Desta vez aproveitamos para juntar os meses de Julho e Agosto e destacar alguns dos filmes que entretanto estrearam mas que ainda não tinham sido alvo de análise crítica por cá, casos de A Ciambra (2017) de Jonas Carpignano, Revenge (Vendeta, 2018) de Coralie Fargeat e Ana, mon amour (Ana, Meu Amor, 2017) de Cãlin Peter Netzer, sem esquecer os dois filmes de Marcel Pagnol em reposição. Mas como um dos objectivos dos Comprimidos Cinéfilos é também revelar olhares diferentes sobre obras que já tiverem direito a um texto em nome próprio, há lugar para uma espécie de “direito de resposta” de Bernardo Vaz de Castro em relação a First Reformed (2017) de Paul Schrader, filme que mereceu nota negativa pela parte do Bernardo no mais recente Palatorium Walshiano, em sentido contrário às restantes reacções bem positivas ao filme (que aliás, já tinha sido elogiado por Luís Mendonça nos Comprimidos Cinéfilos de Junho e Julho).
La femme du boulanger (A Mulher do Padeiro, 1938) e La fille du puisatier (A Filha do Poceiro, 1940) de Marcel Pagnol
Que os deuses do cinema me perdoem, mas entre os magníficos cineastas consagrados nos ciclos de clássicos mais ou menos esquecidos do cinema francês programados pela Leopardo Filmes tenho de destacar um nome: o de Marcel Pagnol. O acesso às sua obra estava praticamente limitado à sua “trilogia de Marselha”, folhetim com uma dramaturgia exaustiva marcada pela “presença-monstra” de Raimu, um dos maiores actores de todos os tempos. La femme du boulanger (A Mulher do Padeiro, 1938) é uma obra posterior, e sente-se que Pagnol está aqui no ponto mais alto das suas capacidades como realizador, liberto dos trejeitos do teatro e apostado em verter na sua mise en scène um discurso plenamente integrado na duração do cinema. Desde o plano subjectivo dos pães dentro do forno, que testemunham o antes e o depois do vendaval que se atravessa entre o padeiro e a sua mulher transviada, até à fluidez quase renoiriana da sequência do embriagamento do marido desesperado ou até ao modo como Pagnol, também afim com o genial realizador de La règle du jeu (A Regra do Jogo, 1939), orquestra uma deliciosa comédia de costumes (com a relação entre o padre moralista e o professor céptico no centro da acção). Mas acima de tudo o que mais me comoveu nesta obra-prima é a sua duração, uma duração eivada de vida – arte anti-elíptica do drama como perpétuo movimento da vida. Isto é algo que consubstancia uma certa “marca Pagnol”: uma minuciosa – disse já “exaustiva”, não é? – atenção dispensada ao drama, a cada micro-acontecimento da narrativa. A câmara de Pagnol é como um sismógrafo sentimental que tem no rosto e presença de Raimu – está entercedor e “patético” como nunca antes – o seu verdadeiro teatro. O teatro da vida.
La fille du puisatier (A Filha do Poceiro, 1940), filme que a Leopardo FIlmes distribuirá em sala nos próximos tempos, em certa medida continua La femme du boulanger, aprofundando o retrato de classe, ainda que sem a mesma fluidez renoiriana. Ainda assim, La fille du puisatier alia com audácia a comédia sentimental com o retrato de uma época. Só perto do fim é que nos bate, com alguma violência, o sentimento de derrota, e desencantamento, que atravessa este filme rodado em cima da estrondosa capitulação da França em face da Alemanha nazi. Depois de ouvido o discurso do Marechal Pétain pela rádio, as personagens – e o filme como elas – baixam os braços. A partir daqui, até a ligeireza maior deste Raimu e o sorriso contagiante de Fernandel são insuficientes para contrabalançar a retumbante derrota. Há final feliz, cheio de lágrimas e grandes sentimentos, mas não nos sai do espírito a sensação de que Pagnol orquestrou este doce folhetim atraído pelo sentimento de ruína – e quebra moral – de toda uma nação. É comovente por causa disso.
Luís Mendonça
A Ciambra (2017) de Jonas Carpignano
No início de 2016 estreou em Portugal Mediterranea (2015), a primeira longa de Jonas Carpignano, italo-americano nascido no Bronx. O pai tinha sido um dos seus produtores, professor de sociologia que dava aulas entre Nova Iorque e Roma, e já naquele existia um impulso realista em direcção dos problemas da emigração, das minorias, e em concreto a forma como os italianos “acolhem” a questão. Mas é preciso recuar ainda mais, concretamente a 2012, para compreender as raízes deste A Ciambra (2017). Carpignano tinha então rodado A Chjàna (2012), prémio de melhor curta-metragem em Veneza, acerca de Ayiva, um emigrante africano que procurava encontrar-se com um amigo durante uma série de conflitos raciais em Itália. Conta-se que, durante a rodagem, muito material técnico havia sido furtado e que a equipa seguiu o rasto do material até a esta Ciambra, comunidade cigana de Calabria, para tentar reaver algumas das coisas. Aí conheceu a família Amato, em especial o rosto a chispar fogo, o duro magnetismo do menino Pio Amato. Quer Pio, quer Ayiva (aliás, o seu nome é Koudous Seihon) foram sendo o centro dos filmes seguintes e em A Ciambra, o retrato da comunidade a que a família de Pio pertence é também “desembrulhado” através da relação entre estes dois, um africano e outro cigano e já agora, uma amizade que não nos é mostrada mas que também não era preciso, entre estes dois e Carpignano.
Se contei tudo isto é porque eu creio que não se consegue arriscar o olhar em A Ciambra sem perceber este trabalho de fraternidade e amizade que sensibilizou Scorsese ao ponto de produzir o filme. O retrato é dardenianno, a câmara à mão não vai largar em especial Pio, que Carpignano quer ver crescer, quer ver passar para o lado dos homens (deixando o grupo das crianças e a guarda das mulheres). O filme é como uma grande ave que sacode as suas penas após banhar-se nas águas da política, e que só começa a voar quando se desembaraça (nem sempre com sucesso, diga-se) dos seus ímpetos de porta-estandarte do retrato justiceiro das minorias e dos oprimidos. Mas quando o consegue, A Ciambra emociona-nos pelo seu comprometimento: pelas moedinhas que o Pio “semi-emancipado” dá aos meninos mais pequenos; os cigarros na boca das crianças como os olvidados de Buñuel; o aninhar-se no colo da mãe depois de uma noite de crime; ouvir o nome do pai, Rocco, e lembrarmo-nos da obra-prima de Visconti que também aterra na miséria e no amor fraternal; os códigos de honra dos ciganos, a desconfiança dos africanos; o querer apenas fazer qualquer coisa como o irmão mais velho; o funeral do avô. Quando se cresce tudo arde, e a Carpignano, também ele um jovem, se pode desculpar alguma simplicidade narrativa de processos, os atalhos para chegar às profundezas de uma comunidade, seja ela composta por ciganos ou por cinéfilos.
Carlos Natálio
Revenge (Vendeta, 2018) de Coralie Fargeat
Tal como recorrente no subgénero rape and revenge, a primeira longa de Coralie Fargeat não foge à bipartição entre um primeiro momento em que a vítima é violentada e a segunda metade na qual, após inesperada sobrevivência, a mesma leva a cabo ferozes actos de vingança, reunindo em si forças que não sabia sequer possuir. Um pouco como o golo-estocada que o mensageiro-Éder cozinhou a partir das suas entranhas, atingindo fatalmente o “inimigo”. Exemplos, uns mais outros menos, puxados à área do terror pelo extremo da vingança: Day of the Woman (Mulher Violada, 1978) de Meir Zarchi, The Last House on the Left (1972) de Wes Craven [aqui, uma das personagens vingava-se do seu agressor arrancando-lhe a pila à dentada], Straw Dogs (Cães de Palha,1971) de Sam Peckinpah ou mais recentemente Kill Bill (2003-2004) de Quentin Tarantino, ou Oldeuboi (Oldboy – Velho Amigo, 2003) de Chan-wook Park. A lista, percebem, é interminável.
Mas então o que haverá de interessante por aqui, nesta revisitação, no qual um bonzão (Kevin Janssens) leva a sua amante boazona (Matilda Anna Ingrid Lutz) para uns dias de um suposto fim-de-semana com os amigos, para uma caçada no meio do deserto? Bom, duas ou três coisas se podem apontar. Em primeiro lugar, que se trate de um dos primeiros revenge flicks, ainda para mais com uma mulher ao leme, feitos após os movimentos #MeToo e toda a vaga de escândalos de agressão sexual. Embora Coralie não nos queira esfregar isso na cara, o espectador não pode deixar de pensar nessa inevitável contaminação cultural, neste Revenge (Vendeta, 2018) como um certo espaço de empoderamento feminino. Sobretudo penso nisso na cena final, um verdadeiro merry-go-round no interior de um impecável apartamento, uma literal caça ao homem (nu), carrossel pintado de sangue.
Outro pormenor interessante tem precisamente a ver com os interiores (que ocupam sobretudo a primeira parte do filme e esta última): tudo é impecável, a televisão a debitar publicidades, o sofá de pele, o quadro da parede, a mobília do quarto. Onde quero chegar é que o filme de Coralie Fargeat creio que pretende fazer essa oposição entre um mundo materialmente “perfeito” e um mundo espiritualmente defeituoso (ela é a amante, o violador não sabe lidar com a rejeição, o terceiro é sempre um espectador sem coragem, etc). Em terceiro lugar, há espaço para um certo humor, sobretudo quando a pobre deixada para morrer se converte numa espécie de Amazona-Tomb Raider que vai dar uma de Rambo, retirando com facas e alucinogénos um pedaço de madeira da sua barriguinha. Finalmente, são os detalhes: o slow motion do gordo a comer o chocolate, as pingas de sangue a cair como bombas junto das formigas no deserto, as cores pop — o vermelho sangue, claro, mas também o azul do céu, o rosa do batom e da roupa de Matilda — em oposição com o mundo Mad Max, apocalíptico, da poeira e da areia. Por tudo isto, Revenge dispõe bem, apesar disso ser um contra-senso. Mas quem não aprecia um bom sorriso sádico, desde que no conforto de seu lar? Atire a primeira pedra, vá.
Carlos Natálio
Ana, mon amour (Ana, Meu Amor, 2017) de Cãlin Peter Netzer
Nunca o nome desta rubrica se adequou com tanta propriedade a um filme como este ao qual agora nos lançamos. Comprimidos, sim: ansiolíticos, tranquilizantes, anti-depressivos, por aí fora. Tudo isto está no campo e no fora-de-campo de Ana, mon amour (Ana, Meu Amor, 2017), a segunda longa do romeno Cãlin Peter Netzer, vencedor do Urso de Ouro na Berlinale 2013 com Pozitia copilului (Mãe e Filho, 2013). Um cerimonial preparatório antes de sair de casa; a desmedida importância que se dá a uma palavra ou a um gesto (tantas vezes lido, porventura erradamente, como insinuação de); a imagem de um rosto ou de um momento que não nos larga o pensamento; enfim, as famigeradas “borboletas no estômago” quando avistamos alguém ao longe… Tudo isto tem um e muitos nomes, e tantas vezes dois deles se confundem num só: amor, ansiedade; ansiedade, amor. Uma das primeiras virtudes do filme de Netzer reside precisamente aí: no modo como, para além da dimensão “clínica”, não deixa nunca que o espectador se esqueça de que o amor (também) é, por natureza… ansiedade; e de que, em toda a ansiedade (mesmo que não a amorosa ou romântica), existe alguma espécie de… “amor”, no sentido de que ela sempre carrega uma qualquer vertigem, fúria, frémito.
Uma outra virtude de Netzer está no modo (no ritmo) como monta as “cenas da vida conjugal” de Ana e Toma, ora de modo rápido e cortante, correspondente à “instantaneidade”, imprevisibilidade, dos ataques de pânico de Ana (extraordinário trabalho de representação de Diana Cavallioti); ora filmando-os em cenas longas, demoradas, a câmara à mão relativamente à deriva. Neste último caso, se tal opção, numa leitura mais imediata, “internaliza” os efeitos anestesiantes dos comprimidos de Ana (como se a câmara estivesse “drogada”), também serve um outro resultado, porventura mais belo, que é o de captar o amor nos seus momentos mais cândidos, ingénuos, enfim, felizes: é tudo isso que está nesta nouvellevagueana sequência que vai sendo “decoupada” ao longo dos 125 minutos (espantosa aquela situação, logo na primeira cena, em que Cavallioti passa, muito lenta e genuinamente, de um ataque de pânico para o início daquilo que parece ser um momento de prazer sexual…). 53 anos depois, Ana é o update geracional, cultural, “patológico”, da Giuliana (Monica Vitti) de Il Deserto Rosso (O Deserto Vermelho, 1964): os “ataques” deixam de ser meras (e, de certo modo, estilizadas) petrificações existenciais (o ennui antonioniano) para serem o que, na verdade, sempre foram: problemas médicos reais, carentes de acompanhamento clínico – a ansiedade como “a” doença mental do século XXI, com uma galopante penetração entre os jovens ditos millennials (e é por aqui, aliás, que reside um dos aspectos menos felizes do filme: a psicanálise utilizada como modo forçado para explicar, com um superficialíssimo simbolismo, tudo e mais alguma coisa).
Fassbinder ficou para a história do cinema, entre outras coisas, pelo modo visceral, violento, incómodo mesmo, como procurou demonstrar que as relações amorosas são, no princípio e no fim, relações de poder, perfeitamente delineadas no que ao binómio explorador-explorado diz respeito. Dir-se-ia, então, que, em Ana, mon amour, os termos são um pouco diferentes – mas talvez nem tanto assim, afinal. O desmedido altruísmo manifestado por Toma para com Ana é, na verdade – compreenderemos na última meia-hora do filme –, a sua forma – quiçá inconsciente, sim, mas o Poder nunca viveu, por natureza, da “boa consciência” – de exercer poder e dominação. Se Ana, durante grande parte dos anos que atravessam aquela relação, depende, inteiramente, de Toma (quão poderosa a cena do suicídio-que-não-é-mas-é-suicídio), o contrário não é mentira. Queremos dizer: Toma é absolutamente dependente da dependência de Ana por si, e, uma vez atenuada a dependência desta última, o chão começar-lhe-á a fugir (a Toma). Quem é dependente de quem, afinal? A aparente solidariedade, disponibilidade total de Toma constitui-se, hélas, numa perversa forma de poder, controlo, enfim, da sua própria sobrevivência. Era precisamente disto – embora com um aporte mais politizado (classista, marxista) – de que falava Fassbinder.
Francisco Noronha
First Reformed (No Coração da Escuridão, 2017) de Paul Schrader
Talvez deva aproveitar este comprido para explicar o porquê da minha intolerância com determinadas obras e autores. Tentei recentemente tornar claro alguns desses motivos ao escrever sobre Happy End (2017) de Michael Haneke. No entanto, é uma questão recorrente e presente no meu pensamento sobre o cinema e as questões daquilo que deve ser representado e não representado. Anteriormente com The Square (O Quadrado, 2017) de Ruben Östlund, eram já decifráveis alguns dos elementos responsáveis à minha perplexidade frente à tela. Não pretendo contudo, tornar tais princípios ou ideias em guias de distinção moral e ético, até porque cada caso deve ser julgado em última análise com base na intenção da obra e do seu autor. A intenção não deve ser entendida no extremo, entre o arbitrário pessoal (a cada um a sua leitura) e o condicionado a factores externos (por exemplo, aquilo que o autor diz sobre a sua própria obra ou a colocação desta obra ao serviço de uma determinada lógica).
A intenção é algo construído quer dentro de um filme, pois devemos respeitar tanto o espaço que ele nos dá (o tal espaço imaginário que vai além das limitações físicas impostas pela tela), como aquele que ele delimita (se um filme nos fala sobre alhos, não extravasar esse sentido para bugalhos); quer pela própria lógica autoral (o nome e o estilo a ele associado), que torna reconhecível um determinado léxico formal e temático. Por exemplo, se Haneke, tal como frisei (sem no entanto ter explicitado devidamente) no último texto, é um realizador sem redenção, na medida em que é capaz de realizar dois Funny Games (1997 e 2007) e no entanto usar do seu poder para perpetuar o jogo sádico, quer de um filme para o outro (em ambos é igual a dose de perversidade do jogo e a impotência gerada contra o desfecho), quer dentro do próprio filme (lembremos que a mulher consegue fugir dos agressores para mais tarde ser capturada novamente e dar continuidade ao vil jogo), isto levar-me-á a formar uma determinada possibilidade de leitura sobre a intenção, quer do filme, quer do próprio autor posto em análise – por exemplo, relacionar a perversão de Funny Games com a de La pianiste (A Pianista, 2001) ou de Das weiße Band (O Laço Branco, 2005).
Aplicar esta mesma lógica ajuda a contrariar uma suposta tese de que Pasolini e o seu Salò o le 120 giornate di Sodoma (Salò ou os 120 Dias de Sodoma, 1975) são responsáveis pelo aparecimento de uma corrente abjecionista no cinema (creio que o único responsável, a existir, é antes Kubrick). Em primeiro lugar, seguindo a regra autoral, será difícil encontrar traços endémicos de perversão na obra de Pasolini. O cineasta do cinema poesia (mesmo que este não se insira em tal corrente, segundo o seu próprio texto), quando é cruel, a sua crueldade não parte de nenhum prazer sádico mas de uma violência que é da ordem da própria arte. A banalidade do mal em Haneke provém do simples arrastar da violência da vida para a arte, sem que haja um trabalho sobre essa violência. A essa ausência de princípios morais e éticos no trabalho sobre a violência, eu entendo como gratuitidade ou futilidade do choque. Porém, a morte da mãe em Mamma Roma (1962) ou de Accattone (1961) é de uma ordem totalmente oposta, pois face à violência da vida, Pasolini responde com a violência da arte. Aquela morte não se detém no simples acto, mas é como que elevada – tal como o corpo da burguesa em Teorema (1968) – a uma outra ordem da representação. Se quisermos identificar algum tipo de perversão, teremos de ir a Porcile (Pocilga, 1969), onde de facto o mal levou a melhor. Não porque Pasolini desenvolva um fascínio ou gosto, mas porque o mal é a matéria mais difícil e complexa de trabalhar. Porque o mal é visível através das relações de poder que desencadeia e a história da humanidade sempre esteve consagrada aos vencedores e não aos vencidos. Aos vencedores foi nos ensinado a admirar e por vezes essa admiração leva-nos a que os seus fins obliterem os seus meios ou os tornem justificáveis. A própria negatividade dessa acção, mesmo que nos cause repulsa e não fascínio, por vezes pode ser incomportável e esmagar-nos. A Pocilga certamente que esmagou Pasolini e o que dele resta é nada mais do que um pessimismo sem redenção, ao contrário da resistência silenciosa em Salò. Se as prostitutas servem o poder e o poder encontra-se representado nas figuras do juiz ou do general, há um outro elemento que não participa ou serve, e este é o da pianista. A pianista deve ser tida como a figura mais importante, porque é ela a responsável durante quase todo o filme pela resistência e pelo não fechamento.
Se Deleuze afirma que Salò é o verdadeiro teorema de Pasolini, é porque a pianista comete o suicídio. Enquanto a pianista existe ao longo do filme, o elemento da arte resiste naquela casa. Contra a palavra de ordem (a da prostituta que narra um episódio para inspirar um “círculo”), a música sobrepõe-se a essa infâmia como bondade, como bem. Pasolini estava consciente da importância desta figura, tanto que opta pelo seu suicídio, não como gesto niilista, mas antes como alerta. O alerta que Pasolini nos lega é de que quando o mal está por toda a parte (se atentarmos devidamente, as punições até ao suicídio da pianista são sempre executadas dentro da casa; só depois da sua morte é que estas ocorrem no pátio, ou seja, no mundo), a arte não pode subsistir. Aqueles que estão tão preocupados em tornar Salò num mostruário de práticas infames e perversas, não se dão conta da superficialidade da sua leitura, tornando Salò um filme de intenções gratuitas e chocantes.
Resta-nos agora perceber o porquê da minha classificação “implacável” quanto a First Reformed (No Coração da Escuridão, 2017) e o lugar que este ocupa na categoria das intenções condenáveis. Se posso afirmar sem qualquer problema que este filme é de uma falta de densidade absoluta, onde a previsibilidade do seu desenrolar é por demais evidente, esta falta de densidade não é causa (e nunca será) para a minha “intolerância”. Aos filmes planos, consoante a sua composição formal, ideias e intenções mais ou menos realizadas, resta o lugar entre 1 e 2 estrelas (traduzo esta questão à mais elementar manifestação da crítica, as estrelas). Um filme mesmo que aborrecido, como foi a uma hora e quarenta passadas frente a First Reformed, em nada faziam prever o seu desfecho final. Ou melhor, se há algum motivo para que a bola preta conste na tabela classificativa, é porque os tais restantes quinze minutos apesar da sua previsibilidade narrativa, estes contrastam em absoluto com a imprevisibilidade do excesso formal a que assistimos. Se o diálogo e relações entre extremismo religioso e ambiental ficam pela rama, se o encontro com o colete revela logo o que se seguirá, se a inevitabilidade da paixão entre o padre e a mulher é previsível, assim como a sua tentativa de redenção (não pôde salvar o marido, mas tenta salvar o padre), se o desempenho de Ethan Hawke é insuportável, sobretudo se pensarmos em Claude Laydu (o pároco de Bresson), se a pobreza formal que tenta traduzir e que acaba antes por reduzir essa suposta busca pela transcendência e ascetismo (reducionismo de Bresson e Dreyer) redunda em efeito e não em estilo.
Tudo isto são questões que suscitam no máximo a minha indiferença. Contudo, Schrader volta à sua obsessão – refiro-me a Taxi Driver (1976) – para nos dar aquilo que Scorsese (felizmente!) nos poupou em parte. Num gesto de excesso infinito este padre consegue vestir um colete-bomba, amarrar arame farpado ao corpo, encher um copo com um produto tóxico e ainda filmar a suposta redenção a 360 graus num beijo que é antes o coroar do excesso e não a redenção libertadora por que esperávamos. São quinze minutos de um excesso tal que a própria razão para a “subtileza” da rotina e a sua degenerescência (também ela existente em Taxi Driver), evidenciam ainda mais este contraste, tornando tudo aquilo risível. Se o objectivo era o contraste e o choque que ele provoca, parece ser evidente que há algo de gratuito. Este é o meu problema com First Reformed, a incapacidade que Schrader teve de levar o seu ascetismo a bom porto, optando por reciclar a fórmula “vencedora” e com ela trair o suposto invisível visível. Mais do que desnecessário, parece ser um gesto de uma enorme preguiça e que de tão previsível que ele se afigurava, foi esticado até ao limite, ou seja, à sua abjeção (quando um beijo e um abraço deixam de o ser e passam também eles a serem factores de punição, ao exercerem um peso sobre o outro corpo com o arame farpado em volta).
Bernardo Vaz de Castro