Ao contrário do que reproduz a generalidade da opinião publicada, a década de 1960 encerra profundas contradições no que diz respeito às relações entre o regime político e a geração do novo cinema português. As contradições deste período adensam-se se analisarmos comparativamente as listas dos filmes censurados e dos filmes subsidiados com dinheiros públicos. Ironicamente, nessa lista comparativa encontramos dois filmes que são exemplos flagrantes do desacerto da nova estratégia cultural do regime: Catembe (1965), de Faria de Almeida, e Domingo à Tarde (1965), de António de Macedo; ambos foram subsidiados pelo Fundo de Cinema Nacional e ambos conheceram a dureza da censura.
Como explica o próprio realizador, o filme de Macedo foi submetido à censura obrigatória e aprovado com quatro cortes: “Dois abrangiam a sequência do ‘filme dentro do filme’, onde o ‘emissário das trevas’ destrói um crucifixo, outro era a sequência da discoteca onde duas raparigas dançam uma com a outra, acariciando-se; e finalmente o quarto era uma parte do diálogo entre o ‘diabo’ e o padre, já quase no final.“ No caso do filme Catembe, o filme foi sujeito a 103 cortes (tinha uma metragem original de 2400m e ficou reduzido a 1200m, apenas 48 minutos), tornando-o no mais censurado dos filmes portugueses.
Mas o cinema português da década de 60 conheceu ainda outros casos de cortes. Por exemplo, Pássaros de Asas Cortadas (1963), de Artur Ramos, teve 17 cortes impostos pela comissão de censura. E Os Verdes Anos (1962), de Paulo Rocha, também teria quatro cortes: três frases foram eliminadas (“Então, há material novo desde a última vez que aqui estive?“; “Ó Raulinho, se vier gado jeitoso enxota ali para a mesa do canto“; “Portugal é um país pequeno, mas tem grandes mulheres“) e uma cena cortada na íntegra (a cena em que o protagonista e um estrangeiro conversam com duas prostitutas na rua).
Cortes da Censura ao filme Os Verdes Anos (1962)
No filme A Caça (1963), de Manoel de Oliveira, a situação foi mais particular: o fim escolhido pelo realizador (a morte de uma personagem) foi considerado pessimista pela censura, que exigiu ao realizador – até porque o filme foi feito com fundos públicos – um final feliz; perante a impossibilidade de ver aprovado o filme como o havia concebido, Oliveira resolveu acrescentar cerca de 1 minuto ao filme, precisamente o prolongamento da cena final da morte, de forma que a personagem que deveria morrer fosse salva pelos seus companheiros.
Fotogramas de A Caça (1963), de Manoel de Oliveira
Mas a transição para a década de 1970 ficaria marcada sobretudo por um número inédito e significativo de proibições integrais por parte da censura cinematográfica: Quem espera por sapatos de defunto morre descalço (1970), de João César Monteiro, teve cortes da censura que inviabilizaram a sua distribuição comercial; Nojo aos Cães (1970), de António de Macedo, foi proibido por ser considerado “perigoso e contrário aos interesses nacionais“; Nem Amantes, Nem Amigos (1970), de Orlando Vitorino, só seria exibido pela primeira vez em Portugal em 1983, na Cinemateca Portuguesa; Grande, grande era a cidade (1971), de Rogério Ceitil e Lauro António, seria interdito após ante-estreia no Festival de Santarém; Índia (1972), de António Faria, teve proibição integral (Ibidem: 159); Deixem-me ao menos subir às palmeiras (1972), de Lopes Barbosa, o primeiro filme feito no Ultramar por ultramarinos, também foi proibido na íntegra; O Mal-Amado (1974), de Fernando Matos Silva, foi proibido na íntegra e o negativo foi confiscado; Sofia e a Educação Sexual (1974), de Eduardo Geada, foi proibido na íntegra.
Excerto de O Mal-Amado (1974), de Fernando Matos Silva
O caso de Nojo aos Cães também é particular: apesar da proibição integral em território nacional, o filme recebeu uma autorização excepcional por parte do SNI para participar no festival de cinema de Bérgamo, depois de um processo sui generis, relatado na primeira pessoa por António de Macedo:
“A situação era delicada, se os broncos das comissões de censura vissem o filme, que, do ponto de vista deles, devia ter peçonha até aos olhos, não haveria autorização. O Francisco de Castro [produtor] então lembrou-se de uma maroteira: como o despacho final dependia da autoridade do dr. Caetano de Carvalho, então director-geral [da Cultura Popular e Espectáculos], por sinal muito amigo dele, convidou-o a assistir a uma projecção privada no estúdio das ‘Produções Francisco de Castro’, na Rua Damasceno Monteiro, com a presença do realizador, mas a cópia acabasse de sair do laboratório. O director-geral anuiu. O Castro organizou um bufete cheio de aperitivos e de garrafas de bom whisky, o dr. Caetano de Carvalho apresentou-se com o chefe da repartição, que era o saudoso dr. Félix Ribeiro, e passámos todos uma tarde agradabilíssima, a ver o filme, bobina a bobina, à medida que as bobinas chegavam do laboratório, conversando muito e bebendo mais. À saída, dizia-me o director-geral com um brilho de felicidade nos olhos: – Senhor Arquitecto (era comigo), para a próxima faça um filme mais optimista, este é muito deprimente. Amanhã sem falta terá a autorização para ir a Bérgamo.”
Depoimento de António de Macedo e excerto do filme Nojo aos Cães (1970).
A transcrição deste episódio não pretende, de forma alguma, atenuar ou aligeirar a castradora influência da censura na actividade cinematográfica em Portugal, apenas sublinhar que a ideia de uma censura cinematográfica irrepreensível e implacável está longe de ser a mais apropriada no caso do cinema português da década de 60 e da primeira metade da seguinte. Se na década de 50 a discriminação negativa ao cinema português foi mais coerente e eficaz – veja-se o exemplar caso de Manuel Guimarães –, o mesmo não sucedeu com o designado novo cinema português. Coerência e eficácia não são, definitivamente, as características que melhor assentam à acção da censura cinematográfica durante o período de afirmação e reconhecimento do novo cinema português.