Início estranho, estamos às arrecuas? Será um funeral? Equimoses. Um carro destruído, um acidente? Antes ou depois? Novo emprego: regras = palavras. Os outros falam – Paulo está em silêncio. Personagens = silhuetas. “O piso de baixo é perigoso”. Destruição do carro, afinal não foi um acidente. Ou então… Um cinema de gestos. Um filme sem ROSTOS completos, mas com grandes planos de faces. Dois tons: laranja quente, azul frio. Um quadro no corredor, escuro. Estamos em casa de alguém, quem a invade? Vinte e cinco minutos até ao primeiro plano diurno, o único? Calor, os corpos suam. Uma família, de quem? “Aconteceu dentro da minha cabeça”. Um relógio sem horas. Ela morreu e ele ainda não “tratou” daquilo. Carro destruído – fechadura arranjada. Máscara de lobo. Armas de fogo (caçadeira) > arma branca (faca): coelho esfolado. “Pode ter doenças”. Cigarros como num film noir. Um cadáver no chão? Muitas fotografias em molduras – fotografias ardendo. Macacos! É a lei selva? Mão ensanguentada. O filme caminha para ROSTOS completos, a dois tons. Tensão > antecipação > canção. Sobrenatural? Suicídio? O que traz Paulo na mão? FLOR! Mariphasa (2017).
Estas foram as notas que tirei enquanto via Mariphasa. Fragmentos de uma observação não participativa. E estes apontamentos reflectem, em parte, o próprio filme. Não só na forma como o descrevem, mas antes pela sua componente fragmentária, pelo modo como se impõem através de uma pontuação esquizofrénica, nos contrastes entre minúsculas e maiúsculas, nas sucessivas perguntas que formulam… São notas de um espectador perdido, caído num quarto escuro repleto de sons misteriosos e cheiros fortes, onde as solas se colam ao chão e uma mão sorrateira se aproxima sem pedir autorização e o puxa para um canto. Essa é a sensação de percorrer este filme – quase opaco – onde o breu parece esconder sempre um monstro sedento de sangue. E é por aí que me parece que é mais produtivo olhar a obra de Sandro Aguilar: pelo encontro, improvável, entre o cinema de terror e o avant-garde (ou pondo por outras palavras, entre a série B e o cinema experimental). Isto porque nesses dois “géneros” revela-se um mesmo olhar sobre a potencialidades do cinema enquanto ofício primitivo. Não nos modos (que são tudo menos primitivos) mas nas intenções. O cinema de Aguilar trabalha o desconcerto do mesmo modo que um cineasta do terror (exploitation, gore, jump scare, chiller) o trabalha. E quem diz desconcerto diz também angústia, mal-estar, desconforto, medo, inquietude… É, nesse sentido, muito primitivo exactamente porque toca as fobias mais entranhadas, logo a começar pelo medo do escuro.
Pode-se encarar o filme como o telhado do mais sólido dos edifícios do cinema português contemporâneo.
O curioso é perceber que em Mariphasa cristalizam-se alguns dos momentos anteriores da obra em curta-metragem do cineasta. Isto é, se o trabalho do realizador, como o vem repetindo em várias entrevistas, é reduzir os elementos narrativos aos mínimos essenciais (retirar todos os sublinhados, dar apenas o estritamente necessário ao espectador), então Mariphasa parece ser a consumação barroca desse minimalismo – passe a contradição –, feito em jeito de auto-citação enigmática (ou se não se quiser ir tão longe, pode-se encarar o filme como o telhado do mais sólido dos edifícios do cinema português contemporâneo). Um caso manifestamente evidente é a figura do pai/mãe que faz o luto do filho/filha – logo a começar em Cadáver Esquisito (1997), Corpo e Meio (2001 – já aqui as fotografias ardiam), A Serpente (2005), de certo modo o duo Voodoo (2010) e Mercúrio (2010) trata de um outro tipo de luto (o divórcio). Mas há outras recorrências que ecoam em Mariphasa: o trabalho da iluminação e do enquadramento que dificulta (propositadamente?) a identificação dos personagens pelo espectador, o carro como símbolo da máxima solidão e isolamento, assim como as ruínas, os edifícios em construção, os espaços abandonados – Sem Movimento (2000), Corpo e Meio, Remains (2002), A Serpente, Arquivo (2007), Mercúrio. Repare-se, no entanto, que já aquando de A Zona (2008) se falou num “filme síntese” das experimentações do formato curto. O que mostra mais uma recorrência, que não é tanto do modo como Aguilar encara o formato longo, antes sim do modo como o olhar crítico se delicia a apontar linhas de intersecção entre os vários filmes de um realizador (fomentado, naturalmente, pelo regresso as mesmos actores – Isabel Abreu, Albano Jerónimo, o próprio filho Eduardo Aguiar, António Júlio Duarte… – e os mesmos técnicos – à cabeça o director de fotografia, Rui Xavier).
Mas é a partir de Sinais de Serenidade Por Coisas Sem Sentido (2012), nomeadamente com Jewels (2013), False Twins (2014) e Bunker (2015), que Aguilar finca o pé no cinema de género, em particular a ficção-científica. E essa parece-se ser a chave (a luz, faria mais sentido) para compreender Mariphasa. Chave essa que o filme nunca oferece verdadeiramente, mas que o realizador revela sem pejo. O título tem origem na Mariphasa lupina lumina nome latino da planta da planta fictícia de Werewolf of London (O Lobo Humano, 1935) – o primeiro filme de lobisomens, produzido pela Universal anos antes do muito mais conhecido The Wolf Man (O Homem Lobo, 1941), que o próprio Aguilar descreve como um “filme muito mau (…) que se tornou um clássico”. Essa planta seria o antídoto para aquele que fosse atormentado pela maleita lupina, evitando assim a conversão em monstro nas noites de lua cheia. O espectador detentor deste dado re-encontra um filme que literalmente se ilumina nos pormenores, revelando as linhas ocultas da sua narrativa, como um botão de flor que desabrocha – ou um filme de detectives em que depois de se conhecer o homicida já tudo faz sentido (só que aqui o homicida é o realizador e nós, espectadores, somos as presas indefesas que, uma por uma, vão perecendo às suas mãos). Mariphasa apresenta-se por fim como uma aventura pelos calabouços da mente criativa de Aguilar, onde é mais fácil ficar encarcerado do que encontrar a saída. Mas conseguindo reunir as várias pistas do desafio – e nesse sentido o cinema de Aguilar é altamente lúdico – reconhece-se o quão belo é esse trajecto.