Entrevistado pela Vanity Fair, Spike Lee dá mostras de ter medo de usar aquela palavra suja começada por “c”: “comédia”. Cita realizadores sérios que, em dado momento das suas carreiras, assinaram sátiras que desmontavam as contradições, e os demónios, do seu tempo. Evoca, por exemplo, Elia Kazan e o seu A Face in the Crowd (Um Rosto na Multidão, 1957) ou Stanley Kubrick e o seu Dr. Strangelove (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964). É verdade que Spike Lee raramente cedeu completamente às coordenadas de um género fílmico. Mesmo o seu anódino remake de Oldeuboi (Oldboy – Velho Amigo, 2003) pode conter pistas sobre qualquer coisa que ultrapassa o mero exercício de género. Por exemplo, como o protagonista interpretado por Josh Brolin, Spike Lee reaparece agora com o muito falado BlacKkKlansman (BlacKkKlansman: O Infiltrado, 2018) como se também ele tivesse estado cativo num quarto durante os últimos vinte anos, assistindo, passivo mas sempre espantado, ao desenrolar da história americana pela televisão: tomadas de posse de Bill Clinton, George W. Bush e Barack Hussein Obama. Esta apreciação não é justa, na medida em que 25th Hour (A Última Hora, 2002) será eventualmente “a obra-prima” da América Bush pós-11 de Setembro. Contudo, e mesmo que não seja verdade, apetece escrever: subitamente, Spike Lee regressa. Regressa com um filme, também apetece escrever, que é uma resposta contundente aos tempos em que vivemos, particularmente a esta Amérikkka – com três “k”, sim – que, alega-se, não só se tornou glande – com “l”, sim – como se tornou estranha outra vez.
Não é que Lee tivesse estado parado nos últimos anos, mas é inegável que o seu cinema precisava de um novo combate como de pão para a boca. Talvez o poderoso, e subestimado, Chi-Raq (2015) seja dos filmes recentes o que mais eloquentemente preparou Lee para este comeback em força – digo “em força”, porque, sem prejuízo da minha opinião, há demasiado tempo que um “Spike Lee Joint” não era tão falado. Ora, Chi-Raq é uma tragédia musical – ou um musical trágico – que tem o sentido operático de um Do the Right Thing (Não Dês Bronca, 1989) e o gosto pela sátira mais corrosiva que faz deste BlacKkKlansman a comédia mais séria do momento. São filmes que têm coisas a dizer, cheios da energia e da boa raiva que fez/faz de Spike Lee um dos cineastas mais politicamente relevantes.
Em teoria, tudo isto que escrevo faz sentido – pelo menos para mim. Mas na prática também é verdade que este Spike Lee é mais pesado, “cansado” e previsível na mensagem que nos debita. Hélas!, os seus cocktail molotovs vão quase sempre na mesma direcção, quando no seu melhor filme, Do the Right Thing, a mensagem por vezes lhe ardia na própria mão. BlacKkKlansman é uma comédia com medo da sua comédia, um buddy cop movie disfarçado de sitcom que se vai apresentando consumido pelo medo e pelo horror de uma América destroçada por uma guerra mais ou menos invisível – invisível talvez para os mais distraídos – que se trava dia-a-dia no coração da sociedade. É uma resposta urgente, sem papas na língua, mas também sem grandes subtilezas, a Trump e à recrudescência dos movimentos ou “organizações” racistas de extrema-direita.
Gosto, desde logo, do ruído que abre o filme. O ruído vem do grão da película, que continua a seduzir Lee, mas também vem do que ela regista: Alec Baldwin, o mais conhecido impersonator de Trump do momento, debitando lições de bom americanismo na pele do Dr. Kinnebrew Beauregard. Um discurso “lava mais branco” metralhado com toda a garra. A voz tem de estar nos decibéis certos, pelo que o nosso fervoroso orador vai intervalando a prelecção com ruidosas excreções sonoras que o permitem não perder o tom certo, de frase em frase, de mensagem em mensagem. Cómica e tenebrosa, esta sequência de abertura protagonizada por Baldwin permite-nos a nós, espectadores, entrarmos no tom deste filme, desta comédia cheia de ruído e raiva. Esta é a história de um polícia negro com muita lata, Ron Stallworth (John David Washington com uma afro mais memorável que a sua actuação), que se infiltra, por telefone e mediado in loco pelo seu parceiro judeu Flip Zimmerman (excelente Adam Driver), na “organização” do K.K.K..
Spike Lee sempre foi bom nisto: ele é dos poucos cineastas americanos a conseguir dar com o cravo na ferradura e a ferradura no cravo. A sua política também consiste em dar uns quantos “tiros nos pés”.
A premissa tem muita graça, mas o filme não se rende por completo à comédia – pois, nestes tempos de Trump, ela é quase uma palavra suja na boca de Lee, por isso, falemos em c*média. A ironia da premissa é tão grande que acaba por libertar Lee para que este possa espraiar toda a sua revolta. Revolta contra o quê ou contra quem? Já falei de Trump, mas aqui Lee arrisca-se a pregar a convertidos. Por isso, diria que mais desconfortavelmente ele visa a própria Hollywood, naquelas que são as suas fundações culturais ou ideológicas. O filme abre com um famoso plano de Gone With the Wind (E Tudo o Vento Levou, 1939), que espectaculariza os efeitos da Guerra Civil americana, e depois culmina na sequência em que David Duke (Topher Grace em ponto rebuçado) e os seus seguidores assistem, deleitados, a uma projecção do ideologicamente dúbio The Birth of a Nation (O Nascimento de Uma Nação, 1915), a obra de D. W. Griffith que foi – e ainda será – o padrão-ouro de todas as produções da grande Hollywood.
A crítica à obra monumental de Griffith já havia sido aduzida antes, mas é só nesta sequência que Lee leva mais longe o seu ataque à indústria a que pertence e que, segundo este, se tem constituído como um império de brancos. Lee socorre-se de um dos dispositivos que precisamente celebrizaram a gramática griffithiana, a montagem alternada, para mostrar de um lado um encontro de apoiantes dos Black Panthers com o activista Jerome Turner (Harry Belafonte, em jeito de presença-homenagem), que conta a história de Jesse Washington, uma das várias vítimas da opressão branca, e do outro lado Lee dá-nos a ver o regozijo dos novos “cavaleiros” do K.K.K. durante a projecção de The Birth of a Nation. Há, de facto, desconforto aqui, nesta montagem que cruza uma narrativa de choque e horror com a do entretenimento mais alarve despertado pela infame “primeira superprodução” que inventou Hollywood. A frontalidade de Spike Lee volta a causar faísca, porventura como nos seus melhores dias.
Ao mesmo tempo, e ainda que não tenha a fluidez e frescura do Lee dos anos 1980 e 1990, BlacKkKlansman também se sabe comportar como uma c*média arguta e provocadora, que encontra no riso mais ligeiro motivos para uma reflexão que bate fundo. Desde logo, em diálogo quiçá involuntário com o cinema recentemente redescoberto do francês Sacha Guitry, esta é uma divertida e inteligente c*média de telefones. Lee constrói os gags em torno de um campo/contra-campo tradicional entre quem telefona da polícia, o oficial negro undercover – uma voz à paisana… -, e quem recebe a chamada, o copinho de leite David Duke. Em certa medida, Lee regressa a Girl 6 (A Rapariga: Código 6, 1996), c*média ligeira sobre uma rapariga, aspirante a actriz, viciada no seu trabalho enquanto operadora de linhas eróticas, e transforma este jogo esconde-esconde, entre um lá e um cá, num exercício visual extremamente divertido que, no limite, faz troça do próprio maniqueísmo em que todo o filme pode cair – e efectivamente cai.
Perto do fim, um split screen oferece-nos a possibilidade de uma irmandade perfeita, estabelecida entre o polícia negro e o branco supremacista. Na imagem, cortada – apetece antes dizer “unida”! – em dois por uma linha diagonal, temos a demonstração de que todas as diferenças são pueris quando baseadas apenas na cor da pele ou que fenómenos como o K.K.K. sobrevivem mal à vida quando saem do seu estreito esquema ideológico. Lee sugere: “esquemas e estratégias de poder à parte, estes dois homens podiam ser os melhores amigos do mundo”. A caricatura humanista, de traço grosso, vai tão longe quanto isto: no fim, quase, quase temos pena do patético David Duke, por este ter sido objecto da mais malandra das prank calls e no fundo, no fundo por este apenas ansiar por um “novo amigo” que o distraia da sua solidão humana. Por outro lado, quase, quase sentimos desprezo pelo nosso herói, ele que não vê a “lata” e fanfarronice que o caracterizam ser muito severamente castigadas pelo desfecho desta sua inopinada – para não dizer “estúpida” – missão policial. Spike Lee sempre foi bom nisto: ele é dos poucos cineastas americanos a conseguir dar com o cravo na ferradura e a ferradura no cravo. A sua política também consiste em dar uns quantos “tiros nos pés”. E nós, espectadores, ficamos sempre algo abananados quando isso acontece. Acontecesse mais vezes em BlacKkKlansman e estava aqui a gritar “obra-prima”.