Donald Trump, Bruno de Carvalho, José Sócrates, Maria Leal e Hélder Amaral. Os “monstros” estão em todo o lado, espreitando e aparecendo a toda a hora. Dificilmente conseguimos fugir dos seus assédios constantes, seja pelo seu histrionismo, a sua idiotia, a sua mesquinhez, a sua desonestidade intelectual, as suas manigâncias, o seu mau-gosto ou falta de tacto. O espaço mediático está tomado por estas criaturas, mas não há quem as controle. Na realidade, porque porventura são fruto da nossa “curiosidade mórbida”, do reinante “tão mau que é bom”, eles são para nós como Frankenstein, o monstro que ganhou o nome do seu criador e que, por sinal, é homenageado neste MOTELX aproveitando a celebração do bicentenário da criação de Mary Shelley (será um luxo rever no grande ecrã os clássicos de James Whale e Terence Fisher). Assim sendo, ponha na agenda: entre os dias 4 e 9 de Setembro, o MOTELX ocupa o São Jorge, oferecendo a todos um programa de sustos e entretenimento mórbido. Mas cá fora os rivais são, de facto, de peso. O terror está por toda a parte e, com efeito, não é só o “terror terrorista”, basta o mediático para nos tornar todos os dias um pouquito mais medíocres e mesquinhos. O que pode contrabalançar todo este horror que pulula na caixinha mágica ou nas redes sociais? O melhor cinema de terror. Está ele presente nesta edição do festival? Face ao campo de recrutamento, diria que o trabalho dos programadores deverá ter sido especialmente difícil nesta edição. Ainda que me pergunte pelos novos de Kiyoshi Kurosawa e Lars von Trier ou sinta a ausência de títulos recentes tais como Searching (Pesquisa Obsessiva, 2018) ou a sequela de Unfriended (Desprotegido, 2014), pode dizer-se que o esforço foi recompensador para nós, espectadores, sobretudo dadas as circunstâncias.
Comecemos pelo prato forte: um filme de terror integralmente filmado com um Iphone, da autoria do realizador com mais amigos no showbiz, Steven Soderbergh [Ocean’s Eleven (Ocean’s Eleven – Façam as Vossas Apostas, 2001) e Logan Lucky (Sorte à Logan, 2017)]. Os programadores estiveram bem quando avançaram com a programação de Unsane (Distúrbio, 2018), desde logo, porque o filme é uma resposta provocadora ao contexto actual de paranóia sexual, transformando as bad vibes do movimento #metoo numa intriga autofágica de culpa e perdição. O trabalho de câmara é notável, simultaneamente rigoroso e cheio de criatividade visual (veja-se o still que acima destaco), sendo o Iphone menos um gimmick que um instrumento que participa activamente no carácter doméstico, pessoal e (in)transmissível, da loucura que assalta a protagonista. Por outras palavras, o Iphone é menos uma curiosidade técnica proof of concept que uma espécie de “pele do drama” aqui. Unsane já está disponível no mercado Video on Demand (VOD) em Portugal. Mesmo assim, o MOTELX quis oferecer-nos no grande ecrã esta experiência arrojada de Soderbergh – a sua mais aventureira desde Bubble (2005). Só por isso merece antecipadamente o meu aplauso.
Um dos filmes-sensação do género do terror, Mandy (2018), será outro dos cabeças-de-cartaz desta edição do MOTELX. Panos Cosmatos realiza este filme, história de vingança de cores berrantes que promete ser um gore fest com o poder de tirar todo o proveito desse poço de energia que é Nicolas Cage, a quem cabe aqui um muito elogiado papel de protagonista. Estivesse neste cartaz o divertido/corrosivo q.b. Mom and Dad (Cuidado com a Mamã e o Papá, 2017) – filme disponível em VOD por cá – e poderíamos ter assegurado em Nicolas Cage o principal rosto deste festival. Algo completamente diferente: já há dois anos havíamos visto em sala Annabelle: Creation (Annabelle 2: A Criação do Mal, 2017) numa sessão de antevisão do MOTELX, este ano mais um filme saído do bestiário de James Wan assombra a sala Manoel de Oliveira, mas desta feita como sessão inaugural do festival. Falo de The Nun (The Nun – A Freira Maldita, 2018), de Corin Hardy, spin-off baseado na personagem da freira demoníaca do retumbante The Conjuring 2 (The Conjuring 2 – A Evocação, 2016). O trailer promete alguns arrepios na espinha e deixa entrever boas “sequências de câmara” à la James Wan.
Igualmente promissora é a selecção de longas-metragens que concorre para o Prémio Melhor Longa de Terror Europeia / Méliès d’Argent, destacando-se, aos meus olhos, e por razões diferentes, três títulos: Knife+Heart (2018), Ghost Stories (2017) e Inner Ghosts (2018). O primeiro é um filme francês que esteve nomeado para a Palma de Ouro em Cannes e que já teve passagem por Portugal, no festival do Curtas Vila do Conde – foi a propósito desta passagem que Ricardo Vieira Lisboa escreveu este texto. Yann Gonzalez, que estará em Lisboa, é um dos representantes de um dos mais recentes movimentos cinematográficos – coisa já de si démodé – vindos de França. Com Caroline Poggi, Jonathan Vinel e um cineasta a seguir atentamente, que descobri em 2015 no MOTELX graças a um programa do colectivo White Noise, chamado Bertrand Mandico, Gonzalez assinou um manifesto intitulado Flamme, que recentemente encheu as páginas dos Cahiers du cinéma. Nesse texto, os novos cineastas caracterizam assim o seu universo “ultra-onírico”: “Procuramos um cinema inflamado. Um cinema para sonhadores suados, monstros chorões e crianças em chamas.” Teria gostado de ver neste MOTELX a sessão de curtas da Flamme, precisamente intitulada Ultra Rêve (2018), que teve passagem recente nas salas francesas. Parece-me fundamental que o festival vá acompanhando as tendências em formação no âmbito do cinema de autor europeu com um pé – ou os dois pés – no fantástico ou na fantasia.
Ghost Stories é um dos filmes mais cotados do terror britânico recente, história que promete pôr à prova o nosso pouco imaginativo cepticismo em relação aos fenómenos do paranormal. Caso um pouco diferente – porque, apesar de tudo, inspira importantes reservas – é Inner Ghosts. Esta é uma produção luso-brasileira no campo do terror – é por isso que merece o nosso destaque, desde logo. Também merece a nossa curiosidade por ser realizado por aquele que foi numa fase inicial o seu produtor, Paulo Leite, docente da Escola Superior de Teatro e Cinema. Não sabemos o que esperar deste objecto, mas talvez possamos encontrar aqui um caso de estudo do cinema português – parte do seu orçamento foi obtido por via de uma campanha lançada online na plataforma Kickstarter – ao mesmo tempo que também pode ser mais um título a engrossar a longa lista de filmes “do arco da velha” destruídos pelo excesso de confiança do seu produtor – João Alves, que nessa campanha ainda aparecia como realizador, aparentemente desapareceu dos créditos. Veremos até que ponto este filme português falado em inglês não contará com mais um “fantasma escondido” para o assombrar: o da sua atribulada (?) produção.
O MOTELX trará a Portugal quatro realizadores que protagonizaram a história recente do terror: o australiano Leigh Whannell, conhecido argumentista e actor dos primeiros filmes do inevitável James Wan; os franceses Pascal Laugier e Xavier Gens e o espanhol Paco Plaza. Whannell vem na qualidade de braço direito de James Wan, ambos colaboraram em filmes de grande popularidade tais como Saw (Saw – Enigma Mortal, 2004) e Insidious (Insidious – Insidioso, 2010), mas também vem na condição de realizador por direito próprio – Insidious: Chapter 3 (Insidious: Capítulo 3, 2015) não é um filme memorável, mas há curiosidade para ver, pela primeira vez, Upgrade (2018), produção com o selo de qualidade da produtora Blumhouse que, conta-me quem viu, actualiza a premissa de RoboCop (Robocop – O polícia do futuro, 1987). Os franceses Laugier e Gens vêm falar do cinema extremo francês, aquele que na primeira década do novo milénio serviu de contra-campo à moda do torture porn que se instalava então no mainstream americano, em que pontificaram precisamente os filmes de Wan e Whannell tal como, um homenageado do MOTELX no passado, Eli Roth. Convocados para a sala de conferências, Laugier e Gens falarão deste período, em particular a partir dos seus filmes mais apreciados, respectivamente o impressionante Martyrs (Mártires, 2008) e o menos impressionante Frontière(s) [Fronteira(s), 2007]. Infelizmente, o MOTELX não passará qualquer um destes títulos – penso que qualquer um deles inédito em sala no nosso país -, mostrando apenas as duas longas mais recentes destes dois cineastas que hoje em dia estão já plenamente absorvidos por mais pesadas máquinas de produção de língua inglesa.
O espanhol Paco Plaza também é um convidado que chega a Portugal um pouco como yesterday news, sendo que já não ouvíamos falar do seu nome desde a série [Rec], séries de filmes que co-realizou com Jaume Balagueró, outro nome forte do hoje algo esmorecido cinema de terror espanhol. De qualquer modo, veremos em que resultou o seu mais recente título, uma não muito promissora história de possessão – disponível no mercado VOD em Portugal – chamada Verónica (2017). Filmes e realizadores mais frescos, com potencialmente mais sabor a novo, vêm da Ásia. Kamera o tomeru na! (One Cut of the Dead, 2017), de Shin’ichirô Ueda, afigura ser uma comédia que faz troça das convenções do cinema de género, dos filmes de zombies e found footage – falava eu agora mesmo de [Rec]… No seu trailer demencial faz-se referência a um plano com 37 minutos que, promete ruidosamente, será uma experiência nunca antes vista. Não menos divertido e seguramente ainda mais original – candidato a filme mais idiossincrático deste MOTELX – será Violence Voyager (2017). O artista da animação Ujicha pôs mãos à obra durante três anos para desenhar em cartão este filme fantástico, com espectaculares “efeitos viscosos” e um sentido lúdico infantil. Fora do Japão, mais concretamente vindo da Coreia do Sul, chega Gon-ji-am (Gonjiam: Haunted Asylum, 2018), um found footage que parece ser uma versão sul-coreana de Grave Encounters (2011), uma vez que a acção se desenrola num dos sítios mais assustadores do planeta, a saber: o abandonado – e assombrado – hospital psiquiátrico de Gonjiam. Será que está aqui o principal chiller deste MOTELX? Mais um aparte sobre uma ausência: já que o found footage parece estar a regressar em força, talvez fosse esta uma boa oportunidade para mostrar ao público português Found Footage 3D (2016), filme que parece reunir todos os condimentos de uma boa comédia metafílmica para enterrar ou desenterrar de vez o subgénero mal-amado.
Como já tem sido tradição, os eventos organizados pelo festival são variados e vão muito para lá do modelo das palestras ou masterclasses. Um dos mais apetecíveis este ano cruza música e cinema: as experiências sensoriais convulsas, intoxicantes, eróticas e exóticas do cineasta americano Kenneth Anger, Invocation of My Demon Brother (1969) e Lucifer Rising (1972), são remusicadas ao vivo por Kyron, Helena Espvall e Mo’Junkie. Uma oportunidade para descobrir ou redescobrir um dos nomes maiores do cinema avant-garde norte-americano, que conjuga um caleidoscópio de formas – por sinal, cheio de flamme… – com cenografias faustosas e uma governação pela música que torna Anger um dos inventores do videoclipe musical. Também é destas lições vivas, ao vivo, que um festival já adulto, mesmo de cinema de terror e de culto, se deve alimentar. Marquemos presença.