Num texto de 1983 assinado por Eduardo Prado Coelho a propósito do mítico e mitológico Trás-os-Montes (1976) de António Reis e Margarida Cordeiro, o crítico começava por afirmar que “Uma das linhas mais produtivas do cinema português tem sido a da descoberta, em termos de pesquisa antropológica, de uma realidade rural em vias de desaparecimento.” Depois de um elogio da poesia desta vertente cinematográfica, fala-nos do “enorme interesse” do trabalho de António Campos e acrescenta: “merecem ainda menção, entre outros, Noémia Delgado [Máscaras (1976)], Leonel Brito [Colónia e Vilões (1977) e Gente do Norte – A História de Vilarica (1977)], Fernando Matos Silva [Argozelo (1977)], Manuel Costa e Silva [Festa, Trabalho e Pão em Grijó de Parada (1977) e Madanela (1977)], etc…” E eu acrescentaria, nesse et cetera, um outro título, Castro Laboreiro (1979) de Ricardo Costa. Serve esta introdução para dar a entender que, por um lado, nem só de António Reis (e Margarida Cordeiro) se faz o cinema etnográfico português – como a escola Reis sempre procurou defender – como os anos 1970 foram de facto prolixos na produção de retratos sobre uma série de regiões ainda bastante inacessíveis para os espectadores dos grandes centros urbanos que procuravam recolher testemunhos moventes das tradições e das realidades sociais de uma parte muito significativa da população portuguesa.
Exactamente para abrir um pouco o panorama cinéfilo sobre esse período e sobre essa prática, a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema em parceria com a Academia Portuguesa de Cinema inaugurou a “Colecção Academia” em que são editados em DVD um conjunto de filmes portugueses antes inéditos, sendo Colonia e Vilões o filme inaugural desta colecção. A sua escolha, além de outras questões logísticas e patrimoniais, faz tanto mais sentido quando o filme de Leonel Brito fora, durante várias décadas, desconhecido da maioria dos espectadores, em particular daqueles que visa directamente, os da ilha da Madeira. Esta prolongada invisibilidade resulta de uma série de factores (também eles decorrentes da preservação e arquivamento da cópia), sendo um dos mais evidentes a sensibilidade política que o filme abertamente feria à época, como as pobres capacidades de distribuição do cinema português nesses anos do pós-25 de Abril.
O que fica de Colonia e Vilões é de facto o seu olhar surpreendente analítico e distanciado sobre o rebuliço que eram os anos do PREC a par de um incrível cuidado no retrato de uma realidade assustadora sob a perspectiva de um cinema pedagógico.
A respeito deste último factor importa recordar que – e passo a citar o recém editado livro do walshiano Paulo Cunha, Uma Nova História do Novo Cinema Português, que depressa se tornará fundamental na descrição das formas de recepção do cinema em Portugal – entre 1975 e 1979 (inclusive) estreiam nas salas nacionais apenas 15 filmes de produção portuguesa (ou seja, uma média de três filmes por ano) dos quais apenas três eram documentários [Trás-Os-Montes, Deus, Pátria e Autoridade (1976) e Barronhos (1976)]. Além disso, “Neste período, em comparação com o total de espectadores registados em cada ano, o acumulado de espectadores dos filmes portugueses cresceu dos 0,01% de 1975 para os cerca de 0,32% de 1980. São, como é evidente, números insustentáveis em qualquer lógica financeira de mercado e que inviabilizava qualquer sobrevivência do cinema português sem apoio público.” Em particular, “dos 30 filmes produzidos em 1976 [entre ele Colonia], entre Agosto e Dezembro, não estrearia nenhum nas salas nacionais.” No entanto Paulo Cunha assinala que “por estes anos, para o cinema português é igualmente fundamental a circulação por um circuito cultural paralelo ao circuito comercial”, circuito esse que incluía cineclubes, festivais de cinema, entidades privadas e associações de estudantes entre outros. Mas mesmo aí Colonia e Vilões não vingou. Como refere o realizador na entrevista que serve de suplemento à edição em DVD, ao contrário de Gente do Norte que teve uma grande circulação nesse meio (nomeadamente no Festival de Cinema de Santarém e no Festival de Cinema de Figueira da Foz onde receberia, nem de propósito, o Prémio da Federação Internacional de Cine-Clubes), o seu anterior apenas seria exibido numa ante-estreia na Sociedade Portuguesa de Autores em Maio de 1978.
Além disso o filme terá sido proibido pelo governo da Madeira de ser exibido na ilha, assim como um entrevista dada pelo realizador ao jornal local terá sido censurada pelo mesmo executivo, isto, note-se, em 1978, quatro anos após a revolução de Abril – Brito afirmou mesmo, aquando do lançamento do DVD, que o filme foi “silenciado”. Isto porque a realidade política da Madeira no pós-25 de Abril funcionou a contra-ciclo daquilo que se passava no continente, algo que o próprio documentário reflecte quando, a caminho do final da sua hora de duração, inclui um discurso de Mário Soares onde este denuncia que o Almirante Américo Tomás e Marcello Caetano foram “passar férias à Madeira”. De facto, na ilha surgiu uma facção reaccionária fomentada pelo poder executivo do território e que incluiu o inf(l)ame grupo terrorista separatista FLAMA (Frente de Libertação do Arquipélago da Madeira) que fez vários atentados à bomba entre 1975 e 1978 – facção essa que o filme ideologicamente associa à posterior ascensão do PPD entre os votantes do arquipélago.
Exactamente por causa deste clima politicamente instável, Brito refere que Fernando Matos Silva (através da cooperativa Cinequipa), alguns meses antes, tentara rodar um documentário na ilha mas fora expulso mal aterrara por ser considerado pelo poder local um “cubano”. Brito (através de outra cooperativa, a Cinequanon fundada por António de Macedo e Luís Galvão Telles) terá então conseguido obter autorização por alegar estar a produzir um “filme turístico”. No entanto, há que notar as diferenças de matiz que existiam entre as várias esquerdas desses anos. Regressando ao livro de Paulo Cunha, “em linhas gerais, existiam dois grupos distintos para a reorganização do cinema português: «De um lado, estavam os elementos das Unidades de Produção criadas nesse ano no IPC [1975, em pleno ‘Gonçalvismo’, isto é, sobre influência directa do Partido Comunista e a favor de uma estatização da produção cinematográfica] e, do outro lado, aqueles que pertenciam às cooperativas de produção cinematográfica»”. Exactamente por isto o próprio Brito, mais de quarenta anos depois, não deixou de acrescentar no lançamento do DVD que o seu trabalho desses anos dentro da cooperativa era feito “contra a máquina do P.C.”. As esquerdas desentendidas, agora e sempre, ámen. Ou como dizia António Lopes Ribeiro – sobre outros tempos e outras gerações (como lembra Brito, que com ele privou) – “éramos poucos e graças a Deus dávamo-nos mal”.
Colonia e Vilões é, no fundo, um documentário de denúncia que tem também preocupações antropológicas e etnográficas – como explicou o realizador em entrevista a Matos-Cruz em 1977 para o Diário Popular, “o filme inclui, ainda, uma recolha de folclore – desde músicas bastante antigas a cantares populares que lembram as cantigas de amigo, o que tem a ver com os trovadores e o isolamento em que as pessoas viveram até agora”. Brito, enquanto técnico agrícola – a sua formação é em Agronomia – viveu na Ilha e teve contacto com a realidade da colonia. Ao contrário do que o leitor possa pensar, não falta aqui um acento no “o”, não são colónias mas sim colonias. O contracto de colonia (que deriva de colono) tinha origens medievais e subsistiu até 1977 (só três anos após o 25 de Abril se conseguiu terminar com este sistema de exploração, dado os poderes instalados da ilha em muito dependerem dele), e consistia numa cedência da utilização das terras, onde o colono tinha todo o trabalho sobre a propriedade agrícola e o dono recolhia metade de toda a produção desse terreno, que impedia assim o colono de construir habitação permanente – daí as típica e agora picarescas casas de madeira e colmo – e podia dispor da sua utilidade se assim entendesse (perdendo assim o colono todo o seu investimento no terreno). Como explicam algumas das vozes que preenchem a banda sonora do filme, “o caseiro era um animal doméstico com um bocado mais de jeito que qualquer outro, amarrado ao terreno, ignorante, numa palhota, para trabalhar continuamente em favor do dono”, eram “escravos da terra” e passando a terra para outro dono o colono vinha incluído. Este estado de coisas era sustentado pela influência da Igreja que advogava o exercício da transcendência em favor do capitalismo, ouvindo-se o Bispo da época pregar que “o homem não é senhor da sua própria vida, não está seguro neste mundo.”
Paradoxalmente é da igreja que surgem os ares de renovação que levam os colonos a reivindicarem melhores condições, acabando na proibição deste contracto arcaico. São os padres novos (de esquerda e com barbas a condizer), nomeadamente a figura mítica e também já mitológica do Padre Martins que abala o status quo. Isto é, e simplificando, se a revolução no continente foi feita pelos militares, na ilha da Madeira ela foi feita pelos jovens párocos – nesse sentido há um belíssimo testemunho de uma senhora analfabeta que tinha muito medo da palavra “comunismo” mas que depois de falar com o Padre Martins terá percebido que a preocupação destes era defender os direitos dos mais desfavorecidos. À imagem do trabalho destes padres, também o filme de Brito trabalha segundo uma vertente altamente pedagógica. Para isso percorre a história do arquipélago desde o seu “achamento” até ao presente, desfazendo uma série de mitos (como aqueles que envolvem os navegadores portugueses) recorrendo a inúmeros documentos históricos, incluindo o próprio cinema. O filme apropria-se de extractos de filmes como A Pérola do Atlântico – Madeira (1937), O Fauno das Montanhas (1926), A Calúnia (1926), assim como de alguns números do Jornal Português. Neste aspecto, um dos momentos mais inteligentes do filme dá-se quando se cruza a descrição da visita de António de Oliveira Salazar ao arquipélago em 1925 (portanto ainda antes do golpe de estado) e uma cena de violação num desses filmes mudos em que uma personagem grita “Socorro… Socorro…”. O filme é particularmente inventivo no modo como apresenta estatísticas e outros dados demográficos, criticando a privatização de vários negócios da ilha e o aumento do turismo através de soluções como a velocidade acelerada, o recurso inteligente às múltiplas vozes da banda sonora (e à escrita da narração) ou a utilização recorrente dos zooms sobre a paisagem, como que literalizando a intenção do filme em compreender simultaneamente a realidade geral da ilha e os casos particulares de vários dos seus habitantes.
O que fica de Colonia e Vilões é de facto o seu olhar surpreendente analítico e distanciado sobre os rebuliço que eram os anos do PREC (e subsequentes) a par de um incrível cuidado no retrato de uma realidade assustadora sob a perspectiva de um cinema pedagógico, dialético mas também – e isso é que é surpreendente – maioritariamente observacional. Um dos exemplos “chocantes” dessa observação não interventiva é a cena final sobre o trabalho infantil: um grupo de rapazes pisa as uvas no lagar, cantando de braços dados; esse trabalho é apenas interrompido pelo mestre de cerimónias que lhes oferece copos de verdelho – um tipo de vinho já então proibido no continente – para que as crianças continuem a trabalhar sem reclamar. Como referiu o Padre Martins no lançamento do DVD, “parece um filme revolucionário, mas não é. É um retrato de uma época.” Um retrato que importa recordar.