amor de Davenne, mas adquire um papel importante na história da sua vida, pois permitir-lhe-á morrer.
Numa fase ainda inicial da relação entre ambos, numa noite em que ele a leva a casa no seu automóvel, ela conta-lhe que a razão pela qual nunca se esqueceu dele prende-se com uma história que circulou há anos. Segundo essa história, Davenne viu a sua esposa no preciso momento em que esta morria, estando num ponto espacial muito distante daquele onde ela expirava pela última vez. Por seu lado, Cecilia viveu uma experiência semelhante: certo dia, numa visita de estudo ao Louvre, teve uma visão do seu pai, vindo a saber, mais tarde no próprio dia, que ele falecera pela hora em que ela o tinha avistado no museu. Ela demonstra-se, assim, cúmplice de Davenne devido à faculdade singular, partilhada por ambos, de ver os mortos.
Após a narrativa de Cecilia, ele diz: “Sim, tivemos a mesma experiência. É por isso que amamos os mortos. Não queremos esquecê-los. Não aceitamos que os traiam. Somos iguais”. Mas ela responde-lhe: “Não, não somos iguais. É verdade que amo e respeito os mortos, mas também amo os vivos. Alguém morre e um novo ser vem ao mundo. Novos amigos substituem aqueles que desapareceram. É o movimento natural da vida […] Não amamos os mortos da mesa maneira. Tu amas os mortos contra os vivos”.
Trata-se de um debate que inclui duas concepções radicalmente distintas da existência. Na verdade, no que toca a Davenne, mais do que ser alguém que propõe uma ideia do que pode ser a vida, ele personifica essa mesma ideia. Revolvendo em torno dele, o filme revolve necessariamente em torno desta noção da recusa da vida como uma massa fluida e em movimento perpétuo [“le tourbillon de la vie”, como cantava Catherine em Jules et Jim (Jules e Jim, 1962)], e a simultânea defesa da estase. O que não consiste necessariamente, deve referir-se, numa defesa da morte tout court, tratando-se, sim, de uma relação particular entre a morte e a vida, em que a segunda honre a primeira. Davenne não se suicida (e impede o suicídio de Mazet, no início) porque a morte, em si, não lhe interessa. Interessa-lhe, sim, uma vida dedicada à morte. Por esta razão, a sua própria morte só faz sentido se houver alguém que viva por ele, tal como ele viveu pelos seus mortos.
Em relação à experiência partilhada por ambos, que é tomada de outro conto de James, The Friends of the Friends, gostaria apenas de fazer notar um aspecto particular. Cecilia e Julien não se aproximam apenas porque experienciaram uma situação semelhante: eles aproximam-se porque a experiência dessa situação denota que eles partilham, ao nível da sua constituição enquanto seres, a faculdade muito singular de ver os mortos. E ver os mortos significa também ser visto por eles: Cecilia conta que, nove anos antes, naquela sala esconsa do Louvre, o pai se virou para ela, olhou-a nos olhos e abriu os braços na sua direcção. Ver os mortos implica estar entre eles, enredar-se num diálogo conduzido numa língua outra, extra-humana.
No fim da sua história, Cecilia acrescenta: “durante todos estes anos, quando pensava na morte do meu pai, pensava em si”. Num primeiro momento, consideramos que isto acontece porque Davenne viveu a situação semelhante de ver alguém no momento da morte. Contudo, somos convidados a complexificar esta associação. Afinal, já antes nos fora dito que o nome do pai era, tal como o de Davenne, Julien. Esta aproximação pode explicar-se pela não retribuição do amor de Cecilia (i.e., “Davenne nunca deixará de ser apenas uma espécie de pai para ela”), mas pode ter outra explicação, talvez mais interessante. Se Julien Davenne é uma espécie de duplo do pai de Cecilia, e se Cecilia ama Davenne (embora ainda não o saiba), ao mesmo tempo que possui aquela faculdade muito rara de ver e de comunicar com os mortos que ama, então Davenne pode ser o moribundo que Cecilia vê no momento distendido da sua morte. Porque La Chambre verte é, essencialmente, sobre a morte in progress de Davenne.
Julien, um vivo morto
No decorrer de La Chambre verte, a obsessão de Julien pela mulher morta transforma-se numa obsessão pelos seus mortos em geral. Ainda na fase inicial do filme, ficamos a conhecer o projector que Davenne tem em casa, no qual projecta diapositivos de ilustrações de animais. Porém, nesse momento, ele acabou de adquirir novos diapositivos, que rapidamente conhecemos, e nos quais vemos imagens da Primeira Guerra Mundial (a acção do filme situa-se pouco depois da guerra, e sabemos que Davenne foi mobilizado), com soldados mortos, uma cabeça decepada e uma igreja destruída.
Paralelamente, sabemos que o jornal em que ele trabalha, o Globe, é um jornal fora de moda, desajustado às populações mais jovens, e subscrito apenas por leitores muito velhos, que estão a morrer (continuam a chegar à redacção exemplares devolvidos com o carimbo de “décédé”). A certa altura, o chefe de Davenne celebra-o como alguém que – não possuindo talento especial para nada mais (e em particular para o ofício de viver) – é, contudo, um “especialista na morte”, sendo prova disso o facto de ele ter conseguido escrever trinta e um obituários sem repetir a mesma expressão uma única vez.
No âmbito da problemática da obsessão pela morte, o passo central é aquele em que – depois de o altar erigido à esposa no “quarto verde” da casa ser consumido por um pequeno incêndio, e Julien ser obrigado a passar a visitá-la na campa – o viúvo fica preso no cemitério após o fecho das portas. Em busca de uma saída, acaba por descobrir uma capela abandonada que lhe suscita a ideia de erigir nela um altar dedicado, não só à sua esposa, mas a todos os seus mortos. Na fase final do filme, este desejo concretiza-se efectivamente: Davenne constrói o seu altar na capela, recorrendo tanto às fotografias dos seus mortos, que dispõe pelas paredes do espaço, como a velas votivas que alumiam a câmara escura.
Porém, a faceta do filme que me interessa aqui enfatizar não é, em particular, a obsessão de Davenne pela morte, mas sim o facto de Truffaut trabalhar esta personagem, desde o início, como uma figura em desaparição, um morto-in-progress. Em diversos momentos, a substância humana de Julien Davenne é questionada através de processos que sublinham um efeito de fantasmagorização. Por exemplo: 1. os créditos iniciais sucedem-se sobre imagens de arquivo da Primeira Guerra, nas quais surge sobreimpresso o rosto de Julien Davenne; 2. a certa altura, o telefone de casa toca, e a governanta dirige-se a ele com o intuito de o atender. Davenne, que vemos reflectido num espelho, grita: “eu não estou para ninguém”; 3. o protagonista surge frequentemente reflectido em espelhos, em especial no espelho da sua casa que se situa nas escadas que ligam os dois pisos (uma zona de interface, uma vez que o piso de cima é significativamente reservado à mulher falecida); 4. Davenne é amiúde apresentado pela sua sombra ou enquanto ele mesmo uma sombra (em situações de contraluz); 5. após a cena em que Gérard Mazet apresenta a nova esposa ao chefe de Julien, vemos este último como um espectro através do vidro fosco de uma porta, atrás da qual ele se escondeu para não ser visto; 6. depois de o quarto verde arder, Davenne está junto à campa da esposa, no cemitério, em pé, à noite, envolvido em nevoeiro e fumo, como se estivesse a desmaterializar-se.
Muito perto do fim, voltamos a ver uma sobreimpressão do rosto de Julien Davenne. Desta vez, o rosto dele é feito coincidir com a capela dos mortos e o altar repleto de velas. Tal como antes um fundido encadeado sugerira a analogia entre espaços – o quarto verde e o cemitério, os dois lugares onde Julie se encontra em simultâneo –, também aqui a sobreimpressão serve o propósito de fazer coincidir dois lugares: o quarto de Davenne, onde este agoniza nas suas últimas horas, e a capela. Se Davenne já estava como morto desde o início, só agora ele possui os dois elementos essenciais que lhe permitirão passar ao novo, e final, estágio (ele fala de “achever la figure”, numa remissão evidente para The Figure in the Carpet, de James): um espaço que seja seu (a capela) e alguém que vele por si, de forma a possibilitar-lhe continuar entre os vivos (Cecilia, que se compromete a velar por Davenne e por todos os mortos).
No fim, Julien morre, Cecilia acende a vela e, em princípio, a figura completa-se.